Segunda Chamada
Uma escola estadual de periferia com o nome de Carolina Maria de Jesus
e voltada para alunos trabalhadores no horário noturno. Não poderia perder o
seriado exibido pela Globo às terças-feiras à noite. Pensei: “Nossa, parece bem
antenado com a questão da cultura na escola pública e as autênticas demandas
populares”. Fiquei especialmente sensível ao nome de Carolina Maria de Jesus,
leitura presente no meu curso de Estudos Culturais na graduação em Pedagogia do
Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro –
IM/UFRRJ/Nova Iguaçu.
Tenho escrito aqui no blog sobre “filmes de professores” e achei conveniente
escrever também sobre um seriado nacional com o tema. Eu me lembro de ter
assistido na TV a Cabo, no começo de 2000, alguns episódios do seriado norte-americano
Boston Public. Mais recentemente, vi
na Netflix a 1ª temporada de Merlí, seriado espanhol bastante conhecido.
Agora seria uma oportunidade de
assistir algo com a nossa realidade, com os nossos problemas educacionais, com a
classe popular que frequenta a escola pública no Brasil e seus professores.
Já foram exibidos dois episódios de Segunda Chamada. Até agora,
não estou gostando muito, pelo menos não tanto quanto queria. É verdade,
existem bons personagens. Há o mototaxista cansado Maicon Douglas (Felipe
Simas) que dorme durante a aula. Outro aluno oferece um remédio com efeito
estimulante, ele passa mal e quase morre na escola. Solange (Carol Duarte) é
uma jovem que vaga pela escola com um bebê no colo, sem saber qual destino para
a sua situação de desamparo. Um aluno é encontrado pela professora Lúcia (Debora
Bloch), de Língua Portuguesa, se prostituindo nas ruas. A transsexual Natasha (Linn
da Quebrada), é hostilizada na escola e vive sempre ameaçada pela violência
homofóbica na cidade.
A professora Lúcia está voltando de uma licença. Flashes sugerem uma
situação traumática vivida por ela na escola. Marido em casa adoecido
aparentemente por um AVC. Vive um romance com o diretor da escola, Jaci (Paulo
Gorgulho), também casado. A professora de Matemática, Eliete (Thalita Carauta),
complementa a sua renda com a venda de roupas intimas, acessórios e perfumes
para os outros colegas. O jovem professor Marcos André (Silvio Guindane) teve o
carro roubado na porta da escola no seu primeiro dia e ainda por cima só está
ali em razão de um erro administrativo. Leciona Artes, mas o que a direção
esperava era alguém para a vaga de Biologia. Outra professora, Sônia (Hermila
Guedes), de História e Geografia, vive uma intensa amargura.
Como ex-professor de escola pública, posso dizer que os dramas
expostos são condizentes com o que chamamos de “realidade”, mas não com a
afluência representada no seriado, pelo menos nos seus dois primeiros
episódios. Esse é o problema. O que assistimos é uma sucessão vertiginosa de
acontecimentos ruins na escola, pulando de personagem em personagem, com as
suas histórias sofridas e aparentemente insuperáveis. A atmosfera da escola é
asfixiante. Para narrar a calamitosa situação da escola pública e a vida
difícil de educandos e educadores, o enredamento mais flutuante da vida
cotidiana é sacrificado para acentuar inúmeros desastres pessoais.
Para ser justo, algumas situações mais interessantes até já apareceram,
contra o clima geral não apenas de abandono da escola pública, mas de ruína
humana no cotidiano escolar. Depois de sofrer preconceito de uma aluna mais
velha, Dona Jurema (Teca Pereira), na hora de usar o banheiro feminino, Natasha
vê sua professora mostrando para a turma como todos ali estão expostos à
opressão. Não vale a pena se destruírem ainda por cima. Se ainda existem
motivos para acreditar na competência da sala de aula, isso foi muito bem
demonstrado nessa cena que explora o próprio cotidiano escolar para discutir o
contexto social desfavorável comum.
Outra boa cena é a conversa entre o entusiasmado o professor Marcos
André, novato na escola, e a professora Eliete, que parece condenada a ficar
ali para sempre. Ele observa atento uma parede e a professora conta como ela
ficou cravejada de tiros. No entanto, ele diz que está prestando atenção em
outra coisa, a pichação que cobre a mesma parede: “Enquanto houver repressão,
haverá resistência”. É um bom momento do primeiro episódio, já que expõe o
conflito entre a esperança e a desilusão a respeito da educação a partir da
diferença do olhar que é dirigido a um mesmo ponto, que contém possibilidades
ambivalentes de compreensão.
São dois momentos que denunciam as violências que nos atravessam,
dentro e fora da escola, mas com uma resposta estética e politicamente potente.
Nesses dois primeiros episódios, podemos encontrar outras boas cenas que pensam
de modo ativo o cotidiano escolar. No entanto, não é a abordagem que dirige a
narrativa até agora. No segundo episódio, um matador de aluguel sequestra a
professora Lúcia que levou sua filha para casa, depois do bebê ter sido
abandonado por Solange na própria escola.
Professora Sônia, que se encontra permanentemente tensa devido aos maltratos
do marido, é sexualmente agredida por um aluno depois de rejeitar a sua
aproximação amorosa.
O que existe de significativo no cotidiano escolar é a sua resistência
às forças de afogamento da vida. Os cotidianos podem estar repletos de
adversidades e desastres, mas é ali também que a existência se dilata e aparece
como vitalidade. O cotidiano é o lugar da não desistência e me parece que no
contexto histórico da sociedade brasileira, essa é a política da imagem, a
escolha estética que precisa dirigir toda interpretação da escola pública e
popular diante do quadro depressivo que parece se impor. A aflição não pode
ocupar o primeiro plano analítico, mas a intensidade da existência é que deve
estar aí, conduzindo a narrativa.
Um seriado sobre a escola pública de periferia contribui para pensar a
educação brasileira se no lugar de mostrar enfaticamente o aperto desesperado
que se vive na escola, é capaz de interpelar o suposto esgotamento do lugar em
benefício do que se desloca da fatalidade e é futuridade, que representa o
emancipatório nos encontros, em oposição ao que é visto apenas como
aniquilamento da existência de todos. É preciso dizer que uma obra artística não
apenas reproduz o que diz enxergar; ela é, em si mesma, criadora de sentidos. Quais
sentidos sobre a escola púbica e popular Segunda Chamada pretende tecer
com seus espectadores?
Todo produto da cultura tem pretensões pedagógicas e não é diferente
com o seriado da TV. Existe uma pedagogia da imagem em Segunda
Chamada. Ainda estamos no segundo episódio. Vamos ver como as coisas
acontecem daqui para frente. A nota que escrevo aqui é a respeito do que já se
passou no seriado e o meu desapontamento com seus significados políticos a
respeito da escola pública e popular. Globo é largamente a principal emissora,
a de maior audiência. Não é o que Segunda Chamada quer mostrar, uma
suposta realidade que a precede e apenas reproduz como um seriado, mas o que o quer
nos dizer e fazer acreditar.
Não raramente os negócios empresariais das mídias se apropriam da
história e cultura popular para uma suposta demonstração de dignidade com elas,
assimilando superficialmente suas estéticas e linguagens, suas criações e
autenticidades. A ideia é parecer democrático e lucrar com isso. Negociações
são feitas para garantir maior representatividade e tudo parecer mais ético.
Concessões são feitas também. Luta é um predicado da classe popular no Brasil e
conquistas são obtidas por essa via. Lutas por posição que se intensificaram
muito nas últimas décadas. Os espaços são disputados, inclusive a respeito das
visibilidades na TV.
Dois comentários ainda:
Lúcia diz para os seus alunos que Carolina Maria de Jesus foi a primeira escritora negra a publicar um livro. Um erro factual inacreditável. Pelo menos cem anos antes, Maria Firmina dos Reis publicou o romance Úrsula. A história da redescoberta desse livro e sua autoria é conhecida. Não consigo entender como a pesquisa para o seriado deixou escapar essa informação. De todo modo, uma escola chamada Carolina Maria de Jesus é algo mesmo que precisa existir. Em Quarto de Despejo, ela diz: “(Minha mãe) queria que eu estudasse para professora. Foi as contingencias da vida que lhe impossibilitou concretizar o seu sonho”. A escolarização de Carolina foi duramente prejudicada, frequentando a escola menos de dois anos.
Segunda Chamada é uma produção audiovisual que poderia ser
utilizada nas faculdades de Educação, nos cursos de formação de professores.
Episódios exibidos e discutidos em diferentes aulas, como Currículo, disciplina
que leciono também, por exemplo. É possível aproveitar as mídias e as
tecnologias, o cinema e a TV, para pensar a escola contemporânea, dialogando
com a cultura e a sociedade do nosso tempo. Eu só conheci Linn da Quebrada agora, assistindo o seriado. Precisamos acertar o passo entre a formação de
professores e a formação da nossa época. Não há outro caminho para conceber a
educação popular. Fica para o final do seriado meu comentário mais definitivo sobre Segunda
Chamada.
*
Título: Segunda Chamada
Direção: Carla Faour e
Julia Spadaccini
País: Brasil
Ano: 2019
Me preocupa a romantização da profissão docente, quando a professora, personagem principal da trama se expõe em varios momentos, excedendo aos limites esperados por uma profissional. Mas ao mesmo tempo me vejo na escola, na minha realidade em que preciso ser bem mais do que me formei pra ser se não as coisas não acontecem. Então, qual é hoje o papel do professor? Gostei muito de suas poderações e essa série realmente deveria ser usada para discutir as questões reais do cotidiano da escola. Parabéns pela explanação e já aguardo seu comentário final sobre a série... se é que será final...
ResponderExcluir