Que Horas Ela Volta?
Com este post encerro
meus comentários a respeito de três filmes nacionais que, em 2015, abordaram em
suas histórias questões sobre a educação no pais. Os outros dois posts foram sobre Tudo Que Aprendemos Juntos e Casa Grande.
Entre os três
filmes examinados, Que Horas Ela Volta? foi
o filme de maior destaque na mídia, exibido até na TV aberta. Assisti primeiro
no cinema e agora foi possível rever também em DVD, de onde extrai os fotogramas
que utilizo aqui na minha conversa sobre o filme.
Dirigido por
Anna Muylaert, é também o único que não tem “cenas de escola”. O tema educação
aparece de outro modo, não menos importante. Pelo contrário, sua aparição no
filme é questionadora dos jogos de visibildade-invisibilidades que cercam a
sociedade brasileira a propósito dos seus temas mais fundamentais.
Ao lado de Casa Grande, o filme de Anna Muylaert discute
os efeitos de transitividade que os governos do PT causaram na sociedade
brasileira, assinalando especialmente o campo da educação como um dos mais
beneficiados para as classes populares. E, curiosamente, os dois filmes colocam
em questão essa problemática através do cenário das relações sociais no
interior das residências em que vivem os patrões na companhia dos seus
empregados.
A protagonista
de Que Horas Ela Volta? é uma empregada doméstica, Val (Regina Casé), uma
nordestina que mudou-se para São Paulo deixando a filha pequena, Jéssica, para
trás. Mora na casa dos patrões, Bárbara (Karine Teles) e José Carlos (o
escritor Lourenço Mutarelli). Entre outras tarefas na casa, cuida do filho
deles, Fabinho (Michel Joelsas).
A casa dos
patrões, no Morumbi, é convulsionada quando Jéssica, já jovem, resolve fazer vestibular
para a USP e vai morar com a mãe. Instantaneamente Jéssica não gosta de saber
que a mãe mora com os patrões.
Bárbara,
inicialmente generosa com Val para receber Jéssica em sua casa, muda de humor
quando conhece melhor a jovem.
A casa em que
vive Val parece uma reprodução molecular da sociedade brasileira. Nela coabitam
dois grupos sociais nitidamente recortados: uma classe de pessoas
privilegiadas, os patrões, e uma camada de trabalhadores servil e sem
perspectivas e alternativas tangíveis. É aqui que a figura de Jéssica
desestabiliza o cotidiano da casa e as estruturas dessa relação desigual.
Quando Jéssica é apresentada pela
mãe, a família de Fabinho se surpreende. Ela diz que pretende ingressar no
curso de Arquitetura da prestigiada FAU. “Dr. Carlos” pergunta a razão de
escolher Arquitetura. Depois de sondar algumas possibilidades para a sua
escolha, Jéssica observa que acredita na importância de “ter um diploma” e
emenda dizendo que a “arquitetura é um instrumento de mudança social”.
Bárbara, entre a surpresa e algum incomodo, diz: “Tá vendo?
O país tá mudando mesmo”.
Essa frase é
lapidar. Remete, indubitavelmente, aos “anos PT” no governo. Uma constatação
ressentida das classes mais privilegiadas: existe certo deslocamento social no
país, favorável às classes mais desfavorecidas. Dinâmica que no filme contrasta
com o imobilismo (e até parasitismo) das classes mais abastadas. José Carlos é
um artista plástico que estacionou na sua atividade, vivendo e mantendo a
família com a herança paterna.
Tal
ressentimento é ainda mais doído quando percebem que os “de baixo” parecem ter
consciência de que suas possibilidades estão abertas a mais e melhores
resultados, movendo de lugar quem antes se apropriava quase exclusivamente, por
exemplo, das conquistas educacionais. Bárbara é a personagem que melhor
representa essa contrariedade. O pai e Fabinho, homens em uma sociedade patriarcal,
mobilizam-se para outra conquista.
Jéssica representa
a emergência social e cultural das camadas mais desfavorecidas. Emergência
também política. Representa uma oposição aos privilegiados de sempre, mas
também uma ruptura com um comportamento mais submisso ou resignado que pode ser
encontrado entre os mais pobres, tal como em Val. É marcante a tensão entre mãe
e filha no filme, a partir não apenas do drama familiar que dividem, mas também
da compreensão social que alcançam.
Jéssica tem um
comportamento na casa que imediatamente provoca Bárbara e deixa a mãe também
perplexa. No lugar de uma conduta humilde ou discreta, procura tirar proveito
da casa, habitada de forma constrangida pela mãe. Jéssica se insinua para ficar
no quarto de hospedes evitando um colchão no quarto da mãe. Em todas as
situações ela recusa a desigualdade social da casa e procura se colocar como
pessoa merecedora dos mesmos benefícios.
“Dr. Carlos”,
mais ostensivamente, e Fabinho, mais timidamente, visualizam na jovem filha da
empregada a oportunidade de uma conquista amorosa e sexual, por isso até
acolhem os apetites de Jéssica pelos espaços da casa. Sobre o poder, não escapa
ao olhar do filme sua dimensão patriarcal e machista. Jéssica, no entanto, não
procura uma escalada social através da cessão da sua liberdade – seu objetivo é
a conquista através do estudo e altivez pessoal.
O
comportamento de Jéssica na casa dos patrões de sua mãe produz uma forte
sensação de impertinência, de inconveniência. Ela avança além do que deveria,
parece. Na verdade, ela força o espectador a duvidar de que lugares sociais
atribuídos são naturais. Através dos espaços e relações em uma residência de
classe média alta, o filme pedagogicamente nos conduz a problematizar os
lugares que ocupamos na sociedade brasileira.
Interessante
observar como o cinema (ou determinada cinematografia) serve-se de imagens para
intencionalmente exibir sua visão de mundo, interpelando o real. Ou seja,
codificação através de imagens. O afronto de Jéssica, ultrapassando os
“limites”, é um abuso cotidianamente realizado por tantos patrões sobre seus
empregados, muitas vezes vestido de “relação familiar”. Vejam a cena abaixo:
“Que horas ela
volta?” é a pergunta que Fabinho, ainda criança, faz à babá Val. Ele está
perguntando sobre a sua mãe. Ausência que será suprida amorosamente pela
empregada, mas ao custo de Val não poder cuidar da própria filha, que ficou em
Pernambuco. Trata-se de uma perversa estrutura social que muitas vezes escapa
ao nosso cotidiano campo de visão. No entanto, não escapou à visão de Jéssica
(do cinema) e, quem sabe, de uma geração mais crítica dos seus direitos.
No diálogo
inicial de Jéssica com a família de patrões, “Dr. Carlos” pergunta se sua
escola era boa. Ela diz que não era muito boa, mas foi ajudada por um professor
de História, que através das atividades que desenvolvia com seus alunos
provocava uma visão mais ampla sobre as coisas. Esse reconhecimento de Jéssica
é uma consideração sobre o “poder da educação” para as classes populares.
Curioso,
então, que a contribuição da educação para Jéssica não se resumiu a uma
competência de ensinar e aprender, mas se realizou como uma tessitura que permite
um olhar mais aguçado para a sociedade brasileira e uma conduta mais decidida
sobre a necessária ocupação dos espaços sociais até agora proibidos. Esse é o
campo da educação investigado pelo filme: a visão e a prática social que
constrói.
*
A escrita
desse texto acontece em um momento em que a sociedade brasileira vive uma
grande tensão política. Como muitos analistas estão avaliando, o país parece
dividido. Grupos promovem uma forte campanha em favor do impeachment da
presidenta Dilma e são acusados de promover um golpe de Estado. Que Horas Ela Volta? é um filme que
discute a estrutura de classes desse forte antagonismo social no país.
Enquanto
terminava o meu texto soube da premiação de Anna Muylaert, no Prêmio Faz
Diferença, do Jornal O Globo. Vale a pena ouvir as palavras da diretora ao
receber a premiação:
Título Original: Que Horas Ela Volta?
Direção: Anna Muylaert
País: Brasil
Ano: 2015
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