Uma História de Amor e Fúria



 Os fãs dos filmes longa metragem de animação contam apenas com produções estrangeiras para curtir seu interesse. Por aqui não há muita coisa para assistir e raramente um título chega ao formato do DVD. Uma História de Amor e Fúria já é uma novidade por isso. Depois de uma passagem meio escondida pelos cinemas, ainda em 2013 foi lançado em disco.


Os que gostam de animação sabem que o gênero não é apenas destinado ao público infantil ou juvenil. Pelo contrário, muitas obras abordam temas de amplo interesse, basta existir a curiosidade pelo tipo de fantasia que o desenho suscita em quem assiste. “Amor e Fúria” é um filme para os que são atraídos pela História e não recusam a magia na elaboração do pensamento.

A narrativa do filme é um olhar sobre a história do país, com um olho no passado e outro no futuro. Saber do passado é também um saber sobre o futuro. São desejos entrelaçados. Na narrativa inicial, a voz do protagonista pergunta do futuro: “Como é que eu vim parar aqui?” Meditando, conclui: “Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”.

Nosso personagem tem 600 anos. Tempo mágico para a vida de uma pessoa, mas uma perspectiva rigorosamente histórica se considerarmos a maturidade do tempo na tessitura dos personagens que vivem as circunstâncias e as subjetividades da sua época. O contemporâneo não é exclusivamente o instantâneo vivido, mas o encontro de muitas eras.

O narrador dessa aventura no tempo (voz de Selton Melo) é o próprio protagonista do filme. Sua primeira identidade é a de um índio tupinambá. Em um ritual religioso descobre o motivo de seu poder de voar como um pássaro: foi escolhido para lutar contra Anhangá, uma disputa que acompanhará sua longa existência. “Você não poderá morrer”, diz o pajé.




 

Abeguar é investido de uma ética que deverá acompanhá-lo durante a história do país que nascerá da colonização portuguesa. Cada insubordinação e revolta simbolicamente terá como origem mítica a luta contra o poder que se inicia com a presença hostil do estrangeiro. A ocupação do território (e a exploração) inicia uma rebeldia que não cessará até que o reino de Inhangá termine.

Janaína (voz de Camila Pitanga) será companheira de Abeguar no caminho do tempo. Brigará ao seu lado. Amor e fúria são gestos inseparáveis na mitologia das lutas sociais e políticas que o filme propõe. Essa é uma tese esteticamente marcante na animação. Seus dois personagens principais podem ser vistos como ideais de luta onde o ódio contra o opressor não é rancor, mas paixão pela causa da justiça e da liberdade. O amor acontece na hora da luta também.

A trama segue após o episódio da expulsão dos nativos das suas terras, através de uma revolta promovida por escravos, já no início do Império, no Maranhão. Aqui ele é um sitiante negro que faz balaios. Sempre na pele de outros personagens, os episódios seguintes acontecem durante o golpe militar e depois em um futuro distrópico, imaginado no ano de 2096. Revoltas que se desenrolam sempre com o (re)encontro do nosso herói primário das nossas lutas com Janaína.

As virtudes do guerreiro nascido Abeguar sofrerão das mesmas vacilações, limitações e até fraquezas que oprimem os que se empenham nas lutas. Como guerrilheiro capturado, diante da ameaça de tortura de Janaína, termina entregando seus companheiros, que serão presos. É também idealista. Quando deixa a prisão, com a anistia, vai atuar como educador em uma favela. O que não impede de se transformar ainda em assaltante. Ele está junto dos fodidos.







Um século depois, a cidade do Rio de Janeiro é uma cidade controlada por milícias particulares. O bem mais valioso é a água, distribuída por uma máfia empresarial, a Aquabrás. Um comando rebelde sequestra o presidente da empresa e Janaína terá aí uma participação mais ativa do que nos outros episódios do filme, refletindo o protagonismo mais significativo da mulher na contemporaneidade.

Uma atenção particular dirigida às redes de imagens que fazem parte da narrativa nos dá oportunidades de expandir as reflexões que a animação proporciona. É possível, por exemplo, discutir duas imagens do Cristo que “conversam” no filme. A primeira delas nos mostra Abeguar de braços abertos no mesmo local que um dia irá figurar o “Cristo Redentor”. E quando aparece o Cristo “de verdade”, mas no futuro, está danificado, faltando um dos braços e pichado.

São duas imagens em momentos diferentes do filme, mas juntas indagam sobre a própria legitimidade do visível, enquanto a história é feita de muitas “invisibilidades”. É preciso saber olhar para nossos personagens nas cidades, distinguir sobre as integridades, entre os que estão sempre presentes, mas inertes, e aqueles que não são vistos, mas são suas existências que nos fazem caminhar, com forças, na direção do desconhecido.

Duas imagens que amalgamam o tempo – passado e futuro – de uma forma até enigmática, quando percebemos que o protagonista será chamado por Janaína, no último episódio, por “JC”.

Outras duas imagens podem ser colocadas lado a lado para figurar outra visão marcante ao longo do filme. Na primeira, Abeguar e Janaína são ameaçados por uma onça diante de um abismo. Sem alternativa, pulam. É quando Abeguar descobre que pode voar. No último episódio, fugindo da milícia, depois da frustrada ação guerrilheira, “não tem para onde fugir”, concluem os perseguidores. Mais uma vez o casal se lança do alto de um prédio, no “abismo”. Nunca estamos suficientemente encurralados pela ameaça do poder.

No início do filme ficamos sabendo que Abeguar foi escolhido pelo deus Munhã para liderar seu povo na busca da “terra sem mal”. O roteiro impregna a história de uma visão sagrada das lutas que são, assim, o maior empenho da vida. Vida, então, é amor, é fúria, sempre. Podemos discutir todo esse caráter mitológico das heranças e das missões. Desconfiar, até. Mas sem esquecer que é obra do cinema recriar imagens, sonhando o passado e filmando o futuro. 


Uma História de Amor e Fúria foi o vencedor do prêmio de melhor filme na edição de 2013 do Festival International du Film d'Animation d'Annecy. Para os interessados em detalhes mais técnicos e artísticos da animação, aqui é possível assistir um entrevista com Luiz Bolognesi explicando alguns detalhes da produção.


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Direção: Luiz Bolognesi 
País: Brasil
Ano: 2013
Classificação indicativa: 12




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