Em louvor da sombra
“Nós, orientais, criamos sombras em qualquer lugar
e, em seguida, a beleza”.
Não conhecia o Junichiro Tanizaki (1886-1965) até
me deparar com este pequeno volume, Em louvor da sombra. Na torrente de
imagens das redes sociais, fui tocado pela gravura de Utagawa Kunisada (1786-1864)
e título. Comprei o livro. Ao ler o prefácio de Pedro Erber, descubro que Tanizaki
é um importante escritor japonês e que Em louvor da Sombra é um ensaio
muito conhecido do autor. “Em louvor da sombra”, me chamou atenção a frase
quando, poucas semanas atrás, começávamos o distanciamento social diante da
pandemia da covid-19. Agora que a nossa vida obscurece com as incertezas a
respeito de como seremos definitivamente afetados pela pandemia, valorizar a sombra
parece uma mensagem aberta da cápsula do tempo.
Em louvor da sombra, publicado em 1933, é
uma narrativa sobre a fruição estética japonesa que ameaçava desaparecer com a
modernização do país. Tanizaki escreve com grande sentimento sobre a idiossincrasia
cultural do Japão que vê sob ameaça com a penetração de ingredientes do
progresso no mundo ocidental mais desenvolvido e que a apropriação não se dá sem
a descaracterização da sua sociedade. É aí que entra a sombra como uma
experiência e um conceito japonês que o processo de modernização faz esvanecer.
Vejo as pessoas tão ansiosas pela “volta à normalidade”, negando até a profundidade
do que nos desafia, que em Louvor da sombra me pareceu um ensaio
provocante diante das nossas reações agora.
Tanizaki é um esteta. Toda a sua discussão está
centrada no problema da percepção do belo para o japonês. Em louvor da
sombra constitui uma observação sobre aspectos cotidianos e sociais, de costumes
e hábitos, que fazem da vida japonesa um modo característico de apreciação da
beleza. Referindo-se à arquitetura e às dependências da casa, seus ambientes e
decoração, dos utensílios e materiais usados, das cores e formas que preferem, passando
pela culinária e a roupagem, a fotografia no cinema e o teatro, Tanizaki enaltece
a superioridade da experiência da penumbra, do sombrio e da passagem do tempo,
que ele contrasta com a luminosidade, a transparência e o brilho que acompanham
a marcha da modernização.
A radiância ofuscante que Tanizaki se refere está
na assimilação de inovações que vão sendo introduzidas à sociedade japonesa,
sem a devida adequação, reclama. São sobrepostas simplesmente, impondo suas
próprias características, baseadas, no entanto, na história de outras
sociedades, ocidentais. Ele não nega os benefícios das comodidades importadas,
como a luz elétrica ou o aparelho sanitário, por exemplo. O problema é a
supressão da beleza, porque essa uma é sensação apropriadamente educada no
contexto de uma sociedade, a partir dos seus elementos. A sombra, para o
japonês, está ligada ao modo peculiar como aconteceu a captação do
claro-escuro, tecida de acordo com o ambiente existente.
Tanizaki, como romancista, impregna seu texto com
uma atmosfera narrativa bastante poderosa, é importante dizer. Não apenas
reflete a propósito de uma estética japonesa, mas a inventa também, tal a força
criadora da sua escrita. A passagem que se refere ao uso da latrina é de uma sublime
poesia “fora do lugar”, uma vez que enaltece as sombras, logo ali onde para
nós, no ocidente, nunca deveriam existir. Descreve sobre uma realização
estética quando nos parece impossível admitir uma beleza ímpar na sua frequência,
que ele, no entanto, manifesta como um instante encantador, a ida matinal ao
banheiro. Em todo o seu texto, Tanizaki empresta delicadeza para encontrar o
belo entre as sombras, no universo cotidiano da vida japonesa.
Tanizaki admite que as pessoas mais velhas reclamam
da desconstrução do mundo que conheceram, convencidas que era melhor. Com a
velocidade das mudanças, considera difícil encontrar alguém satisfeito com o
seu tempo. Reconhecendo os benefícios da modernidade, diz que os idosos não
deveriam atrapalhar o desenvolvimento do país. Propõe, contudo, que em algum
lugar, que poderia ser o campo da literatura ou das artes, esse mundo de
sombras poderia ser chamado de volta. Diz que, na rua, nem todas as construções
precisam ser idênticas, que poderia existir apenas uma com as características
tradicionais. Então, propõe como últimas palavras do seu ensaio: “E agora,
vamos apagar as luzes para ver como fica”.
No Prefácio, Pedro Erber apresenta uma hipótese interpretativa,
feita por um filósofo, Naoki Sakai, que duvida da seriedade do ensaio. Na
verdade, Tanizaki faz uma paródia ao culto à tradição, diz essa hipótese. De
fato, existe um recurso narrativo no ensaio que o torna também literatura, ou
seja, uma criação literária. Isso é notável no texto. Seja como for, prefiro
seguir outro caminho, independente de procurar saber o que pretendia mesmo
Tanizaki dizer “de verdade”. Penso que toda criação, a realização estética, é
uma existência adquirida, que vem ao mundo e não pertence mais a um autor.
Inclusive, me parece que, consciente desse jogo, também de luz e sombra, é que as
últimas palavras de Tanizaki podem ser entendidas.
Tanizaki não parece um reacionário a propósito da
passagem do tempo. Para ele, a modernização já é incontornável ao Japão. O que
ele reclama é da ausência da alteridade. O progresso poderia ser alcançado
também a partir de maior respeito à integridade de uma sociedade, que
permitisse a continuidade de certas experiências cotidianas apreciáveis, belas
e vitais. O modo como a modernização estava ocorrendo, no entanto, era sobretudo
importado. O que propõe Tanizaki, então? Ele não pede para parar e voltar à uma
sociedade original, mas percebe na literatura e na arte uma grandeza para a
existência da sombra. Espaços em que a continuidade do jogo entre o claro e o
escuro ainda poderia possuir autenticidade e não cópia.
Em louvor da sombra, mais do que o
elogio absoluto da sombra, é um uma consideração sobre a sua participação na
beleza, tal como foi tecida na vida cotidiana do Japão. Uma apreciação sobre a
estética que só pode existir entre luzes e sombras, nunca independente da
luminosidade, portanto. Sem uma devida gradação entre o claro e o escuro, apreciação
estética alguma poderia existir. Refugiar-se na literatura e na arte é uma
proposta de garantia da sua incomoda existência quando as luzes tudo perpassam.
Portanto, sobrevive como um contraponto necessário à própria criação da beleza.
Mas por que o valor atribuído às sombras, obtido na cultura japonesa, poderia
nos interessar agora?
Como a pandemia colidiu com as nossas vidas? Aproximadamente
quase noventa anos nos distanciam da publicação de Em louvor da sombra. A
preocupação de Tanizaki com a “excessiva iluminação” adquiriu um sentido
provado pelo tempo. Para a subjetividade contemporânea a claridade é uma
positividade do progresso material. Há um sentido de progressão nas nossas
vidas que é irradiado pela resplandecência do capitalismo. O processo de
acumulação de capital é de um horizonte desimpedido por uma luminosidade que se
estende sem bloqueios. Nossa própria vida é feita assim, sem cessão ao
desconhecido, ao oculto, à meia-luz. É aí que a pandemia nos apanhou, não
apenas biologicamente, mas como civilização também.
Para um leitor tardio de Em Louvor da sombra,
Tanizaki conta um segredo da existência, que é saber viver adequadamente entre
luzes e sombras. Nossa angústia agora, quando o planeta parou, é que ao
contrário do que confiávamos ou estávamos obrigados a acreditar, a luminosidade
absoluta não tem as garantias que a propaganda do mundo burguês fez acreditar.
A pandemia nos desintegra, muito facilmente, constatamos, desolados. Estamos agora,
sem poder olhar para os próximos meses, possuídos até pela dúvida sobre a nossa
sobrevivência no planeta. É isso que nos faz negacionistas do que seriamente
acontece. Como educador, eu gostaria de dizer, precisamos de uma educação que
nos ensine também uma pedagogia da sombra.
A próxima publicação, sobre o conceito de excesso de positividade, de Byung-Chul Han, prosseguirá com a discussão aqui iniciada.
*
Junichiro Tanizaki
Em louvor da sombra
São Paulo
Penguin Classics/Companhia da Letras
2017
*
Segunda publicação de uma série que estou chamando
de Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia.
Publicação anterior
Muito interessante a proposta da obra na tradução do Aristóteles. Transpondo no tempo a ideia de transição me parece tão contemporânea e necessária em tempos do cólera e/ou Covide19. Inserindo no sentido do claro e escuro, precisamos, como modernidade em colapso, reaprender a ver as belezas que desconhecemos na sombra como transição. Muito pertinente o resgate dessa obra, que não conhecia!
ResponderExcluirQuerido Mauro, obrigado pela leitura e comentário
ExcluirParabéns pelo texto!
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