Publicação do meu livro Centenário de Paulo Freire e outras conversas da pandemia


Introdução

Acredito que em razão da minha graduação em História, quando aprendi a perceber melhor o significado do tempo, sempre inicio meus cursos sobre Paulo Freire observando que ele foi contemporâneo de todos os acontecimentos marcantes do século XX, no Brasil e no mundo. Nasceu em 1921, três anos apenas após à I Guerra Mundial, e um ano antes da Semana de Arte Moderna, quando foi também fundado o Partido Comunista, seção Brasileira da Internacional Comunista. Teve a sua vida absolutamente transformada pelo exílio, depois de atingido por um dos episódios mais destacados da história do Brasil, o golpe civil-militar de 1964. Faleceu em 1997, quando o período da Guerra Fria já havia se encerrado e o Muro de Berlim não existia mais. No final do século, a arte já era chamada de pós-moderna. Paulo Freire foi, portanto, inteiramente um personagem do século XX. No ano de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira, um reconhecimento pelo seu legado e sentida atualidade. Contudo, nos seus cem anos, indago qual a sua presença e a sua futuridade vistas através de um ano pandêmico?

A prática repentina do distanciamento social foi uma mudança brusca na vida cotidiana, mesmo considerando a forma desigual em que foi possível (ou não) praticá-la. A emergência epidemiológica impactou o mundo extraordinariamente. Inclusive, verdadeiramente, não sabemos, até o momento presente, quando será possível dizer que ficou para trás e agora é apenas história. Para os que trabalham no magistério – e é este o meu caso – a possibilidade de continuar trabalhando só ocorreu diante de uma conversão, ressentida para muitos de nós, do presencial para o remoto. Então, escrever sobre Paulo Freire adquiriu um sentido que não foi apenas – e não é ainda – uma resposta acadêmica, mas também existencial, escrever como um modo de existir durante a impossível pandemia.

No entanto, é importante dizer que existe bem mais do que a pandemia tirando o nosso sono agora. Nasci em 1965 e assim faço parte de uma geração que viveu a infância e a adolescência durante a ditadura militar. Tornar-me jovem, de uma certa maneira, foi um processo de conscientização, porque o país vivia a expectativa da redemocratização política e dos avanços sociais, livres dos governos militares. Ainda que existisse Fernando Collor no meio do caminho, posso dizer que os anos se passaram de modo mais progressista, apesar, indiscutivelmente, da enorme contradição econômica que caracterizava (e caracteriza) a sociedade brasileira, mesmo nas últimas décadas. Mesmo assim, não esperava o aparente retrocesso que significou a eleição de Jair Bolsonaro e de outros tantos políticos populistas de direita. Não esperava a explosão política que foi a ascensão da extrema direita no Brasil.

Pelo menos desde a gestação do golpe, que impichou a presidenta Dilma Rousseff, passei a ver o país de modo mais preocupado em termos do que vem pela frente, coisa que não havia acontecido antes. Não que faltassem motivos de inquietação diante da realidade nacional: concentração de renda, racismo estrutural, violência de gênero e lgbtfobia, principalmente. Sim, mas as lutas pareciam, de algum modo, nos levar para frente, apesar de tudo. A eleição de Jair Bolsonaro foi um princípio de realidade. Talvez tivesse nos situado diante de um país que não queríamos ver. Não que merecêssemos passar pelo que estamos vivendo agora politicamente, mas vamos precisar nos esforçar mais se não quisermos desacreditar definitivamente dos sonhos antigos de mudança social, emancipação política e liberdades diversas.

Estamos ainda no meio de uma crise sanitária e de um governo abusivo, que pouco caso fez da própria pandemia. Quando jovem, ouvi uma canção do Olho Seco, grupo punk de São Paulo, que continha uma angustiante pergunta no seu título: “Haverá futuro?”. Desde que o usurpador Michel Temer assumiu a presidência, episodicamente me ocorre a lembrança da canção, um poema, certamente, que nos lança diante de um abismo, “no movimento da vida”. A música continua tocando: “Haverá futuro?”. Enquanto estivermos aqui, a única maneira que nos cabe sobre o futuro é estar presente, de frente, “no movimento da vida”. O esperançar freireano é a vida cotidianamente cultivada, mesmo em tempos de pandemia e de um governo de extrema direita.

*

O livro que apresento reúne 33 artigos organizados em três partes e posfácio. A primeira consiste em 19 artigos escritos originalmente para o meu blog Pedagogia da Imagem como uma conversa a respeito de algumas questões, inquietações ou impasses que me atravessaram durante a pandemia da Covid-19. São textos escritos, portanto, entre março de 2020 até agora, outubro de 2021, quando preparo a publicação do livro.

A respeito da primeira parte, embora a principal presença nos artigos seja a de Paulo Freire, ela não foi exclusiva. Dois ministros da educação mereceram a minha atenção, pelo que significavam (e pelo que não significavam também) quando escrevi sobre eles. E, desde o início dessas escritas, precisando me defrontar existencialmente com a própria pandemia, encontrei outras interlocuções que, acredito, me ajudaram a compreender o que estávamos (e ainda estamos) vivendo, e a consequente importância de uma pedagogia da autonomia para sairmos da encrenca em que estamos metidos na modernidade tardia. São os artigos que escrevi para conversar com Junichiro Tanizaki, Byung-Chul Han e Ailton Krenak. O capitalismo já vai avançado e precisamos nos desenredar das subjetividades correspondentes, ou não vamos nos livrar dele. Também fizeram parte da minha escrita na pandemia duas autoras negras, Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, que estão na bibliografia dos meus cursos da graduação na universidade. Entendo que Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus nos ajudam a pensar a educação brasileira na sua urgência por maior legitimidade pedagógica, cultural e política. Não há saída à esquerda nem sociedade boa sem democracia racial e luta contra o patriarcado. 

A segunda parte, menor, reúne quatro artigos, dois em coautoria[1], que foram publicados no mesmo período. Não foram escritos para o meu blog, mas para outros sítios na internet. Então, são também textos da pandemia, porém, são relativamente independentes da série de artigos que integram a primeira parte do livro.

A terceira parte é composta de 9 artigos e à exceção de um deles todos foram publicados no meu blog também, mas postados entre 2014 e 2019. Portanto, são de um período anterior à pandemia, mas contribuem para a compreensão da sequência posterior de artigos, escritos quando uma perspectiva de urgência me mobilizou, diante da situação de emergência epidemiológica da Covid-19, e ainda assim prosseguem com a minha crescente atenção dedicada à obra de Paulo Freire. No final do ano de 2020, criei um novo grupo de pesquisa para responder a esse interesse: Estudos Freireanos Contemporâneos e Currículo (FRECON/UFRRJ)[2].

Acrescentei um último artigo à título de posfácio porque escrito após o dia 19 de setembro, aniversário dos cem anos de Paulo Freire.

A maioria dos textos foi escrita como material preparatório para a minha participação em eventos, para atender a convites para publicação, ou até pensando nas minhas aulas. O seja, para alguma comunicação pública, por isso a concepção de que são “conversas”.

Como a publicação em série em um blog tem um sentido frequentemente interativo com fatos contemporâneos à sua época de publicação, achei por bem incluir na reprodução desses artigos, em colchetes, a data em que foram originalmente postados. Creio que assim poderiam eventualmente situar a ocasião em que apareceram primeiro. Fiz uso de colchetes ainda quando foi necessário incluir mais algum elemento no texto para facilitar a sua compreensão em uma nova publicação, uma vez que foram transpostos do blog para uma reunião em livro. Os demais artigos, publicados originalmente em outros locais, são acompanhados, em notas de rodapé, de informações complementares também quando necessário. Como todos os textos foram anteriormente publicados on-line, neles existiam hiperlinks que não podiam ser adotados para a versão impressa do livro. Então, nesses casos, os endereços eletrônicos correspondentes foram também informados em nota de rodapé. Finalmente, foi preciso reescrever pequenos trechos, em alguns casos, quando a transposição da publicação eletrônica para o impresso assim o exigia. Imagens que utilizei nas publicações do blog foram excluídas aqui.

Ano do centenário de Paulo Freire, na primavera.
Aristóteles Berino



[1] Com Talita Cabral, minha orientanda de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ).

[2] Nosso perfil no Instagram: @frecon_ufrrj.




 

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