Hoje Eu Quero Voltar Sozinho


Aproveito a ocasição do último Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM de 2017, para escrever sobre o filme Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Pensando na redação proposta aos candidatos, sobre os “Desafios para a formação educacionalde surdos no Brasil”, eu me lembrei do filme de 2014, dirigido pelo Daniel Ribeiro. Uma recordação provocada pela polêmica que o tema proposto causou imediatamente nas redes sociais após a sua divulgação.

Ao ler o texto da proposta de redação, a primeira impressão que eu tive é a de que estava lendo uma questão para um concurso destinado à seleção de especialista em Pedagogia ou ainda para ingresso em um Mestrado em Educação. Ainda tenho dúvidas sobre o público-alvo da proposta de redação, no entanto, estou certo sobre a temática cidadã e a legitimidade do problema. Eu me lembrei do filme porque constitui uma oportunidade de debater o assunto.

O primeiro “texto motivador” da redação apresenta artigos da LDB que determinam o direito da pessoa com deficiência à educação inclusiva. Mas o que é “educação inclusiva”? Leonardo, o protagonista no filme, é cego e estuda na classe regular de uma escola que pratica o que poderíamos chamar de educação inlusiva, ou seja, uma escola em que os alunos deficientes participam integralmente das suas aulas e de todas as atividades com os demais colegas. 



Quando assisti Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho, primeiro no cinema e depois através do “DVD Pirata Oficial”, uma versão inicial do DVD que foi produzida para o mercado até o lançamento da versão mais elaborada e completa do filme, o que achei mais interessante foi a complexidade do personagem do protagonista, cuja identidade é irredutível a uma única estampa. Leonardo também descobre o amor homoafetivo. Qual a sua “identidade”?

Eu gostaria de destacar agora dois significativos aspectos da narrativa para os que trabalham com educação e apreciam o diálogo com o cinema. O primeiro é sobre o intenso preconceito que Leonardo sofre no cotidiano escolar, como deficiente e também quando sua sexualidade começa a aparecer ao lado de Gabriel.  O segundo é a respeito de toda a sensualidade que se presentifica em Leonardo e que o filme tece através de imagens muito pedagógicas. 

Leonardo é um jovem que precisa lidar com a superproteção dos pais enquanto amadurece e descobre alternativas à vida familiar. Fazer um intercâmbio em outro país, por exemplo. Já na escola, sua melhor amiga é Giovana, relação que vai ficar instável com a chegada de Gabriel. Pesa sobre Leonardo a desconfiança dos pais sobre a sua autonomia como deficiente e ainda, na escola, o assédio que sofre dos colegas também diante da sua deficiência.

Se é verdade que Leonardo parece à vontade na escola, participando das aulas, usando inclusive recursos pedagógicos específicos, como uma máquina de escrever em braile, a relação com alguns colegas, na verdade, não é tão tranquila assim. Toda a sua presença na escola é acompanhada de zombarias porque é cego. Ou seja, o problema da inclusão não é apenas tecnológico, mas ainda cultural.


O filme interpela o preconceito e como ele acontece entre os jovens e colegas na escola. A exposição de Leonardo às agressões físicas e morais na escola é tão intensa que nos leva à seguinte pergunta: O que estão fazendo as escolas para que os seus internos não fiquem tão vulneráveis às violências diversas que fazem parte do preconceito? Qual a cota de responsabilidade direta das escolas na promoção do preconceito?     

No filme, embora o preconceito sofrido por Leonardo pareça restrito a um grupo de colegas, há a impressão de que a instituição escolar não parece confiável para qualquer indivíduo caracterizado pela diferença, ou seja, por algum desvio em relação ao comportamento ou imagem da pessoa “normal”. A sugestão de que Leonardo e Gabriel estão em algum relacionamento é mais um motivo para mais vigilância e perseguição.

Por outro lado, a contrapelo de todos os constrangimentos e as violências que ocorrem na escola e também da normalização do lar “família nuclear burguesa”, Leornardo se aventura como um ser no mundo, tecendo sua sexualidade em direção à homossexualidade. O que acontece? Por que o poder não se consuma reprimindo suficientemente Leonardo? Acredito que está aí a abordagem mais original do filme.

Há uma sensualidade e até um erotismo de aparente baixa intensidade no filme que parece sob controle até para o espectador.  No entanto, está presente em toda a narrativa. Às costas do poder, o que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho nos mostra é que a própria existência impele o desejo por meio de todo o corpo. Notável inclusive que o filme eduque o nosso olhar através de um personagem que é cego. O corpo de Leonardo está além da sua deficiência.

Vejamos, por exemplo, quando Leonardo toma banho e brinca com o prazer tocando com os lábios a superfície da porta do box.



Quando encontra o casaco de Grabriel no seu quarto, veste o agasalho e usa o olfato na sua fantasia noturna na cama. 


Mais ainda, na cena do vestiário, quando tomam banho próximos, Leonardo não pode ver Gabriel, mas pode ser visto. Ele não enxerga, mas seu corpo está ali, excitando os sentidos de Gabriel.


Mesmo diante de toda a repressão de alguns colegas, constante, sem tréguas, por que Leonardo não desiste do amor? Penso que a maior beleza cinematográfica de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é presentificação de uma educação pelo prazer que a própria vida excita sem cessar. Existir é mais do que o poder pode. O poder é secundário diante da vida como ato criativo. Essa é a pedagogia da imagem de Hoje Eu não Quero Voltar Sozinho.

*

Direção: Daniel Ribeiro
País: BRA
Ano: 2014
Classificação indicativa: 12



Vale lembrar que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho foi antecedido pelo curta metragem Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010)


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