A economia da atenção, Cláudio Castro e o livreiro do Alemão


Ao preparar um café na manhã do dia 28 de outubro, avistei da janela da área de serviço duas espessas colunas de fumaça negra que se elevavam no horizonte do lado oposto ao meu. A Linha Amarela divide meu ponto de observação, no bairro de Del Castilho, do Complexo do Alemão, de onde a fumaça se erguia à distância. Achei a imagem curiosa porque as duas colunas de fumaça eram relativamente uniformes e pareciam relativamente afastadas, mas não me detive muito mais e minha atenção logo voltou ao que estava fazendo. Instantes depois, após ver algumas publicações nas redes sociais, liguei a TV para acompanhar o noticiário ao vivo. Descobri então que aquelas colunas de fumaça eram ainda mais numerosas e decorriam de barricadas incendiadas feitas para impedir a progressão da polícia que realizava uma operação no Complexo do Alemão. No dia seguinte não lecionei as minhas aulas na UFRRJ porque estavam suspensas em razão das condições de insegurança que ainda persistiam na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, foi como professor que comecei a refletir sobre o curso dos acontecimentos e agora entrego um breve texto discutindo o assunto.

Ao longo daquele dia as notícias apresentavam um quadro embrutecido do ocorrido: 64 mortos e entre eles, 4 policiais, além de dezenas de presos e apreensão de inúmeros fuzis. O número superlativo de vítimas fatais parecia refletir mais um cenário de guerra do que deveria ser uma operação policial, mesmo considerando o aspecto militarizado do braço armado das organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas estabelecido em muitas comunidades da cidade do Rio de Janeiro. Na manhã do dia seguinte, as notícias eram ainda mais aterradoras. Moradores estavam enfileirando mais corpos em uma praça, retirados de uma área de mata no Complexo da Penha. Então, o número de mortos havia pelo menos dobrado. A título de comparação, uma intervenção da polícia militar em uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, no dia 2 de outubro de 1992, havia provocado a morte de 111 detentos, fato notoriamente assombroso.

A morte de 121 pessoas se transformou em um valor político para a economia da atenção. A sangrenta operação policial repercutiu não apenas em razão da sua feroz dimensão em termos de vidas perdidas, mas também pela oportunidade imediata de mobilização da opinião pública. A ocorrência de inúmeras mortes foi anunciada pelas autoridades do governo e das polícias como uma vitória sobre o crime organizado. De forma oposta, foi apontada como resultado de um grave abuso legal, já que pareciam indicar que garantias legais do estado de direito não foram observadas no evento. Além da intensa cobertura jornalística, ouvindo políticos e especialistas com opiniões divergentes, as notícias desencadearam uma ativa participação também discordante nas redes sociais.[1] Inúmeros personagens da vida pública se aproveitaram da ocasião para impulsionar suas ações. No dia 30, Cláudio Castro, governador do Estado do Rio de Janeiro, que já havia declarado que a operação foi um sucesso porque as vítimas contavam apenas quatro policiais mortos, reuniu-se com outros governadores aliados e anunciou a criação de um “consórcio da paz”.

Apesar do calculado marketing social promovido através do uso das palavras consórcio e paz, ainda no dia 29 o governador Cláudio Castro havia exposto sua concepção de como se produz união de modo nada conciliatório: “A gente não vai ficar respondendo nem ministro nem autoridade queira transformar esse momento em uma batalha política. O recado é: Ou soma no combate à criminalidade ou suma!”[2] A linguagem adotada é transparente. No início da década de 1970, um slogan da ditadura militar no Brasil foi, “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Há o mesmo sentido autoritário na advertência “soma ou suma” de Cláudio Castro. Em ambos os casos, é traçada uma linha divisória entre um lado e o outro. A polarização política é uma tática historicamente eficiente operada pela extrema direita para impulsionar rapidamente uma base de apoio, especialmente quando se utiliza de uma linguagem hostil, propícia ao estabelecimento de um contexto de fácil identificação. O discurso de exclusão não admite nuances. Pelo contrário, o que conecta é a ausência de alguma ambiguidade. Por isso seu engajamento imediato.

O trabalho de comunicação da extrema direita hoje no mundo é selecionar temas que possuem elementos de caráter incendiário, isto é, que uma vez levados à esfera pública, inflamam prontamente a uma tomada de posição, que será sustentada energicamente enquanto se mantêm em visibilidade. Quando Cláudio Castro anuncia que a operação policial em uma favela, tendo ocasionado mais de uma centena de mortos, foi um “sucesso”, ele não está apenas fazendo uma apreciação fantasiosa do que efetivamente aconteceu. Notavelmente, ele sabe que se trata de uma afirmação que irá repercutir dramaticamente na percepção coletiva, que assim será inescapável manter sua afirmação em evidência em toda mídia. A mesma coisa acontece quando o governador defende que as facções criminosas ligadas ao tráfico, como o Comando Vermelho, sejam definidas legalmente como terroristas. Mesmo que não alcance o pretendido, sabe que apenas o fato de anunciar a proposta, em um momento que parece favorável para uma intensa disputa de narrativas sobre o seu real significado, se mantém em evidência com repercussão na sua popularidade.

Cinco dias após a operação policial com número recorde de mortos, Cláudio Castro foi aplaudido em uma igreja católica na Barra da Tijuca, depois de cantar, retomando um hábito semanal.[3] Pesquisa do Datafolha mostrou que para 57% dos moradores da capital e da região metropolitana a operação foi considerada um sucesso.[4] As duas informações constituem registros de aprovação popular mensurada, obtida pelo governador. No entanto, pensamentos mais críticos nos levam a compreender a intenção do projeto político do qual Cláudio Castro participa ao realizar uma operação policial em área da cidade marcadamente popular para exibir um número espantoso de mortos, como se entregasse um resultado necessário. Análises já demonstraram, como a que fez o sociólogo Gabriel Feltran[5], o significado político mais largo do que tem representado recentemente com a emergência política da extrema direita, a promoção da morte em operações policiais: impulsionar um regime de exceção.

O debate sobre a necessidade da observação de garantias constitucionais em uma operação policial e sobre o que pretende a extrema direita recrudescendo as políticas de extermínio quando governa, é imprescindível para a compreensão dos rumos da sociedade brasileira na contemporaneidade. Sem essa compreensão não se pode seguir adequadamente na luta por um país mais democrático na concepção de uma sociedade economicamente mais justa e politicamente emancipada para as classes populares. Todavia, como professor lecionando na graduação no curso de Pedagogia e na pós-graduação em educação, gostaria de propor agora um desvio de rota da nossa atenção. É preciso dizer que a ressonância sobre a violência e o abuso das noções mais elementares do direito constituído como assuntos praticamente exclusivos quando se discute uma operação policial com 121 mortos em território caracteristicamente popular é uma política da atenção de interesse da extrema direita hoje no país. É preciso elaborar ainda outros debates em que a resistência política e social também apareça, mas sobretudo com um vislumbre criador para as lutas de soberania popular.

Ainda nas primeiras horas em que acompanhei as notícias sobre a operação policial no Complexo do Alemão recordei-me de um livro que li faz alguns anos e costumo mencionar nas minhas aulas da disciplina Juventude e Educação: O livreiro do Alemão, de Otávio Júnior[6]. Algumas passagens do livro me marcaram sobremaneira porque apresentavam uma imagem de crianças e jovens vivendo em condições muito restritas, como a que reproduzo a seguir: “Sei, por experiência própria, que as crianças daqui têm uma visão muito estreita do mundo. Quase não saem da favela. Tudo é perto. A escola, a igreja, o campo de futebol, o mercadinho, as ONGs. Muitas nem conhecem a praia. Ficam presas aqui dentro. Foi a leitura que me libertou dessa prisão”.[7] Então, quando vejo uma notícia de que determinado número de jovens de uma comunidade morreu eliminado pela polícia, não consigo deixar de considerar que se trata de uma população confinada e sentenciada, de pessoas sem as mesmas alternativas existenciais possíveis para quem vive em outros territórios da cidade – ou ainda que morem no mesmo lugar, mas que por algum motivo possuem mais chances de não morrer tão precocemente em situação de violência.

Otávio Júnior residia na ocasião da publicação do livro no Complexo da Penha. Ainda morador da região em que ocorreu a maior chacina promovida pelo Estado, sua voz possui uma autenticidade para narrar a vida no lugar que a distingue de outras que muitas vezes destoam exatamente pela falta de conhecimento autêntico a respeito das condições de existência desses jovens. Em O livreiro do Alemão, narra como um episódio ocorrido ainda na infância, quando recolheu no lixo um livro que o encantou com as ilustrações, o transformou em um leitor. Com os anos, fez-se também artista, autor, criador cultural e incentivador da leitura na sua comunidade. Entre outros reconhecimentos que alcançou, no ano de 2020 recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil com o livro Da minha janela. Considerável também em sua narrativa, o fato de que para prosseguir com as suas realizações, deixou a escola: “Comecei a achar as aulas chatas”.[8] Posteriormente concluiu o ensino médio. A vida de Otávio Júnior poderia ser vista apenas como uma história de superação, mas a sua narrativa é muito mais generosa do que oferecer um exemplo pessoal. O que encontramos em O livreiro do Alemão é um olhar muito significativo sobre o lugar e um interesse legítimo sobre as perspectivas de vida das pessoas que ali moram.

Curiosamente, O livreiro do Alemão foi concebido em fins de novembro de 2010 exatamente quando ocorreu na região uma operação organizada pelas forças de segurança do Estado com apoio das forças armadas para a “retomada do território”. Otávio Júnior finaliza o livro com alguma desconfiança: “Em lugar do alívio, tenho dúvidas”. De fato, de início a chamada ocupação parecia promissora, mas não se concretizou.[9] Otávio Júnior já deixava uma pergunta decisiva em seu livro: “Como mostrar agora para esses jovens que vivem aliciados pelo crime organizado, que passam o dia desocupados, que se sentem excluídos pela sociedade, que há esperança de mudanças na vida de todos”.[10] Ele mesmo responde: “Talvez a resposta esteja nos livros”. Mais do que indicar que os livros são capazes por si só de criar alternativas às condições de opressão existentes, a resposta de Otávio Júnior parece apontar na direção das possibilidades originalmente emancipatórias. De modo algum se trata de “recuperar o território”, mas recriá-lo em favor de oportunidades de vida mais vastas, abertas e plurais, que realizem o pleno sentido de habitar uma cidade.

 



[1] OMENA, Mateus. Megaoperação no Rio: o que dizem as pesquisas e as redes. exame., 31 out. 2025. Brasil. Disponível em: https://exame.com/brasil/megaoperacao-no-rio-o-que-dizem-as-pesquisas-e-as-redes/. Acesso em: 16 nov. 2025.

[2] COELHO, Henrique. Após mais de 120 mortes, Castro diz que megaoperação no RJ foi “sucesso”: “De vítimas lá, só tivemos os policiais”. G1, 20 out. 2025. Rio de Janeiro. Disponível em:

 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/10/29/claudio-castro-entrevista-apos-megaoperacao.ghtml. Acesso em: 2 nov. 2025.

[3] Cláudio Castro é aplaudido após cantar em igreja no Rio. ICL Notícias. Disponível em: https://iclnoticias.com.br/claudio-castro-e-aplaudido-apos-cantar-em-igreja-no-rio/. Acesso em: 6 nov. 2025.

[4] GIELOW, Igor. Datafolha: Operação mais letal foi sucesso para 57% dos moradores do Rio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 1 nov. 2025. Cotidiano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/11/datafolha-operacao-mais-letal-foi-sucesso-para-57-dos-moradores-do-rio.shtml. Acesso em: 6 nov. 2025.

[5] FELTRAN, Gabriel. Operação no Rio faz parte de um projeto totalitário de extrema direita, diz pesquisador da violência. Entrevista concedida a André Fontenelle. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 nov. 2025. Cotidiano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/11/operacao-no-rio-faz-parte-de-projeto-totalitario-de-extrema-direita-diz-pesquisador-da-violencia.shtml. Acesso em: 8 nov. 2025.

[6] JÚNIOR, Otávio. O livreiro do alemão. São Paulo: Panda Books, 2011.

[7] Ibidem, p. 14/15.

[8] Ibidem, p. 40.

[9] HERINGER, Carolina; AMORIM, Diego. Dez anos após retomada, Complexo do Alemão perde serviços, e o tráfico volta a dominar. O Globo, Rio de Janeiro, 22 de nov. 2020. Rio. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/dez-anos-apos-retomada-complexo-do-alemao-perde-servicos-o-trafico-volta-dominar-24759604. Acesso em: 17 nov. 2025.

[10] JÚNIOR, Otávio, op. cit., p. 78/79.

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