Tudo Que Aprendemos Juntos




Em 2015, o cinema brasileiro foi uma das mais interessantes vozes da educação no país. Quero dizer com isso que nesse ano algumas obras cinematográficas alcançaram determinada relevância na discussão sobre a educação, dialogando com a sociedade e provocando debates com o seu público.

Não são filmes especializados em educação, mas narrativas ficcionais que de algum modo discutem o assunto em suas histórias, interpelando o nosso olhar diante das questões que mostram nestas outras salas, a sala escura do cinema.

Pelo menos três filmes, a propósito, merecem a nossa atenção: Casa Grande, Que Horas Ela Volta e Tudo Que Aprendemos Juntos. Pretendo conversar sobre esses filmes aqui no blog em três publicações. Vou começar pelo último que assisti no cinema, agora no início de janeiro: Tudo Que Aprendemos Juntos, filme de Sérgio Machado.

Laerte, interpretado por Lázaro Ramos é um jovem músico que pretende ingressar na OSESP. As circunstâncias levaram-no à educação popular e seu encontro com jovens de uma favela constitui um episódio com aspectos interessantes para o debate sobre os caminhos e possibilidades da educação pública hoje.

Depois de uma participação frustrada em uma prova de audição para a orquestra, com dificuldades para pagar as contas, apesar da relutância inicial, assume como professor em um projeto social que pretende formar músicos para uma orquestra de jovens de origem popular e matriculados na escola pública.

Para ensinar, os problemas cotidianos do professor Laerte são absolutamente parecidos com aqueles enfrentados por tantos professores nas grandes redes públicas, desde a ausência das condições mais propícias para lecionar até a vivência do ensino com alunos que não parecem estar suficientemente  interessados no trabalho e ritual escolar.

Enquanto Laerte mostra-se dedicado, sistemático e rigoroso, a turma de alunos parece tudo de ruim. Faltosos, indisciplinados e agressivos, difícil acreditar na possibilidade do ensino com seus alunos. É a partir desse conflito que o filme mostra-se estimulante para uma discussão sobre a educação brasileira.

A narrativa do filme não é moralista, mas compreensiva a respeito da vida dos jovens das classes populares. Abordagem necessária na análise sobre os caminhos percorridos e outros rumos para a educação pública no país. Pensar a educação popular no Brasil, antes de tudo, é querer saber sobre essas pessoas, as circunstâncias de suas existências, suas dificuldades e suas alegrias.

A presença de Laerte na favela de Heliópolis é um “curso avançado” para o magistério. E como tal conhecimento não tem equivalente nos cursos de formação de professores, aqui o cinema realiza uma contribuição incomum, através do audiovisual, exibindo a vulnerabilidade em que vivem tantos jovens diante das condições de vida que as cidades produzem com a segregação do território. 

O cinema poderia constituir-se, regularmente, em uma rica experiência didática na formação de professores.

No filme, a visualidade de São Paulo se afasta das muitas outras imagens que procuram retratar a grandeza da cidade. Uma visualidade que nos mostra, sobretudo, uma metrópole culturalmente popular - não é a música erudita a protagonista na história, mas a cultura popular. 

Buscando o aperfeiçoamento dos seus jovens alunos, Laerte irá misturar-se com eles, implicado com as suas vidas, percorrendo seus cotidianos e cruzando fronteiras. Tocará com a sua jovem orquestra, por exemplo, na festa de 15 anos da filha do chefe local do tráfico, interpretado por Criolo.  

Em diversos momentos do filme eu me recordei do meu trabalho como professor de História no Ensino Fundamental da rede pública da cidade do Rio de janeiro, entre os anos de 1993 e 2006.

Assim como Laerte, muitas vezes reclamei da falta de atenção dos meus alunos. O que estão fazendo na escola que não se concentram? Já aprovado no concurso para a OSESP, Laerte é severamente repreendido pela maestrina Marin Alsop porque está desatento. Como qualquer um de seus alunos da favela, ele não está presente, mas “distante”.

Não acreditamos muito na existência de motivos suficientes para a desatenção dos nossos alunos. Mas os alunos, no filme, representam dramas e problemas que estão bem presentes na vida dos jovens que cotidianamente frequentam as escolas existentes. É esse aluno real que deveria orientar nossa imagem da educação, não o aluno ideal. 

O professor negro Laerte me pareceu um personagem oportuno também, diante de outra recordação do magistério. Eu me lembrei de uma discussão, na escola, entre professores, sobre as cotas raciais. Não eram favoráveis. Eu observei que nenhum deles era negro. Fiquei com a impressão de que estavam se posicionando sobre algo que não atingia suficientemente suas vidas.


 


Em outros momentos do filme, pensei também nesse percurso profissional em que eventualmente deixamos a Educação Brásica para ensinar exclusivamente na universidade, avaliando apenas o nosso "progresso". 

Personagem trágico com grande destaque na história, o jovem Samuel, interpretado por Kaique de Jesus, vê no seu professor um personagem edificante para os seus sonhos. Quando descobre que Laerte vai deixar a orquestra jovem, depois de conseguir a aprovação no concurso para a OSESP, interroga seu professor, afirmando que ele era mais um que estava abandonando eles pelo caminho.

Essa é uma cena muito impactante pela força moral da cobrança. A educação nos preocupa, mas nos ocupa mais ainda a progressão profissional na carreira de professor e pesquisador. Laerte também tem uma origem social não privilegiada, mas, distante de casa, no meio das suas ambições com a música clássica, não está também, de forma suficiente, junto dos seus alunos da periferia.

Em uma das últimas cenas, há uma revolta na favela depois de mais um jovem ser assassinado pela polícia. Esse episódio nos mostra que apesar dos contatos, trocas e misturas, existe uma territorização dura entre o asfalto e a favela. As classes populares precisam impor seu próprio caminhar, sua cultura e também sua educação.

Apesar da correspondência entre Laerte e os seus alunos, o fato do professor seguir o seu caminho é revelador desse outro caminho sem volta que é a autonomia das classes populares. E na última cena, de algum modo, o filme parece ter consciência disso. Avançando sobre a cidade, são eles que assistem Laerte tocar ao vivo na orquestra - e pagando com um cartão clonado o caro ingresso.

Ultrapassada a concepção de levar cultura até às classes populares. Conservadora até a ideia de querer “dialogar” decidindo por elas a pauta da conversa. Melhor saber o que querem conversar conosco, universidade e educação pública. Não há outro caminho válido para a educação popular hoje no país. 

As classes populares estão chegando. E o cinema está querendo chegar junto.

Em tempo: Já nos créditos finais do filme, achei curiosa a informação de que o filme era baseado em uma peça de teatro escrita pelo empresário Antonio Ermírio de Moraes.


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Título:Tudo que Aprendemos Juntos 
Direção: Sérgio Machado 
País: Brasil 
Ano: 2015








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