“Feminismo – Como suas alunas estão mudando a escola”
Mais uma vez a capa da Nova Escola me chamou a atenção. Dessa
vez foi a edição de setembro de 2016.[1]
Três garotas aparecem em destaque sobre a seguinte frase: “Feminismo – Como as
suas alunas estão mudando a escola”. Em outra oportunidade escrevi sobre a capa
que tinha um menino usando um vestido de menina e o título “Vamos falar sobre ele?” Pelas características da publicação, muito bom ver temas culturalmente mais
ousados, geralmente polêmicos mesmo entre professores e professoras.
A capa de uma revista é a comunicação imediata com o seu leitor. Dependendo da sua exposição, hoje bastante presente em redes sociais na internet, poderá alcançar até novos leitores para a publicação. Na tessitura de uma imagem e texto em destaque na capa de uma revista existe uma pedagogia, ou seja, uma trama para conduzir alguém até as sua páginas internas – ou pelo menos reter essas informações de forma suficientemente marcante para produzir sentidos sobre assunto em relevo apenas com a visualização da capa.
Portanto, a partir dos meus interesses com a pedagogia da imagem, gostaria de me deter aqui exclusivamente na capa da revista. Não pretendo discutir o conteúdo da matéria, que poderá ser lida no site da publicação. Uma nota: Nova Escola só tem a versão digital, e agora a impressa também, disponível para os seus assinantes.
A imagem em questão é composta por
três garotas vestidas para jogar bola. Todo o figurino, tênis, short e camisa
sugerem uma inversão da figura feminina. Não estaríamos muito acostumados a ver
meninas dessa maneira. O mais comum é ver os meninos vestidos assim. Abaixo, em
tamanho expressivo, a palavra “Feminismo” e na linha seguinte, com um destaque
menor, “Como as suas alunas estão mudando a escola”. Ao lado das garotas, um
texto ainda menor identifica as meninas e a sua escola, um colégio privado de
classe média no Rio de Janeiro.
Imagem e texto prenderam a minha
atenção, já que se trata de um tema importante na discussão atual do campo
educacional. Questões de gênero precisam ser mais discutidas nas universidades
e ganhar maior reconhecimento no currículo e no cotidiano escolar. No entanto,
me ocorreram duas possíveis interpelações a essa capa. A primeira refere-se à
“cor” desse feminismo. A segunda refere-se
ao jogo da “inversão”: meninas vestidas como os meninos que jogam bola.
Em uma sociedade em que as
imagens se multiplicam através de incontáveis suportes e superfícies, suas
existências disputam visibilidades e sentidos para as suas expressões. Entre
suas implicações e pretensões, uma imagem mostra tanto quanto exclui. E o que a
capa da Nova Escola exibe, associado
à concepção de que um feminismo juvenil está transformando as escolas? A branquidade desse feminismo. A imagem nos dá uma visão dessa
presença feminista como uma produção da branquidade.
Não estou, de modo algum,
examinando cada uma das moças para dizer sobre a cor delas. Não é esse o
método. Refiro-me ao inequívoco sentido de branquidade que dirige a imagem na
sua composição. Não se trata de uma escolha apenas casual e de efeito fortuito.
A divulgação da capa não é circunstanciada a um resultado parcial e
contingente. Pretende ser legítima e suficientemente representativa para
referir-se a um acontecimento escolar de interesse amplo e significativo.
Portanto, o problema da escolha é
o que ela produz com o que inclui e o que deixa de fora. Esse é o seu sentido e
o que pedagogiza a imagem. A imagem afirma um protagonismo branco para um
assunto que é pertinente, mas aqui limitado por uma ideologia colonialista, que
compromete qualquer consideração diante de um interesse mais amplo pela
educação pública e popular. O feminismo em questão existe, mas não é “branco”.
Ele é multirracial, enquanto a imagem não é indicativa dessa realidade
multirreferenciada. Imagem que invisibiliza.
Outro incômodo com a imagem é ela
expressar um feminismo juvenil que corresponde tão somente à ocupação de um
papel visto predominantemente como masculino. A sugestão de que meninas também
estão jogando bola e isso não deve ser mais ser visto com estranheza tem a sua
importância como orientação pedagógica. No entanto, trata-se de uma imagem que
ainda não rompe com as práticas dos corpos dóceis. Por quê? A imagem funciona como um exemplo. No caso, exemplo de “feminismo” muito
tranquilizador porque sua cartografia já é conhecida e masculina.
Historicamente o feminismo
está relacionado à fruição de comportamentos e filosofias que desestabilizam
práticas e valores de uma sociedade falocêntrica. A imagem na capa da Nova Escola foi uma opção conservadora.
Jogo de bolas entre meninas, apesar de invadir um território masculino,
representa uma mudança de padrão cultural assimilável ainda no interior de uma cultura
patriarcal. Observando o modo de vida juvenil hoje, nos cotidianos (inclusive
escolar) e nos espaços digitais, teríamos imagens mais perfurantes dessas emergências
feministas.
A opção racial pela
branquidade e o conservadorismo da expressão feminista na capa da Nova Escola não constitui apenas um
problema de baixa intensidade na imagem proposta. O problema principal é a sua
invisibilização, ou seja, o que ela cobre. Os acontecimentos mais importantes
nas escolas hoje, em seus cotidianos e a propósito dos seus sentidos como
instituição, são juvenis e caracteristicamente populares. A emergência
significativa na educação, comportamental e política, é das classes populares e
nas escolas públicas, sobretudo.
É na escola pública e com os seus
personagens que a educação enfrenta os maiores desafios. É aqui que a cultura
está sendo interpelada de forma mais significativa. A capa da Nova Escola pretende ser atual com o
seu tempo, mas não é. Ela pretende apresentar algo contemporâneo, mas faz isso
silenciando outros personagens ao fazer a sua escolha imagética para expressar
o feminismo hoje.
Futebol de garotas é muito pouco
para falar sobre mudanças comportamentais de gênero. Há uma subjetividade
juvenil feminina de franca visibilidade nas escolas que interpela de forma
contundente a cultura patriarcal, questionando os conhecimentos e o próprio
currículo. O que deveria dizer uma revista de educação sobre isso? A capa da Nova Escola
tranquiliza o poder e normaliza os sujeitos. Ou seja, o feminismo está sob
controle. Mas como toda imagem conservadora da vida nas escolas, ela não está à
altura do que se presentifica em seus cotidianos.
[1]
NOVA ESCOLA. São Paulo. Ano 31. N. 295. set. 2016.
Muito bom! Sua excelente observação me fez pensar o espaço dos esportes como o espaço hoje "permitido" ao protagonismo feminino, em uma pseudo igualdade entre aquilo que conservadorismo considera 'gênero". Há realmente uma tranquilidade elitista na imagem.
ResponderExcluirExcelente texto.
Sim, Marcélia. Inclusive, como negócio e mídia, repare como o esporte feminino é erotizado. Observe os uniformes. Trata-se de uma estética dominada pelo patriarcado em todas as suas versões, liberal ou pudica
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