Imagens da vida nas escolas: estéticas e resistências
Para o convite de participação na mesa “Culturas e potências das
periferias do Rio de Janeiro”, que ocorrerá no dia 3 de outubro de 2018,
durante o 10º
Seminário Acadêmico do Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e
Comunicação em Periferias, penso em
conversar sobre a escola pública e os jovens. A ideia é discutir como as
presenças das juventudes populares nas escolas acontecem como “resistências” à
concepção e prática da educação a elas destinadas. Resistências que nos
desafiam a pensar outro paradigma para a educação pública reservada à maioria
popular.
A ideia é desenvolver a minha apresentação através
de algumas imagens, fotografias que fiz em duas escolas públicas, uma na zona
norte da cidade do Rio de Janeiro e outra em Seropédica, Baixada Fluminense, que
acredito indiciais para pensar a questão.
A escola pública brasileira coloca-nos um enorme desafio: o que é
“escola de qualidade” para as classes populares? De outro modo: Qual educação
queremos para as infâncias e juventudes populares?
Na verdade, são “problemas”, no plural. Portanto, qualquer abordagem
unilateral sucumbe à sua própria insuficiência analítica. Eleger um único
problema como o principal é uma abordagem improdutiva.
Diante da tentativa de isolar um problema principal, logo nos
deparamos com propostas sem noção, tipo militarização das escolas, rever a
formação dos professores nas universidades ou ainda a adoção de uma “base
nacional comum curricular”. A questão
não é tornar mais rígidas as práticas de poder, reformar os educadores ou
controlar o currículo como uma suposta saída para os nossos variados problemas
educacionais. Nada disso poderá funcionar adequadamente.
Penso que é preciso encontrar uma abordagem mais convergente para a diversidade
de questões que hoje fazem parte da educação popular. É uma questão de tato,
antes de tudo. Estamos falando da educação da maioria, precisamos inicialmente
nos orientar por uma aproximação mais consistente. Toda solução vertical terá o
mesmo fim que sempre teve: a
desqualificação de todos os personagens da vida nas escolas e a ineficácia dos
planos. Mais do que uma “solução”, precisamos de uma de maior proximidade, na
verdade. Essa é a questão n° 1.
Precisamos reconhecer a alteridade dessas populações e admitir a
maioridade das suas vozes. Nosso encontro com as classes populares nas escolas
deve necessariamente ser relacional, uma vez que desde sempre foram deixadas à
margem ou “incluídas” de forma brusca nos sistemas escolares – não incluídas,
então. Historicamente, a universalização da escola no Brasil foi concebida e
realizada como uma “invasão cultural”.
Em um livro publicado em 1969 no Chile, já no exílio, Extensão ou comunicação?, Paulo Freire
discute o trabalho do engenheiro agrônomo como educador, em projeto
desenvolvido com camponeses, e situa sua atividade como uma invasão cultural
quando acontece sem os elementos característicos do diálogo. Diz Paulo Freire
(2006, p. 41): “o invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos
de sua ação”.
A história característica da educação pública brasileira destinada à
maioria é a da invasão cultural. É claro, muitas iniciativas contrárias e
muitos educadores críticos atuaram e continuam atuando de outro modo. Então,
estou me referindo à ideologia dominante da educação brasileira, aquela que se
impõe, ou melhor, que tentam impor, no governo das escolas e nos seus
cotidianos, de um modo geral. Diante dos esforços emancipatórios que também nos
cotidianos fazem da educação outra coisa, tecendo outras direções, é hora (já
passou da hora, na verdade) de assumirmos um paradigma desviante, exatamente
popular radicalmente.
Além de Paulo Freire, penso que outra referência importante para
pensarmos políticas educacionais com outro tato na relação com as classes
populares, são os chamados Estudos
Culturais. Contemporâneos da “revolução freiriana”, também dos anos 60, os
Estudos Culturais britânicos nos ajudam a pensar os modos de vida e as
identidades das classes populares de uma forma mais autêntica para elas.
Considero que a primeira grande conquista dos Estudos Culturais para
uma outra visão das classes populares foi despir o véu sagrado que cobria o
conceito de cultura, véu que ainda vestimos quando afirmamos que nossos alunos
e suas famílias “não têm cultura”. Uma das coisas que os Estudos Culturais nos
ensinaram foi enxergar a cultura como algo muito frequente na vida de todo
mundo. Como escreveu Raymond Williams (2015, p. 4) um dos criadores dos Estudos
Culturais na Universidade de Birmigham: “A
cultura é algo comum, ordinário: devemos começar por aí”.
A “redução” da cultura a um status ordinário faz dela uma condição
suficientemente comum para considerarmos o elemento convergente para o encontro
educador-educando. A partir das questões de cultura, a complexidade e
abrangência dos “problemas educacionais” podem ser apropriadamente discutidos
em plano comum, no lugar de isolar diferentes situações da educação e imaginar
que cada uma delas é a resposta certa – o “verdadeiro problema” – para lidar
com os desafios da educação popular.
É a cultura a experiência que melhor poderá traduzir e mediar o nosso
encontro, como educadores, com as classes populares, nas escolas.
Como pesquisadores, creio que constitui um desafio também a
demonstração das questões de cultura que constituem as oportunidades dessas
conversas, esses diálogos entre as políticas educacionais e os educandos das
classes populares. É o que gostaria de demonstrar aqui através das imagens dos
cotidianos escolares.
De forma muito direta, não raramente o encontro entre professores/as e
alunos/as nas escolas públicas é feito de atritos e algum mal-estar (às vezes maior,
às vezes menor), mas as inconveniências de diversos tipos são bem comuns. Sobre
esses “desencontros”, não seria inapropriado dizer que existe a “resistência”
do/a aluno/a como uma prática cultural.
Ainda no campo dos estudos culturais, observa João Freire Filho (2007,
p. 20): “A intervenção engajada dos cultural
studies se notabilizou, no final dos turbulentos anos 1960, por tentar
situar o universo das ‘práticas significantes’ e da ‘vida cotidiana’ dentro de
uma teorização neomarxista a respeito dos usos da cultura na reprodução e no
questionamento social”. A presença dos jovens nas escolas é uma viva produção
cultural comunicativa sobre os significados que atribuem ao lugar, e criativa
sobre os modos de ali existir.
Entendo que as pesquisas com os cotidianos podem ser muito
explicativas sobre esses encontros/desencontros e, a partir delas, políticas
públicas para a educação das classes populares podem se informar sobre os
melhores caminhos e correspondências mais adequadas à educação dessa maioria.
Através das imagens abaixo, gostaria de sugerir alguns significados
culturais da presentificação dos jovens nas escolas, o ponto de encontro para
os diálogos necessários, sem os quais não existe propriamente educação popular.
Vou dividir as imagens em dois grupos: o primeiro são imagens que fiz
em uma escola municipal do Rio de Janeiro, entre os anos de 2004 e 2005. Eu
lecionava História na escola, no ensino fundamental. São todas imagens do meu
cotidiano de professor com meus alunos e minhas alunas. O segundo grupo são
imagens do Colégio Técnico da UFRRJ. Não sou professor do colégio, mas da
universidade, desde 2006. São imagens que fiz entre 2008 e 2016. As duas
primeiras imagens do segundo grupo não são minhas e não tenho informações sobre
a data.
E M Uruguai
Quando comecei a fazer fotografias na última escola onde lecionei na
rede pública municipal do Rio de Janeiro, ainda usava uma “antiga” máquina
digital, equipamento que, no entanto, revolucionou o registro dos cotidianos,
pelas possibilidades do seu uso e crescente preço acessível.
No entanto, minha pretensão não era fotografar meus alunos e aqui uma
situação se apresentou como um interessante enigma. O fato é que pretendia
fazer apenas registros dos espaços da escola, salas de aula, corredores ou
áreas livres. Meus/minhas alunos/as quando perceberam a minha presença com uma
máquina pediam para serem fotografados, mas nunca pediam cópias das imagens,
que poderiam ser enviadas por e-mail ou impressas em lojas que possuíam esse
serviço, por exemplo. Sempre achei isso curioso: por que se sentiam atraídos
pela fotografia, mas não parecia tão importante ficar com elas?
Hoje tenho uma resposta para essa questão. O que agora entendo melhor
do que antes é a importância que atribuíam à demonstração das suas existências,
uma exibição que viam como um momento exuberante diante da câmera fotográfica.
Há uma procura pela forma que não pode ser entendida senão como uma
busca estética. Apesar de tudo, estão ali dispostas à beleza.
Contrariando a asfixia do lugar, procuram mostrar-se de forma
entusiasmada, afirmativa da vida.
Qualquer possibilidade que lhes dá o espaço é a oportunidade para alguma admiração.
Maravilhas que o governo das escolas constrange sem cessar.
Seus modos
de solidariedade são potências da educação popular.
As pequenas insurgências são integridades que preservam.
As
tecnologias fazem parte da vida nas escolas, introduzidas pelos próprios alunos.
Toda comunicação
é presença; necessário compreendê-la e com ela dialogar.
CTUR – Colégio Técnico da UFRRJ
Ao ingressar
na UFRRJ, o regime de Dedicação Exclusiva me obrigou a abandonar os empregos
que mantinha naquela oportunidade. Um deles foi exatamente a rede pública
municipal do Rio de Janeiro. Para o meu trabalho com fotografias dos cotidianos
foi um problema imediato: eu havia perdido para sempre a possibilidade de fazer
fotos com os meus alunos e minhas alunas do Ensino Fundamental. Foi aí que
descobri o CTUR, o Colégio Técnico da minha própria universidade. Por outro
lado, a foto que encerra a série anterior havia indicado outro caminho para as
minhas fotografias. Não mais os corpos, mas os rastros, as marcas e os restos
passaram a constituir o meu interesse para o registro de suas presenças. Ou
seja, não mais os alunos e as alunas presentificados através dos seus gestos,
movimentos ou ações, mas o que deixavam nas superfícies da escola como textos
diversos das suas identidades no lugar.
Imagem
obtida no Centro de Memória da UFRRJ.
Imagem
obtida no Centro de Memória da UFRRJ.
A contrapelo
das imagens oficiais, os jovens deixam outras marcas, às vezes onde não
deveriam, porque proibido. “A vida é
bela”: O que deveria ocupar o pensamento do jovem artista da vida cotidiana que
no centro de outras escritas, deixou a sua mensagem? Qual impulso guiou seu
êxtase sobre a beleza da vida?
Imagino o impacto da passagem do tempo para esses jovens, que
ingressam no colégio com 15, 16 anos e ali ficam durante três anos, quando a
vida já terá outra gravidade para eles. Ao se formarem, do que se despediram
para sempre? Qual urgência assalta suas vidas naqueles anos?
Atraído pelas
cores fiz a imagem das meias sem o tênis. Os jovens nas escolas deveriam ser o
verdadeiro centro de gravidade da educação.
Que educador algum duvide que o estudante tem voz, elas estão por toda
a escola. Ouvir suas vozes é condição para o necessário diálogo que nos fala
Paulo Freire.
O acontecimento das ocupações proporcionou uma nova visibilidade dos
estudantes. A escola vista bem de perto, observadas suas imagens, concluímos
que, no entanto, as escolas sempre estiveram ocupadas. Nossas pesquisas
precisam demonstrar isso, as escolas sempre foram deles.
Referências
FREIRE FILHO, João. Reinvenções
da resistência juvenil: os estudos culturais e as micropolíticas do
cotidiano. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
FREIRE, Paulo. Extensão ou
comunicação? 13ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. São Paulo:
Ed. UNESP, 2015. p. 3-28.
Excelente texto. Sua apresentação inspirou muitos relatos dos professores durante as aulas na Graduação sobre como essas imagens trazem muitas questões para pensarmos sobre e com as escolas. Parabens!
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirTexto lindo, envolvente e cheio de questões que nos chamam para outras questões... Obrigada.
ResponderExcluirObrigado!
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