Os Transgressores



Para Renata Bonfim

O cinema nacional também fala da educação

Para os interessados em assistir sobre a educação brasileira na tela do cinema, as últimas duas semanas foram incomuns. Desde o último dia 15, no Rio de Janeiro, é possível assistir aos filmes Nunca Me Sonharam e Os Transgressores. O primeiro, no Espaço Itaú de Cinema, e o segundo, na Estação Net Botafogo. Sobre Nunca Me Sonharampubliquei aqui, na semana passada, algumas considerações. Agora vou escrever sobre Os Transgressores, documentário de Luis Erlanger.

O que me levou ao filme Os Transgressores foi Paulo Freire, um dos personagens do documentário. Filme político, contemporâneo naquilo que leva à tela, Os Transgressores apresenta outros três personagens, além de Paulo Freire: Carlos Tufvesson, Celso Atayde e Lucinha Araujo. O filme de Luis Erlander discute o Brasil hoje, mostrando nossas fraturas sociais e culturais através do trabalho de quatro personalidades “transgressoras”, visionárias e militantes, cujas dedicações de suas vidas apontam outros caminhos, mais includentes e solidários para o país.

Fui ao cinema, é verdade, com algum receio sobre a oportunidade de se juntar, em aproximadamente 70 minutos, aparentemente de forma aleatória, ou pelo menos de acordo com os interesses apenas pessoais do diretor, um filme com um dos educadores mais importantes do século XX, mundialmente reconhecido e influente até hoje, ao lado de personagens atuais tão distintos: um estilista e militante da diversidade sexual, um produtor cultural e também militante das favelas e a criadora de um abrigo para crianças portadoras do vírus da AIDS.   

O documentário é realizado com depoimentos gravados dos personagens escolhidos, exceto Paulo Freire (1921 – 1997), e claro, a participação de pessoas que poderiam falar sobre a relevância transgressora de cada uma delas e de imagens documentais já disponíveis. Há ainda a participação do ator Othon Bastos, a voz narrativa do filme.

Os quatros personagens retratados não parecem exatamente partilhar de uma “visão de mundo” comum e, na verdade, muitos outros poderiam ser escolhidos sem alterar muito as características do filme. O que parece inicialmente ser uma escolha relativamente aleatória, feita apenas a partir da admissão, um pouco genérica, de que são “transgressores”, revela-se, no entanto, uma experiência estética interessante para quem assiste. O filme incita imagens bem mais inspiradoras do alcance e resultados das lutas pontuais e localizadas do que se ocupa com o labirinto da “consciência política”.

Tampouco Luis Erlanger imprime ao filme uma mensagem finalizada a propósito do seu conteúdo. Trata-se de uma visão, também transgressora, de que cabe ao espectador assumir uma espécie de ativismo com as imagens e terminar o próprio filme. Como um caleidoscópio, distintas combinações podem ser feitas, movimentando os personagens. O filme não está pronto, é para ser montado também por quem assiste. Foi o que fiz.

Como já disse, fui levado ao filme pelo personagem Paulo Freire. No lugar de desistir do resto do filme, no cinema mesmo, passei a pensar em Paulo Freire também a partir de outras pessoas, ou seja, como Paulo Freire, o único personagem já desaparecido que está no documentário, pode e deve ser reinterpretado contemporaneamente, observando a complexidade do presente no lugar do recorrente ressentimento que o tempo parece imprimir.

O Paulo Freire que aparece é, sobretudo, o educador da experiência de alfabetização em Angicos, a experiência do exílio e seu posterior retorno ao Brasil, até ser secretário de educação da gestão de Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo. E agora, depois da sua trajetória e morte, como lembrar Paulo Freire? No filme, é através de Carlos Tufvesson, Celso Atayde e Lucinha Araujo, que Paulo Freire ganha contemporaneidade. Ou, então, não poderá ser atual. Ou seja, o legado de Paulo Freire só poderá fazer sentido diante do nosso tempo, ao lado das pessoas que agora vivem e lutam na condição de suas existências.

As “outras pessoas”, para sermos fieis ao pensamento de Paulo Freire, devem provocar, antes de tudo, a nossa curiosidade. Não se trata de dizer que as novas formas de luta são mais produtivas e as de gerações anteriores estão ultrapassadas. Apenas compreender que é através do que agora emerge que descobrimos a nossa época, com os seus problemas específicos e caminhos próprios, recriando toda e qualquer ideologia, todo e qualquer autor, toda e qualquer teoria da educação. Paulo Freire vive através dos vivos.     

*

Enquanto escrevia as minhas considerações sobre o filme recebi a triste notícia do falecimento de uma aluna do Curso de Pedagogia do Campus Nova Iguaçu da UFRRJ, onde leciono. Chama-se Renata Bonfim. Ela foi minha aluna agora, no primeiro semestre de 2017, exatamente na disciplina Movimentos Sociais e Educação, em que estamos estudando Paulo Freire. Apesar do breve contato, no início das aulas, quando trocávamos algumas palavras ou algum rápido gesto de cortesia, fico com a imagem de que Renata era uma moça cordial e amável.

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Título: Os Transgressores
Direção: Luis Erlanger
País: Brasil
Ano: 2017



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