"Achei esse escravo aqui no fumódromo! Quem for o dono avisa!"
Agora em março, o episódio da fotografia de um homem negro circulando em um grupo
de WhatsApp com uma legenda identificando-o como um escravo fugitivo é mais um
entre outros tantos casos de máxima gravidade racista e, infelizmente, não
muito incomuns na sociedade brasileira. Ao ver a imagem percebi que ela reunia
alguns elementos para uma discussão um pouco mais reveladora sobre o que
significa do que aquilo que deixa ver o impacto mais imediato da notícia. É o
que eu gostaria de desenvolver aqui.
Basicamente, a história é a seguinte: João Gilberto Pereira Lima,
jovem estudante da FGV, em São Paulo, foi fotografado por outro estudante em um
ambiente da instituição. Ele foi chamado pela própria FGV para tomar
conhecimento da situação e a seguir registrou um boletim de ocorrência por
injúria racial. O autor da foto foi suspenso pela faculdade por três meses e a
apuração dos fatos ainda poderá resultar na adoção de medidas complementares.
João Gilberto espera que a história termine com a expulsão do ofensor.
Ao ver a reprodução da postagem feita no WhatsApp imediatamente
associei aos anúncios que eram publicados em jornais, durante a escravidão no
Brasil, comunicando a fuga de escravos:
As três imagens são anúncios publicados na década de setenta do
século XIX. Foram extraídas do livro da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, Retrato
em branco e negro. A edição original é da Companhia das Letras, mas o
volume que consultei foi editado pelo Círculo do Livro.
Aproximadamente 150 anos depois, é como se o agressor do estudante
João Gilberto estivesse respondendo a um desses anúncios!
A legenda, aparentemente fora de época, não apenas entrega a
atualidade do racismo na sociedade brasileira, mas também alguns elementos
interessantes da sua trama. Legalmente a escravidão termina no ano de 1888. O
que existe de supostamente engraçado na legenda é, na verdade, o mal disfarçado
desejo de reavivamento da escravidão. O deslocamento no tempo não é explorado
de forma irônica para questionar a sua própria passagem, como uma indagação
sobre o que, afinal, mudou a respeito das relações raciais no país.
Pelo contrário, ignorar o transcurso do tempo na narrativa da
legenda visa desprezar suas transformações e reafirmar as práticas e os valores
que fazem parte da formação violenta da sociedade brasileira e estão na raiz
dos nossos problemas sociais mais graves hoje. Se a escravidão legalmente deixa
de existir no ano de 1888, subjetivamente ainda compõe o imaginário das elites
– e de uma certa forma, é justo e corajoso perguntar, até que ponto foi
definitivamente suplantada na subjetividade de todos nós, todos que não os
negros.
A pretensão de suspender o tempo para assegurar que mudanças não
aconteçam não deve ser vista aqui como uma ingenuidade da imaginação. É preciso
perceber a eficácia da estetização da
escravidão na narrativa. É aí que se encontra sua pedagogia da imagem. O que o
agressor realiza é uma performance, evocando de modo teatralizado uma
imagem subjugada do negro na rede do
WhatsApp, dirigida a um público cativo, que faz parte do grupo restrito em que
a mensagem foi postada, que ele avalia como interessado no conteúdo racista da
sua publicação.
Portanto, na verdade, não se trata de uma narrativa “fora do
lugar/tempo”. O desempenho da mensagem explora o que há de mais arcaico e
reacionário na mentalidade social do país para obter a permissão (cumplicidade,
indiferença ou imobilismo) na propagação do seu conteúdo racista. O que existe
de insensato na mensagem não pede passagem pela via estrita da razão histórica,
mas percorre um condutor mais simbólico e figurativo para alcançar a sua
realização. Por isso seu caráter mais fingido e performático, no lugar de uma
explanação lógica e intelectual.
Evidentemente, a via do conhecimento histórico interdita o apelo à
escravidão que existe na mensagem, mas seu reavivamento é uma especulação para
ser semeada como um ideal a que se pode chegar de forma correspondente
subalternizando o negro na atualidade. Até agora me ative à narrativa da
legenda. Foi assim que fiz quando li na internet sobre o ocorrido, mas ao olhar
especificamente para a imagem fotográfica, percebi que outros elementos da
mensagem ainda podem ser destacados para a essa discussão.
Ao contrário do que provavelmente esperava o agressor, sua
mensagem foi denunciada. A imagem mesma contém informações que fazem duvidar
que a mensagem seria aceita de forma garantida por todos os seus colegas. João
Gilberto está na companhia amiga de duas jovens brancas, quem sabe uma delas
sua namorada. É a imagem de alguém que está “de boas”. O ressentimento do
agressor é evidente. O conteúdo mais bizarro da mensagem racista, ou seja, seu
recurso à escravidão, é demonstrativa da dificuldade do agressor de lidar com o
real.
Trata-se de uma característica do racismo contemporâneo no Brasil.
A luta histórica dos negros tem como resultado emancipações que são
cotidianamente construídas. Conquistas que são insuportáveis para os segmentos
mais reacionários entre os mais beneficiados socialmente com o racismo
estrutural do capitalismo no país. Para os seus representantes nas instituições
de ensino com algum prestígio, pessoas como João Gilberto não deveriam
ultrapassar uma fronteira, não deveriam estudar, por exemplo, na FGV.
As chamadas “guerras culturais” têm transcorrido nessa disputa
pelo visível e o invisível de uma sociedade, pelo que pode ou não ser visto. O
racismo – mas também a homofobia e o machismo – é uma política de segregação
vigilante da presença no mundo, uma prática de controle ou eliminação dos
corpos de acordo com a sua ocupação dos espaços e exibição da existência. Qual
a nossa atuação como educadores em favor das múltiplas visibilidades? Qual a
nossa pedagogia da imagem?
Comentários
Postar um comentário