Existência e presença criadora em Paulo Freire
Texto escrito para uma conversa no Colégio
Estadual Paulo de Frontin (RJ), no dia 4 de abril. Encontro organizado pelo Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - PIBID de Artes da UERJ.
Conversa que reuniu licenciandos do PIBID e professores do colégio.
Uma conversa sobre Paulo Freire em uma escola
pública é realmente gratificante para quem se interessa pela obra e trajetória
do autor. No meu caso, uma satisfação também porque lecionei na rede municipal
do Rio de Janeiro e é sempre revigorante esse retorno ao chão da escola, onde,
afinal, tudo de importante realmente acontece.
*
Eu me recordo agora de um episódio entre as
minhas vivências na última escola municipal em que lecionei. Logo na minha
primeira semana naquele lugar, andando pelos corredores, vi um rapaz lendo
Paulo Freire, sentado em um canto. Não me recordo o ano ao certo. 2002, talvez.
Bem no início do nosso século, portanto.
Fiquei curioso sobre aquele interesse tão inspirador, um servidor da escola
lendo Paulo Freire! Conversei com ele. O rapaz era inspetor e estava lendo
Paulo Freire porque era aluno do curso de Pedagogia.
Depois de 15
anos aproximadamente, a imagem daquele rapaz lendo Paulo Freire já aparece para
mim enevoada pelo tempo. Provocante ainda, no entanto. A conversa poderia
começar exatamente a partir desta questão: por que ler Paulo Freire hoje ainda? Paulo
Freire nos deixou no ano de 1997. Continua relevante conhecer seu pensamento?
Poderia contribuir para a nossa prática, agora que o século XXI avança?
Acredito que
Paulo Freire permanece atual. Ele produziu uma vasta obra que inúmeros leitores
ainda procuram. Trata-se de uma obra significativa porque sempre foi coerente
com as questões do seu tempo. Por outro lado, isso não seria também um limite,
lembrar Paulo Freire agora, diante de uma nova era, com
contextos que ele não conheceu ou não teve tempo de conhecer muito bem? Na verdade, o que compreendemos com a nossa atualidade ainda não apresenta uma distância absoluta em
relação à época em que Paulo Freire viveu. O que somos é uma constituição de
processos largos no tempo. O nosso tempo “vai longe”. E Paulo Freire está ainda
muito próximo das nossas vivências. Ele não é uma “carta fora do baralho”.
Por outro lado,
Paulo Freire pensava com “futuridade”. Pensamento amparado no presente, mas
utópico, Paulo Freire também pensou para o “amanhã”. Ele fazia isso
reconhecendo a historicidade das sociedades e se permitindo sonhar, através da
sua aposta na mudança e na transformação. Pensava também de forma projetiva,
podemos assim dizer, de modo que a sua influência poderá ser sentida durante
muito tempo, ao longo do século XXI. Diante dos nossos problemas no campo
educacional, contamos com um importante aliado se a nossa curiosidade em
relação à sua obra for dedicada. Seria, na verdade, um desperdício ignorar o
seu legado.
Penso que a
melhor atitude em relação ao seu pensamento é manter uma determinada tensão
entre duas épocas que não se distanciaram completamente: o mundo que Paulo
Freire conheceu durante a sua vida e aquele que nos une à “atualidade”. Paulo
Freire conheceu praticamente todo o século XX. Nasceu em 1921, apenas três anos
após o término da 1ª Guerra Mundial. Sua geração de intelectuais tem
referências condicionadas pela história do período. Não se pode perder isso de
vista diante do agora. Portanto, manter
Paulo Freire atual é dialogar vivamente com muitas questões que ele também não
conheceu, ignorou ou apenas relativizou a importância.
*
Especificamente
para o nosso encontro, diante de tantos aspectos e questões que poderiam ser
percorridos na obra de Paulo Freire, gostaria de propor uma conversa sobre a
“criação”, tema que vai ao encontro das preocupações de todo estudante de
artes, mas também de todos os professores.
Como Paulo
Freire problematizou o ato criador? As referências sobre estética na
obra de Paulo Freire são significativas e variadas.
Inicialmente
gostaria de observar que em toda a obra de Paulo Freire há um adoçamento sobre
a experiência estética como um dos fios da rede em que tece a sua concepção de
educação. Em seu último livro publicado ainda em vida, Pedagogia da Autonomia, de 1996, Paulo Freire (2015, p. 139) assim
caracteriza a “experiência total” da “autenticidade exigida pela prática
educativa”: “diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética
e ética”. Portanto, indiscutível que considerasse a experiência estética como
um componente indestacável da “experiência total” da prática educacional. É o
que dá sentido apropriado ao uso, algumas vezes, da palavra “boniteza”, inclusive,
na sequência mesmo da frase anteriormente citada. Ela continua assim: “a
boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade”.
Significativamente, a palavra aparecerá em outras passagens do livro também.
Em uma
entrevista publicada originalmente em inglês, ano de 1978, Paulo Freire (2016,
p. 2) afirma: “Enquanto professores, somos políticos e também artistas”. Em
outra oportunidade, em uma conversa com Ira Shor, publicada em 1987, também em
inglês, diz Paulo Freire (SHOR, FREIRE, 1996, p. 509): “a amplitude do ato de
conhecer é desvelar um objeto, o desvelar dá ‘vida’. Esta é uma tarefa
artística porque nosso conhecimento tem uma dada qualidade de vida, cria e
anima objetos”. A apropriação de um objeto através do conhecimento atribui um
sentido a esse objeto antes inexistente. Por isso “dá vida”, “cria e anima
(esses) objetos”. Conhecer é antes uma criação do que uma reativa descoberta.
Por isso, na mesma conversa, observa sobre a “natureza estética da educação”.
Ainda em seu
primeiro livro, Educação e atualidade
brasileira, de 1959, Paulo Freire (FREIRE, 2001, p. 102) nos fala sobre a
necessidade de um “currículo plástico”. Na crítica que faz à formação do
professor primário, caracteristicamente bacharelesca, de aulas demasiadamente
teóricas e verbalizadas, Paulo Freire afirma a necessidade de uma preparação
profissional “prática”, mais atenta à nossa atualidade, realidade e emergência
democrática. “Currículo plástico” que inclusive rompe com o “rígido currículo
por matérias”. Paulo Freire empresta aqui, através da palavra “plástico”, um
sentido de maleabilidade criadora a um currículo que poderia se distinguir pelo
caráter não apenas inovador, mas capaz, através da ruptura que promove e das
potências que agencia, de favorecer uma educação condizente com as
transformações promissoras em curso na sociedade brasileira.
Seria possível citar muitas outras passagens
da obra de Paulo Freire em que atribui um sentido estético à educação. São
fragmentos, mas luminosos, como se fossem estrelas brilhando no universo
pedagógico que concebeu. O problema da estética, portanto, nunca foi estranho
ao pensamento de Paulo Freire, muito pelo contrário.
O que vou
tentar aqui, todavia, é encontrar um caminho mais articulado no interior da sua
obra para consubstanciar a ideia de uma “estética freireana”.
Em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire
afirma que “ensinar exige estética e ética” (idem, 1996, p. 34), em destaque,
porque é uma das sessões do livro. No entanto, quando procuramos o que diz ali
sobre “estética”, depois de encontrarmos, logo no início, uma consideração
sobre a importância de “uma rigorosa formação (docente) ética ao lado sempre da
estética. Decência e boniteza de mãos dadas”, a leitura pode seguir
decepcionante. É que ele parece falar
de ética, mas não de estética. Esse é o principal desafio para aqueles que
buscam essa discussão na sua obra: para além de alguns fragmentos, o problema
da estética realmente só aparece de forma notável
na exposição integral da sua concepção de educação, sem constituir um
problema teórico à parte.
Para discuir a questão da “criação”
na obra de Paulo Freire é preciso explorar a sua própria concepção de educação,
antes de tudo. E aí vamos descobrir que talvez pudéssemos apropriadamente formar
uma imagem triangular com os seguintes vértices: Homem – Ser Mais – Criação. Proponho
que essa é a imagem que precisa ser formada para prosseguirmos com a discussão
a respeito do significado do “ato criador” na obra de Paulo Freire. Por quê? A concepção de educação de Paulo Freire é indestacável de determinada antropologia. Para dizer sobre a
educação, Paulo Freire formula primeiro uma conceção de homem. Que concepção é essa?
*
A via de investigação para discutir o problema da criação no pensamento de Paulo Freire é o conceito de ser mais.
Na Pedagogia do Oprimido, de 1968,
Paulo Freire fala-nos de uma vocação ontológica e histórica
de ser mais: “Os oprimidos, nos
vários momentos da sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua
vocação ontológica de ser mais” (2006,
p. 59). Mas o que é ser mais?
Paulo Freire (ibidem, p. 83/84) observa o
inacabamento como uma propriedade da
existência humana. Na verdade, todos os seres vivos são inacabados, mas existe
uma especificidade humana: “diferentemente dos outros animais, que são apenas
inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Tem a
consciência de sua inconclusão”. Portanto, é a consciência do inacabamento uma
propriedade humana, uma condição para uma existêcia caracteristicamente vivida
como transformadora. Somos “seres que estão
sendo” (ibidem, p. 83), ou seja, a existência humana – porque não fixada – acontece
sempre através da mudança em relação ao mundo. Esse é o ser mais que afirma Paulo Freire.
Essa discussão aparece em Pedagogia
do Oprimido quando analisa o que chamou de “educação bancária”, prática
educativa “imobilista”, meramente transferidora de conteúdos, “fixista”, que
ignora a abertura da existência humana para a sua condição “histórica”,
impermanente. Esse foi, sabemos disso, o grande embate educacional e político
de Paulo Freire: a defesa de uma educação conscientizadora, crítica e
transformadora, uma educação que não estivesse, então, em desacordo com a vocação ontológica de ser mais. A
humanização, para Paulo Freire é o “ser mais” face à nossa permanente
inconclusão, vocação que apenas se concretiza através da busca – que, fundamentalmente,
a educação bancária recusa. Diz Paulo
Freire (ibidem, p. 90): “Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo”.
Em Pedagogia da Autonomia, Paulo
Freire (2015, p. 50) retoma sua ontologia
reafirmando a relação de necessidade entre inacabamento e existência remetendo-a
à noção de “experiência vital”: “Na verdade, o inacabamento do ser ou sua
inconclusão é próprio da experiência vital”. Ao insistir na especificidade da
condição humana, “só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou
consciente”, dimensiona a experiência estética como uma propriedade do ser “na
proporção que o corpo humano vira corpo consciente, captador, apreendedor,
transformador, criador de beleza” (ibidem, p. 51). E já no final do livro,
observa: “Jamais foi fraca em mim a certeza que vale a pena lutar contra os
descaminhos que nos obstaculizam de Ser
Mais” (ibidem, p. 142).
Nas duas obras em que Paulo Freire apresenta de forma mais sistemática o
conjunto do seu pensamento, é possível perceber como fundamenta sua concepção
de educação, sempre articulada a uma compreensão a respeito do que é o homem. E é também acompanhando
essa tecitura que melhor percebemos como a experiência da criação foi ressaltada por Paulo Freire como uma intensidade
humana. Contudo, importante observar que a maneira como uma sociedade se
organiza interfere na vocação ontológica
de ser mais e obtaculiza seu “caminho”. Portanto, a grandeza humana é
também resultado da luta, de uma conquista em favor da plenitude da existência.
No seu livro Educação e Mudança,
de 1979, uma reunião de quatro artigos, a elaboração de uma discussão mais
centrada nos temas da mudança e da transformação social, Paulo Freire apresenta
de maneira bastante instigante o problema da criação, constituindo uma fonte
preciosa para aqueles que buscam em sua obra elementos mais constitutivos do
campo de estudos da estética na educação.
No artigo A educação e o processo de mudança social, diz Paulo Freire
(2016, p. 41): “Em todo homem existe um ímpeto criador. O ímpeto de criar nasce
da inconclusão do homem. A educação é mais autêntica quanto mais desenvolve
este ímpeto ontológico de criar. A educação deve ser denisibidora e não
restritiva”. E no artigo O papel do trabalhador social no processo de mudança,
ele diz: “Se o homem é capaz de perceber-se, enquanto percebe uma realidade que
lhe parecia ‘em si’ inexorável, é capaz de objetivá-la, descobrindo sua
presença criadora e potencialmente transformadora desta mesma realidade”. As
concepções de “presença criadora” e “ímpeto criador” destacam uma condição
humana inseparavelmente estética e pedagogicamente relevante.
Para Paulo Freire, o ato de conhecer é criador. Conhecer não é, na
pedagogia freireana, uma “revelação” que se faz no sentido de espectar algo já
existente que espera ser encontrado e estritamente comprovado. Conhecer é um
ato projetivo, que desenha sucessivos caminhos para a presença no mundo, uma
inquietação nascida da própria consciência de existir. A “humanidade” é uma
atividade: humanizar-se. Problematizar o campo da estética na obra pedagógica
de Paulo Freire é adentrar sua concepção de existir/ser mais e perscrutar o
sentido criador que atribui à presença humana no mundo. Diante das colisões da existência,
o ato criador é o salto do ser no cosmos, desde a mais diminuta até a mais
irrestrita corporalidade que expande a vida. A educação deverá ser a prática dessa
liberdade ou precisará ser transformada com a sociedade que a pratica.
Referências
FREIRE, Paulo. Educação e
mudança. 37ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2016.
______. Educadores são políticos e
artistas — uma entrevista com Paulo Freire1. Periódico
Permanente, São
Paulo, n. 6, p.1-8, dez. 2016. Disponível em:
<http://www.forumpermanente.org/revista/numero-6-1/conteudo/educadores-sao-politicos-e-artistas-2013-uma-entrevista-com-paulo-freire>.
Acesso em: 28 dez. 2016.
______. Pedagogia da autonomia. 51ª
ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015.
______. Pedagogoa do oprimido. 44ª
ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.
SHOR, Ira; FREIRE, Paulo. O professor como artista. In: GADOTTI, Moacir.
Paulo Freire: uma bibliografia. São
Paulo: CORTEZ/Instituto
Paulo Freire; Brasília/UNESCO, 1996. p. 509.
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