Jogo de Cena








 Repentina e trágica a partida de Eduardo Coutinho. Mas o documentarista deixou, contudo, uma obra para nos dedicarmos durante muito tempo ainda. Há muito para dizer sobre seus filmes. A influência do seu trabalho ultrapassa o interesse dos profissionais e estudiosos do cinema, alcançando admirações e usos mais extensos.

Entre pesquisadores da área de educação o nome de Coutinho desperta um interesse crescente. Há muita curiosidade e atenção dedicadas às conversas que produz nos seus filmes. Sua capacidade de fazer (ou deixar...) as pessoas falar é especialmente encantadora para os que utilizam esses encontros na condução de suas pesquisas.

Seus personagens são pessoas comuns, existências que fazem a beleza e a pertinência dos seus documentários. Esse é o desejo de tantos que pesquisam no campo da educação: transformar seus entrevistados em protagonistas, de “pessoas comuns” em personagens destacados da pesquisa, reconhecendo a primazia das suas presenças na própria prática educativa.

Como, então, dialogar com Eduardo Coutinho nas nossas pesquisas? Aqui vou buscar essa aproximação a partir de Jogo de Cena. O filme começa com um anúncio pago em um jornal, solicitando o contato de mulheres que têm “histórias para contar” e desejam participar de um teste para um documentário. Coutinho sabe que as pessoas querem falar, que adoram narrar suas vidas.

Algumas dessas pessoas serão selecionadas para gravar contando suas histórias. A partir desse material, Coutinho começa o seu “jogo”. Novos personagens são colocados em cena. Atrizes são convidadas para encenar livremente as gravações feitas com as pessoas do anúncio. Algumas dessas atrizes são pessoas conhecidas da TV, logo identificadas quando atuam no filme. Mas outras não vamos reconhecer imediatamente.

Uma cena teve um efeito marcante para mim nesse “jogo”. Uma mulher conta sua história e no final da narrativa olha para a câmera e diz: “foi isso que ela disse”. Até então acreditava que era uma das pessoas que haviam respondido ao anúncio. Ao entender que era uma “atriz” percebi como fui enredado por sua atuação e caracterização da personagem. 



Mas quem atua deliberadamente não está no controle absoluto da sua encenação. Andréa Beltrão conta que não havia se preparado para chorar, mas conta que precisaria se preparar muito para dizer o seu texto do mesmo jeito que a personagem que reproduz. Aqui é a narradora original que “atua” de tal forma que embaraça sua cópia. 


Outra personagem recorre à narração de um filme de animação para contar sua história. Ela, contudo, pede para gravar novamente, depois de ter reprovado sua participação anterior, que ficou “trágico“, “muito triste”. Personagem que procura recuperar sua situação na história familiar que narra, mas que durante a “encenação” a imagem pretendida lhe foge, aparentemente contrariando sua intenção de aparecer regulada diante da câmera. Por isso deseja repetir.

A atriz que faz seu duplo é Marília Pêra, que também sente uma instabilidade na interpretação da sua personagem original. Quando precisa falar sobre a filha, conta que veio à imagem sua filha também. Sua atuação é comovida, então, por sua própria biografia, não é uma repetição apenas da história de sua personagem. Durante sua gravação um curioso episódio: chama Coutinho de “meio comunista” sem que sua personagem tivesse dito isso. Aproveita o momento para dizer algo que pensa sobre o diretor?  
 

Fernanda Torres diz para Coutinho que parece mentir quando interpreta sua personagem. Observa que não há como separar a moça representada das coisas que ela diz. Por isso, então, a sensação de mentira, ao tentar repetir sua fala sem ser a própria pessoa. Mais uma vez a personagem original impõe dificuldades para ser reproduzida. A duplicação é sempre problemática, mesmo para atrizes profissionais.    



O filme tem outros tantos personagens e participações que poderiam ser destacados. Mas para essa breve reflexão vou me fixar nesse curto material apresentado, já bastante indicativo das possibilidades de usar o cinema de Coutinho também nos diálogos necessários à realização de pesquisas no campo da educação. Bom lembrar que se trata de uma apropriação, não há nada nos seus filmes como “sugestões para pesquisadores”.


As gravações foram realizadas registrando as pessoas com quem Coutinho conversa. Elas se sentam em uma cadeira colocada no palco e contam suas histórias. Na mesma cadeira as atrizes fazem suas interpretações, depois do prévio conhecimento das suas personagens através das gravações. Coutinho está em outra cadeira diante delas. Não há plateia no teatro, todas as cadeiras estão vazias.

Ouvimos mais Coutinho do que encontramos a sua figura. Esse destaque do diretor “às avessas” valoriza a sua palavra nos encontros. Como disse antes, as pessoas querem falar. Coutinho, para esse filme, construiu um método próprio para essa “falação”: o anúncio no jornal, a seleção dos personagens que querem contar suas histórias, a maneira de realização dessas conversas, a interpretação dos personagens por atrizes e o diálogo com elas sobre suas gravações.

A palavra de Coutinho é mais um “passe” para as narrativas, provocando as falas que fazem o filme. Evidente que o lugar que ocupa, de “cineasta”, é uma autoridade. Bom não ignorar isso. Não se trata de uma conversa espontânea, mas localizada e guiada. É um lugar de poder, embora seus personagens manipulem também suas forças. Para os que desejam pesquisar realizando conversas, creio que é oportuno entender que o “balanço” desse poder é um acontecimento da pesquisa, algo que é melhor não deixar de considerar na sua condução.  

Jogo de Cena tem a particularidade de incluir atrizes profissionais para interpretar personagens. Isso torna o filme uma discussão sobre o caráter das atuações e representações na arte – mas também em variados episódios do cotidiano, inclusive de uma pesquisa. Ao ouvir essas atrizes foi possível reconhecer a dificuldade da reprodução sem atritos com a cópia, sem um mal-estar para quem atua.  Mas trata-se de conflito para toda imagem e identidade: ser fiel.
 
Portanto, o que esperamos “reconhecer” quando escutamos alguém em nossas pesquisas? O que desejamos “provar”? Melhor deixar que as pessoas falem e esbarrem com suas narrativas nas figuras preconcebidas da nossa representação, em uma paciente escuta que deve ocupar o lugar da espera ansiosa pela “verdade”, que muitas vezes acreditamos possuir mesmo antes da pesquisa e que as pessoas vão apenas confirmar com suas histórias. Esse é o detalhe: ninguém confirma nada. A realidade é torta, sem imagens paralelas.

“Jogo de cena” é também uma alegoria útil para os que pesquisam ouvindo aqueles que fazem parte da vida nas escolas. Ouvir é ouvir histórias, maneiras de contar as existências, tal como são percebidas, tal como gostariam que fossem vividas. Conversar com as pessoas contando com suas história na realização de uma pesquisa é um “filme” que Coutinho nos ajuda a entender. Dirigir esse filme como criação original é nosso trabalho, o jogo que precisamos criar para os nossos personagens. 



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Direção: Eduardo Coutinho
País: Brasil
Ano: 2006
Classificação indicativa: L



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