Duas lições de Paulo Freire sobre o distanciamento social
Texto escrito para a minha participação na mesa Os
desafios à universidade pública pela emergência social, na VII Live
Administração Pública/UFF, em 9 setembro de 2020.
A emergência epidemiológica nos pegou relativamente
desprevenidos. Relativamente porque não faltaram avisos sobre pandemias à espreita.
São as mesmas vozes, de cientistas que estudam as condições ecológicas, suas
transformações humanas e perigosos impactos, que já advertem que outras
pandemias virão, enquanto nem sabemos ao certo para aonde estamos indo com a
Covid-19.
Para estudantes e todos que trabalham com o ensino, a pandemia
apanhou em cheio. Desde março, a educação institucional acontece remotamente.
Ou não acontece, uma vez que requer condições e formação. A indiferença e o
improviso estão produzindo um resultado trágico para a educação da maioria
popular. Quanto ao retorno às aulas presenciais, tal como ocorriam antes da
pandemia, não há um calendário possível de ser feito agora. Não há tratamento
nem vacina ainda para a Covid-19.
Pensar os desafios agora à universidade pública nos obriga a
levar em conta a realidade da pandemia, evidentemente. Inclusive, a insegurança
sobre o seu próprio destino. No Brasil, muito pior, não temos ministro da saúde
e o governo não tem compromisso autêntico com a saúde pública. Na pandemia, estamos às cegas.
Há muita coisa para pensar e fazer em um quadro tão adverso
para a universidade pública. Tenho me ocupado com o legado do educador Paulo
Freire (1921-1997) e gostaria de lembrá-lo também agora, neste debate.
A emergência epidemiológica nos colocou diante da
necessidade do distanciamento social e vejo aí, no “distanciamento
social", uma ambivalência que gostaria de discutir com a ajuda do Paulo
Freire. A ambivalência é a seguinte: Simultaneamente, “distanciamento social" pode ser
entendido como o necessário cuidado para não propagar o vírus e
consequentemente adoecimento, mas ainda pode ser visto como um afastamento do
social, a vida como uma existência mais individualizada e não como uma
realização solidária, tal como nos incita a ideologia e a prática
neoliberal.
Então, o que pretendo, nesta minha apresentação inicial, é remeter
a essa ambivalência a partir da obra do Paulo Freire. Dois momentos específicos
dessa obra contêm algumas “lições” importantes sobre os dois distanciamentos
sociais em questão.
Do primeiro Paulo Freire, que situo entre Educação e
atualidade brasileira (1959) até aproximadamente a publicação de Educação
como prática da liberdade (1967), gostaria de observar alguns princípios do
seu Método, o “Método Paulo Freire”. Encontramos aí um pensador e um ensino que
é atual e na pandemia, necessário mais do que nunca. Um Paulo Freire que chamou
atenção para o princípio cultural e social da educação. Aqui o educando deve ser entendido, antes de
tudo, a partir das suas “situações existenciais". Partir da existência concreta
do educando é uma ação pedagógica referida à sua identidade social. Não é o
educando visto de modo abstrato porque confundido com o ideal do educador. O
princípio é: Educar primeiro, aprendendo sobre quem é o educando, suas condições como habitante de um lugar, suas atividades existenciais
e legítima cultura. Em outras palavras, sua existência popular e culturalmente
identificada.
No primeiro Paulo Freire, das campanhas de alfabetização,
como a da cidade de Angicos, a mais conhecida, no Rio Grande do Norte, em 1963,
o que agora é possível resgatar vivamente é a atitude de reconhecimento do
educando e da sua história de vida como princípio do ato de educar. Existe aqui
um cuidado, um sentido de preservação e valoração da existência correspondente a
um sentido educacional para o “distanciamento social" como garantia da
vida. Para a universidade pública, hoje e amanhã, em um mundo pós-pandemia, há
uma demanda popular que precisa ser vista de dentro e não de fora, que precisa
ser conhecida na sua necessidade concreta e não a partir de fórmulas
pretensamente administrativas e neutras, políticas que são de outros sujeitos e
de outros interesses. Uma resposta democrática à emergência social da pandemia,
para a universidade, depende da nossa capacidade de abertura para o popular dos
seus estudantes, sabendo com eles, legitimamente, sobre as condições para o
ensino e aprendizagem.
Outro momento da trajetória do Paulo Freire que gostaria de
lembrar é a sua última fase, já nos anos da década de 1990. O “último Paulo Freire”,
quando procurou se situar diante do pensamento pós-moderno e da virada
neoliberal. Vou me deter neste último
aspecto, a respeito do Paulo Freire insurgente contra o neoliberalismo. Em Pedagogia da Indignação (2000),
obra póstuma, que contém textos para uma publicação que não concluiu, acrescido
de outros inéditos, todos escritos nos seus últimos anos de vida, encontramos um
Paulo Freire especialmente preocupado com o “fatalismo neoliberal”. Em outra
época, quando publicou Pedagogia do oprimido (1970), encontramos um
Paulo Freire que formulava transformações para um “novo mundo" e um “novo
homem". Paulo Freire que discutia a revolução, até. Na década de 1970 atuou, aliás, no continente
africano, em países recém libertos da colonização. O “último Paulo Freire” já
escrevia para um mundo mais retraído das suas ambições de mudanças amplamente
esperadas. O neoliberalismo nos colocou contra as cordas.
O que encontro no Paulo Freire da Pedagogia da
Indignação não é a aceitação da tese do “fim da história”, pelo contrário, a
ideia da luta por um mundo melhor continua, uma necessidade e um dever ele
considera, inclusive. O contexto histórico já é outro, contudo, e ele sabe
disso. Pelo menos desde Pedagogia da Esperança Paulo Freire nos fala da
pós-modernidade, uma questão inexistente em muitos outros livros que já havia
publicado. É um Paulo Freire que retoma os valores da esperança, do sonho, da
utopia e do projeto para reavivar a pedagogia crítica-transformadora. Paulo
Freire que enfatiza a diferença entre condicionamento e determinação das
condições materiais para a possível realização de uma reexistência. A sociedade
neoliberal não é um fatalismo da história, mas algo que podemos reagir. Não
estamos condenados à existência pacífica com o distanciamento social do
neoliberalismo, poderíamos dizer com Paulo Freire e encorajar uma universidade
pública e popular, durante e pós-pandemia.
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