A educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de três conceitos de Paulo Freire


Foto: Yves Herman/Reuters


Começo de junho e ainda estamos com as escolas fechadas em todo o país. Na Europa e na Ásia, as escolas, nos países em que também foram fechadas, começam a reabrir. No Brasil, nada parece apontar para uma reabertura segura para breve. Quando as grandes redes escolares, escolas públicas dos estados e municípios, terão condições de iniciar seu retorno, não é possível dizer com certeza. Em todo o país, com dados atualizados em 31 de maio, contamos 29.314 mortos e 514.849 casos registrados. A curva de contágios é ascendente, isso sem testagem em massa e depois de dois ministros da saúde já substituídos e a nomeação agora de um interino militar, Eduardo Pazuello, sem experiência na área médica.

Não será surpresa se chegarmos ao final do ano de 2020 sem aulas presenciais. O fato é que vivemos sem perspectivas garantidas a respeito da reabertura das escolas, quando será possível e em que condições. Se olharmos como está acontecendo a reabertura das escolas na Europa e na Ásia, nossas possibilidades parecem ainda mais incertas. Notícias e imagens que estão nos informando sobre o retorno às escolas nesses países constituem uma realidade ainda muito limitada para definirmos comparativamente nossas condições, mas já suficientemente indicativas para sabermos que serão muitas as nossas dificuldades diante de uma emergência epidemiológica que não deverá cessar proximamente.

Não apenas as realidades escolares entre os países serão distintas, assim como em cada lugar as desigualdades sociais irão delinear também como as diferentes populações irão regressar às escolas.  No Brasil, qual o cenário do “novo normal” das escolas para as classes populares? Essa é a questão que precisamos atravessar. Para a maioria popular que frequenta as escolas, o que será para elas? Desde o início da quarentena tenho procurado prosseguir com os meus estudos sobre Paulo Freire e agora proponho utilizá-lo também diante da crise da pandemia e o que significa para a educação. O legado de Paulo Freire poderá nos dizer alguma coisa agora também?

Gostaria de propor três conceitos de Paulo Freire que acredito poderiam, sim, colaborar com o a urgência educacional das classes populares na emergência epidemiológica: Leitura de mundo, situações existenciais e círculos de cultura.

Leitura de mundo

Em A importância do ato de ler, três artigos escritos no começo dos anos 80, Paulo Freire (2011, p. 19) irá dizer: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. A alfabetização nos dá a oportunidade da leitura da palavra, mas a leitura do mundo já existe preliminarmente. Não depende da leitura da palavra. No entanto, a leitura da palavra é um “ato criador” (ibidem, p. 28) porque com ela a leitura do mundo adquire maior plasticidade. “Mundo” é uma palavra presente em toda a obra de Paulo Freire e até na última fase do seu pensamento vamos encontrá-la muitas vezes. Nos textos reunidos em Pedagogia da Indignação, escritos nos anos 90, “mundo” aparece frequentemente.

Dar sentido à presença no mundo[1] é a concepção mais ampla de educação em Paulo Freire e a “leitura do mundo” é um ato de conhecimento para tecermos o nosso sentido a propósito da presença no mundo. Agora que estamos assustados com a nossa sorte (pelo menos deveríamos estar), mas bastante desorientados a respeito do que nos espera nos próximos meses - Afinal, o que querem nos dizer com “novo normal”? – e nós educadores sequer sabemos quando voltaremos para as salas de aula e qual o futuro mesmo da nossa profissão, talvez pudéssemos assumir a leitura do mundo como uma tarefa urgente para adquirirmos um sentido também transformador sobre a nossa presença no mundo. A leitura do mundo é parte da nossa atividade vital, desde sempre, mas com outra gravidade no momento presente.

Para Paulo Freire, contra uma existência relativamente acidental no mundo, dar sentido à presença no mundo é assumir-se como criador da sua própria presença nele, rompendo com as condições opressivas que deprimem as nossas possibilidades como viventes. A leitura do mundo amplifica nossas perspectivas. A emergência epidemiológica podemos ver como um desafio à nossa leitura do mundo. Sobre algo que nos afetou tão drasticamente, que parecemos incapazes do melhor controle sobre os seus eventos, precisamos saber ver o que é e o que significa para a para a nossa liberdade. A leitura do mundo, como ato de conhecimento, não é apenas uma atividade cognitiva senão também a presença no mundo como existência transformadora.

Situações existenciais

O chamado Método Paulo Freire é realizado através de passos sucessivos, propostos não apenas para que a alfabetização aconteça como aquisição da habilidade da leitura, mas, sobretudo, para que a alfabetização, a leitura da palavra, signifique um momento mais crítico da leitura de mundo.  Vale dizer que não são passos que devem ser compreendidos como etapas rígidas, mas elementos formadores do Método que podem ser recriados – o fundamental, me parece, é o sentido do Método. Tudo tem início com a descoberta do universo vocabular do grupo de educandos, destacados pelo sentido existencial que possuem, de maior conteúdo emocional, como explicou Paulo Freire (1994, p. 120) em Educação como Prática da Liberdade.

É através da descoberta dos temas existenciais dos educandos de um grupo que o Método Paulo Freire poderá ser realizado tal como foi concebido como uma prática libertadora. É a consideração pelas experiências autênticas dos indivíduos que amalgama a educação popular. Vamos transpor esse problema para a urgência da nossa época. Qual tema é a grande situação existencial do mundo agora? A pandemia da Covid-19, sem dúvida. Não se trata de dizer qual é o acontecimento mais importante do mundo, melhor não definir nesses termos. É, pelo menos, o nosso contato maior com a realidade apreendida, sem dúvida, para populações de todo o planeta.

No entanto, como a urgência epidemiológica é vivida por diferentes territórios, lugares e populações? Quais são as nossas situações existenciais na alteridade das crises do hipercapitalismo? Diante da suspensão das aulas presenciais, como deverá prosseguir a educação da maioria da população de acordo com as situações existenciais correspondentes à vida concreta das classes populares? Quando pensamos o “novo normal” da escola, quais as demandas populares diante das suas situações existenciais? É preciso respostas a partir do ponto de vista popular, caso contrário não serão soluções convergentes com as situações existenciais verificáveis. A emergência epidemiológica se agrava sem levar em conta as diversas situações existenciais.

Círculos de cultura

As saídas do poder para escola pública correm o risco – já está acontecendo – de aumentar as diferenças nas oportunidades educacionais. Também em Educação como Prática da Liberdade, Paulo Freire (Ibidem, p. 111) fala-nos dos Círculos de Cultura, outro elemento do seu Método que vale a pena lembrarmos agora também. Para os programas de alfabetização que participou no início dos anos de 1960, o mais conhecido de todos, na cidade de Angicos/RN, em 1963, o processo educativo acontecia nos Círculos de Cultura, uma forma de encontro que se caracterizava pelo diálogo no lugar das aulas discursivas. Diálogo orientado para a prática da leitura da palavra como leitura do mundo.

Nos Círculos de Cultura o currículo praticado não é determinado por um programa oficial, de suposto caráter nacional ou genericamente comum. Trata-se de um currículo tecido a partir da leitura do mundo que se faz a partir das situações existenciais a quem interessa fundamentalmente a educação como prática da liberdade e não a educação como prática de acomodação a uma realidade imposta pelas classes dominantes. Transpondo a experiência dos Círculos de Cultura para o que nos desafia no nosso tempo, é importante dizer que os interesses das classes dominantes agora não concederão à educação popular uma oportunidade de leitura do mundo criticizante, de acordo com os seus temas existenciais na pandemia.

Nos espaços possíveis, hoje principalmente digitais, o conceito de Círculo de Cultura enseja uma prática de análise autônoma das demandas populares feita pelas próprias classes populares. Pensar o “novo normal” da escola só adquire sentido válido se feito pelas próprias pessoas interessadas, de acordo com as suas próprias condições existenciais. As necessidades das periferias não serão atendidas e transformadas senão pelas lutas populares e a educação popular é parte dessas lutas. A criação de Círculos de Cultura, concebidos para o estudo das situações existenciais para a valoração dos saberes da experiência e emancipação política, é uma tarefa para o enfrentamento da emergência epidemiológica desde baixo.



[1] Originalmente: “O que me interessa não é que meus filhos e minhas filhas nos imitem como pai e mãe, mas, refletindo sobre nossas marcas, dêem sentido à sua presença no mundo” (FREIRE, 2000, p. 38).

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.

 ______. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

 ______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP, 2000.

 * 

Quinta publicação de uma série que estou chamando de Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia. A ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19 abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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