Estarei preparando a tua chegada
O que é “esperançar” em Paulo Freire?[1]
O último Paulo Freire, como gosto de identificar, sobretudo, nos seus escritos da década de 1990, falou muitas vezes da “esperança”. Obra publicada em 1992 teve, inclusive, como título: Pedagogia da esperança. Gostaria de lembrar também um artigo que escreveu em dezembro de 1996, portanto, muito próximo da sua partida - “Educação e esperança” -, incluído no seu livro publicado postumamente, Pedagogia da indignação. São duas referências que vou utilizar aqui para discutir o esperançar freireano. Mas para situar o interesse mesmo por essa discussão agora, deveríamos nos perguntar ainda, qual o sentido de falar sobre a esperança em Paulo Freire no momento?
O fato é que estamos no meio da pandemia da Covid-19 e a efeméride do centenário de Paulo Freire é também a procura por uma voz que pudesse nos amparar diante tantas mortes e que nos fizesse acreditar que tudo vai passar e que vamos nos recuperar para seguir com as lutas de sempre, mas em um tempo menos asfixiante. Começo a escrever na manhã do dia 22 de maio. 442.049 óbitos no Brasil, 3.417.682 no Mundo. E a emergência epidemiológica não é tudo. Observando o que acontece em toda parte, é mais a ruína de uma civilização o que vemos. Ou pelo menos parece que estamos próximos disso. Então, resta-nos procurar alguma diferença a nosso favor, algo mais prometedor para a nossa presença no mundo agora.
Paulo Freire tem uma palavra para este momento em que vivemos: Esperança. Portanto, o centenário de Paulo Freire é, não apenas, uma oportunidade, mas uma necessidade também, para prestar atenção ao que ele dizia quando falava em “esperança”.
Mas antes de ouvir o Paulo Freire da década de 1990, vamos retornar um pouco mais, até 1971, para ler um poema que ele escreveu naquele ano.
Canção óbvia
Escolhi a sombra desta árvore para
repousar do
muito que farei,
enquanto
esperarei por ti.
Quem espera
na pura espera
vive um
tempo de espera vã.
Por isto,
enquanto te espero
trabalharei
os campos e
conversarei
com os homens
Suarei meu
corpo, que o sol queimará;
minhas mãos
ficarão calejadas;
meus pés
aprenderão o mistério dos caminhos;
meus
ouvidos ouvirão mais,
meus olhos
verão o que antes não viam,
enquanto
esperarei por ti.
Não te
esperarei na pura espera
porque o
meu tempo de espera é um
tempo de
quefazer.
Desconfiarei
daqueles que virão dizer-me,:
em voz
baixa e precavidos:
É perigoso
agir
É perigoso
falar
É perigoso
andar
É perigoso,
esperar, na forma em que esperas,
porquê
êsses recusam a alegria de tua chegada.
Desconfiarei
também daqueles que virão dizer-me,
com
palavras fáceis, que já chegaste,
porque
êsses, ao anunciar-te ingênuamente ,
antes te
denunciam.
Estarei
preparando a tua chegada
como o
jardineiro prepara o jardim
para a rosa
que se abrirá na primavera.
Canção óbvia foi escrita em Genebra, cidade em que morou quando se mudou para a Suíça, em fevereiro de 1970, para ser consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas (CMI). Sobre qual espera(nça) nos fala Paulo Freire? Importante observar o exílio forçado de Paulo Freire, após o golpe civil-militar de 1964, exatamente quando ele assumia a responsabilidade de liderar o Programa Nacional de Alfabetização, instituído pelo presidente João Goulart. Resultado da bem-sucedida campanha de alfabetização em Angicos-RN, o Método Paulo Freire seria adotado também na campanha nacional. O golpe lançou Paulo Freire no estrangeiro, na sequência: Bolívia, Chile, EUA e Suíça.
Paulo Freire só conseguiu voltar ao Brasil em 1979, depois de 16 anos de exílio, em uma passagem rápida. No ano seguinte, em 1980, dá-se seu retorno definitivo. Uma volta ao país apenas com a garantia da Lei da Anistia. Durante o exílio, Paulo Freire precisou lidar com a experiência do tempo, depois de uma saída não pretendida do país, mas necessária para escapar do arbítrio da ditadura militar. Em 1971, recém chegado à Europa, ainda não sabia quando seria possível retornar. Esperar é uma experiência para resistir à nossa falta de imunidade natural contra a inconstância do tempo. Não existem certezas sobre o que virá e a esperança é uma alternativa a ser elaborada, sem a qual os dias tornam-se muito mais difíceis de suportar. O tempo é uma irresolução cuja ansiedade só intensifica o custo da insegurança.
Paulo Freire fala-nos, em Canção óbvia, da potência da esperança, mas nos mostra os cuidados necessários também, porque trata-se de um sentimento que pode ser acompanhado de ações conflitantes com o sentido que ele propõe aí. Preocupação que permanecerá nas suas citações posteriores sobre esperança. Se consultarmos o verbete esperança no Dicionário analógico da língua portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, vamos encontrar como ideias afins a esperar, entre outras, “ter em perspectiva” e “construir castelos na areia”. Ou ainda, “contar com a probabilidade de êxito” e “embalar ilusões”. Não são atitudes propriamente correspondentes, então. Ter esperanças não é algo de que o significado esteja fechado.
A “pura espera”, adverte Paulo Freire, não é a esperança legítima para aqueles que podem “sentir que dias mais felizes o aguardam”, outra ideia afim a esperar. Apesar do contexto histórico que atravessou muitos países da região no período, com golpes de Estado e ditaduras, motivo do exílio para Paulo Freire, em Canção óbvia existe uma dimensão mais pessoal em evidência. Já nas referências que Paulo Freire faz ao longo da década de 1990 sobre a “esperança”, há uma perspectiva mais social e coletiva em vislumbre. Inclusive, o contexto histórico já está transformado – ou está em transformação, se quiserem. Paulo Freire está atento à virada neoliberal, suas implicações e reações a ela.
David Harvey (2014, p. 11) começa com o seguinte comentário no livro em que faz uma breve história do neoliberalismo: “Os historiadores poderão coerentemente ver os anos 1978-80 como um ponto de revolucionário na história social e econômica do mundo”. Quando Paulo Freire publica Pedagogia da esperança, em 1992, o subtítulo diz, “um reencontro com a pedagogia do oprimido”, sua obra termina em 1968 e é publicada primeiro nos EUA, em 1970. Reecontro, sim, mas agora, a história é outra. Na década de 1990 já estamos um pouco distantes da chama política das gerações que viveram mais engajadas na luta pela mudança social nos anos sessenta e ainda nos primeiros anos da década seguinte, pelo menos.
Nas “Primeiras palavras” de Pedagogia da esperança, Paulo Freire (2011, p. 13) expõe uma questão, proposta por um conhecido: “Mas como, Paulo, uma Pedagogia da esperança no bojo de uma tal sem-vergonhice como a que nos asfixia hoje, no Brasil?”. Importante lembrar o ano de 1992 no país. Foi de grande escândalo sob a presidência de Fernando Collor de Mello, terminando com o seu impeachment, em 29 de dezembro. De todo modo, anota Paulo Freire (ibidem, p. 14): “A desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir ao fatalismo em que não é possível juntas as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo”. Diante da virada neoliberal, Paulo Freire irá, ao longo da década de 1990, fazer muitas advertências sobre o fatalismo.
Mundo é uma das categorias mais presentes, ao longo da obra de Paulo Freire. A presença no mundo, libertadora, porque transformadora, é o motivo da pedagogia freireana. O fatalismo favorece o opressor porque desagrega nossas capacidades de atuação, ou seja, de recriar o mundo. Então, Paulo Freire (ibidem) dirá também: “Não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor, sem esperança e sem sonho”. No artigo “Educação e esperança”, para falar da esperança, Paulo Freire (2000, p. 113) explora o tema da História como “tempo de possibilidade”, observando sobre os condicionamentos da existência humana, mas recusando qualquer determinação.
Em “Educação e esperança”, Paulo Freire (ibidem, p. 115) também se opõe à “ideologia fatalista” de matriz neoliberal e consequente despolitização da educação. No lugar de formação, passamos a admitir a educação como treino. A pedagogia crítica aqui é vendida como uma concepção já ultrapassada pelo tempo. Contrariando, então, todo discurso de aceitação e acomodação, Paulo Freire irá enfatizar a “luta pelo sonho” como um valor da presença no mundo. Ter esperança é considerar que apesar da opressão que parece ter vencido a ideia mesmo de transformação do mundo, não há “fim da história”, tampouco educação propriamente dita sem intervir nas condições da nossa existência.
Quando terminava de escrever este texto, casualmente, assisti ao filme Life – Um Retrato de James Dean (2015), dirigido por Anton Corbijn. Um pouco distraído, repentinamente, vi um dos personagens dizer: “vivemos com esperança”. Digo “repentinamente” porque, agora, durante a pandemia, com o tempo em suspensão, já que não sabemos, verdadeiramente, quando voltaremos a viver de modo menos ansioso, estamos mais ensimesmados com o risco da Covid-19 e uma mensagem de esperança parece ter me atingido, saída de outro lugar. Paulo Freire, no seu centenário, não está mais entre nós, mas é uma voz que também nos toca agora, sobre a necessidade da esperança. Não qualquer esperançar, mas aquele que nos faz “lutar pelo sonho” como outra forma de atravessar a inconstância do tempo.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido 17ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
______. Educação e esperança. In: Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP, 2000. p. 111-116.
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Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.
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[1] Texto
que escrevi para a Live de Abertura do III Ciclo do Pedagogia na Quarentena,
da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – FEUFRJ, ocorrida
no dia 24 de maio de 2021. Tema proposto para a live, que foi dividida com
Daniel Cara (USP): Esperançar e resistir: dialogando com o pensamento de Paulo
Freire.
O verbo "esperançar" nunca se fez tão necessário! Excelente reflexão! Parabéns, professor!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Jacqueline!
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