Casa Grande
Depois de ter
escrito sobre o filme Tudo Que Aprendemos Juntos, com o propósito de comentar três filmes nacionais lançados em 2015
que “falam” da educação brasileira em suas histórias, agora vou escrever sobre
o filme Casa Grande, dirigido por
Fellipe Barbosa.
Vi o filme no
cinema, mas já está disponível em DVD também, que aproveitei para selecionar
alguns fotogramas.
O protagonista
do filme é o jovem Jean (Thales Cavalcanti), estudante no último ano do Colégio
São Bento, que atravessa situações comuns à idade. Entre escolher a carreira universitária, viver alguma autonomia
diante da sua família e iniciar a vida amorosa, Jean não escapa de alguns
conflitos.
São dilemas
que o diretor do filme apresenta em um enredo mais amplo, problematizando, na
verdade, a sociedade brasileira hoje. Os problemas de Jean não são exclusivamente
seus, mas de um país que se transforma marcadamente afetado pelas políticas dos “anos PT”.
Entre a imagem
que inicia o filme e a última, há um expressivo contraste. A primeira cena do
filme é uma imagem espetacular da residência que é a “casa grande”. Na
última cena (que pode ser vista aqui no cartaz do filme), porém, Jean está em
uma casa muito mais modesta.
O que se
passou no filme? O que se passa na sociedade brasileira?
Apesar da
imagem onipotente da “casa grande”, a família de Jean está em ruínas. Seu pai
vai queimando as economias da família e fazendo empréstimos enquanto, de modo
vacilante, tenta alguma colocação profissional. Está falindo, mas permanece
prepotente e arrogante.
Hugo (Marcello
Novaes), pai de Jean, é uma imagem dos segmentos mais reacionários das classes
médias alta e alta hoje no país. A proximidade do vestibular do filho põe em
relevo seus valores de pertencimento a um grupo social privilegiado e aristocrático.
Imagina para o filho uma carreira rentável e uma vida distinta.
Autoritarismo na
vida familiar que é também uma expressão do seu pensamento social. Vê o filho
como alguém que deve viver sem muito contato com o conjunto da população. Mas
as cotas raciais para ingresso na universidade assumem uma importância política
no filme, já que passam a mediar o ingresso das classes populares em espaços
sociais antes mais reservados às elites.
Na escola o
assunto é debatido, mas Jean não consegue se posicionar direito senão repetindo
o que ouve do pai em casa, dizendo que é necessário corrigir o problema melhorando a escola pública na base. Argumento geralmente utilizado para
recusar a urgências das cotas raciais no ensino superior.
Mas o contato
mais polêmico de Jean com a questão chegará através de um ônibus. A queda
financeira da família desbloqueia os encontros e os contágios de Jean pela
cidade.
A veloz
decadência da família de Jean leva à demissão do motorista Severino. Agora, ele
precisará ir de ônibus para a escola e depois para casa. Em uma dessas viagens conhece
Luiza (Bruna Amaya), estudante do Colégio Pedro II. Parda, ela defende as cotas
raciais. Começam a namorar e a presença de Luiza entre os familiares de Jean
agita a discussão sobre o assunto, sempre tensa.
Debate “frio”
na escola burguesa de Jean, é na via aberta dos trânsitos na cidade que se
apresenta de forma contundente a questão “cotas raciais”. É aí, mais do que
entre os muros da escola, que Jean irá se deparar com o alcance mais extenso do
debate. Através das suas imagens, Casa
Grande nos faz percorrer a cidade sem deixar escapar o que muitas vezes
escorre na escola.
Mesmo com
todos os cuidados da família de Jean para evitar os contatos de Jean com a
pluralidade de pessoas e grupos sociais que existem na cidade, inevitáveis
esses encontros. Isso acontece porque a desigualdade social é sustentada pelo
trabalho dos mais pobres, inclusive no interior da “casa grande”.
Muitas vezes
foi Severino o educador de Jean. Em casa, patriarcal e arcaico, o pai de Jean
se sobrepõe à mulher, nunca ouve a filha e, embora, ouça muito o filho,
tampouco escuta de verdade sua voz. Elite socialmente excludente e
politicamente sem projeto para o país, parece incapaz de educar. Essa é uma crítica
dura e acertada do filme.
Severino (Gentil Cordeiro) é quem orienta Jean sobre suas dúvidas masculinas, enfim, suas questões de garoto que deseja aventurar-se amorosamente. Desencontrado sobre os caminhos da sua vida, Jean abandona a prova para ingresso na universidade. Evita o pai que o espera na saída e vai à procura de Severino em uma favela. Lá terá outro encontro.
Uma empregada
da família, Rita (Clarissa Pinheiro) é outra pessoa com quem Jean conversa
muito (nas costas da mulher, “conversa” do pai também...), preferencialmente à
noite. Jean regularmente deixa o quarto para ficar com ela, um encontro íntimo
que nunca se consuma – o que só acontecerá no final do filme. Rita é outra
educadora de Jean.
A ”casa grande”,
sua lógica de mando e exclusão, é insuficiente para o florescer de Jean, que
precisa se localizar socialmente como jovem e tecer sua vida de maneira mais
significativa de acordo com o país que também vive mudanças. Há uma
incompatibilidade entre ser jovem e ficar
esquivo em relação as significativas demandas sociais que hoje acontecem no
pais.
Interessante
observar que o título do livro de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, um dos mais importantes sobre a sociedade
brasileira, reapareça como título de um filme. São evidentes as intenções
críticas do filme e a sugestão de que o cinema também produz obras
interpretativas da sociedade brasileira.
Vivemos agora
no país uma das mais graves polarizações da sua história, entre os setores mais
reacionários e aqueles que desejam avanços sociais. Por isso a pertinência da recorrência
da “casa grande” no título do filme. As políticas de cotas raciais remetem a
uma dívida colonial e escravocrata nunca resolvida na República.
O cinema comercial
abordando temas referidos à educação no país é algo relativamente novo. Discutir
as cotas raciais através do cinema é interpelar as imagens sobre o nosso
passado, o que conseguimos enxergar hoje sobre o país e o que
projetamos como sociedade. É o cinema dando as suas cartas no jogo das
visibilidades e invisibilidades da sociedade brasileira.
A julgar pela
cena final do filme, a partir do cenário da “casa grande” esse será sempre um
país brutalmente desigual. A imagem de futuridade parte “de baixo”. É
unicamente a partir do território das classes populares que o pais poderá se
encontrar.
*
Título: Casa Grande
Direção: Fellipe Barbosa
País: Brasil
Ano: 2015
Lendo seu comentário fico curiosa para assistir o filme.
ResponderExcluirTambém por isso eu procuro não narrar o filme de forma finalizada. Procuro deixar lacunas para empurar o leitor ou leitora para assistir ao filme. Não conto, por exemplo, o que acontece com o romance entre Jean e Luiza, entre outras situações do filme. O filme é muito bom.
ResponderExcluirNossa. Acabei de assistir o filme e achei essa crítica. Perfeita! Perfeita! Perfeita! Traduz nitidamente o contexto do filme. Sinceramente, eu buscava um final... Mas, e a família? O que acontece depois? Fiquei um pouco perturbada com o trote. Não sei se foi trote ou se foi algo premeditado pelo próprio Jean. Mas, enfim, não importa! A mensagem do filme foi desenhada. Mostrou a elite brasileira e sua arrogância, mostrou parte dos nossos problemas sociais e suas raízes históricas... Enfim, o filme cumpriu o seu papel com maestria.
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