Fome


O que realmente nos faz evitar a abordagem das pessoas que nos pedem dinheiro nas ruas? Ou ainda, ao contrário, o que decididamente queremos quando procuramos por elas para uma oferta de comida? São encontros entre dois extremos, repletos de receios ou caridosa aproximação. Suas figuras escondem histórias e biografias noturnas, sem a visibilidade solar que acreditamos tranquilizadora. Uma opacidade que, na verdade, também possuímos. Tentamos, muitas vezes, dissipar a neblina que encobre as nossas incertas identidades realizando um bem.  

Que pessoas são essas? Que pessoas somos nós? Quem é você, professor?

Fome, de Cristiano Burlan, é um dos filmes nacionais mais interessantes recentemente em cartaz. Na sala em que assisti ao filme, apenas três pessoas presentes. Não sei se o título já nos pede alguma coisa que é melhor desviar os olhos ou se o filme brasileiro praticamente sem publicidade não leva quase ninguém ao cinema mesmo. Uma pena audiência tão pequena. O filme é ótimo, colocando-nos diante dos indesejados moradores de rua para perguntar sobre o lugar da cidade moderna na tessitura das (in)diferenças.   

Uma estudante (Ana Carolina Ribeiro), realizando uma pesquisa para a universidade, percorre o centro de São Paulo entrevistando moradores de rua. Entre os personagens das suas conversas, conhece “Joaquim”, um homem já velho. Curioso personagem, ele sabe francês e parece levar consigo, além do carrinho com seus poucos pertences, uma controvertida altivez para quem vive nas ruas. A moça se interessa por sua existência e procura estabelecer um contato menos controlado que o proporcionado por um trabalho acadêmico.

A figura de Joaquim move-se pelas ruas, percorrendo calçadas, parques, sinais de trânsito, viadutos. Seu passeio diário nos faz ver a cidade como lugar de ligações, mas também de aversões.  Joaquim é um dândi ao avesso com a sua estética desagradável. Na condição vulgar de um andarilho urbano, sua vida corre na fronteira entre a necessidade de ser percebido ou de não ser notado. Precisará sempre de alguma doação, mas a cidade não é amistosa com as existências que se desprendem das práticas ou regras que ela fixa.

Estabelecer-se nas ruas é a migração daqueles que se exilaram da vida normalizada da cidade ou foram forçados ao êxodo. Difícil suportar os assédios da cidade. Cintilam anúncios para ingressar em seus espaços mercantis. Como penetrar nesses lugares quando se vive no território da pobreza? Sobram os brilhos que se encontram nas distantes estrelas vistas nas noites mais transparentes. As cidades, contudo, tampouco acolhem habitantes que vivem ao relento. “Muita gente deprimida olhando para o chão”, diz Joaquim.

Quem sabe, na sua desintegração visual, a figura do morador de rua nos apresente uma imagem mais integral da cidade e isso nos amedronte. Não posso também, um dia, ser expulso da cidade burguesa? Existe algo mais repugnante para um professor do que um marginal?

O filme é em preto e branco. Parece estranha essa escolha, diante da viva nitidez da fome. O que poderia ser mais realista que a fome? Existem muitas ciladas na cultura visual de uma cidade. Muitas coisas para ver e muitas invisibilidades também. O preto e branco no filme reeduca o olhar fraturando a multidão de cores que na cidade dissipa qualquer atenção. É assim que a câmera se detém em Joaquim e desarma o nosso olhar da repulsa ou piedade usual. Joaquim pode agora ser visto singularmente, sem o automatismo treinado da visão.

Em um dos seus deslocamentos pelas ruas, alguém reconhece Joaquim. É um encontro tenso. Joaquim nega a possibilidade de ser quem a pessoa imagina. O interlocutor insiste. Sim, Joaquim foi seu professor, na universidade. Lecionava cinema na USP e depois sumiu. O que faz um “doutor” morando nas ruas? O rapaz se apresenta dizendo-se agora autor de “teses” e lembrando episódios frustrantes vividos com o professor. Joaquim zomba das “teses” e demonstra agora ceticismos em relação às realizações acadêmicas.

Intensificando a incerteza sobre a fixação das identidades, importante observar que “Joaquim” é interpretado por Jean-Claude Bernadet, francês, professor de cinema no Brasil e autor de livros. Na pele de um personagem, ele também desconfia das suas “teses”? As identidades balançam a contrapelo da arquitetura rígida da cidade.




A jovem estudante entrega seu trabalho e conversa com seu professor. A partir do seu encontro com Joaquim tece dúvidas sobre a autenticidade das representações da pobreza. Como e a quem servem? 

Fome indaga também a conveniência de uma identidade definitiva no cinema. Fome é um documentário ou uma ficção? Existem instantes em que imaginamos que poderia ser também uma ópera ou um musical. Poderia ainda, perfeitamente, ser apresentado como uma peça de teatro. Todas essas possibilidades se presentificam aos olhos do espectador, excitado a duvidar sobre a suposta naturalidade das imagens, que não são constituídas de semelhanças com o real, mas de sentidos que se querem atribuir a ele.

Na vida das cidades, a figura do morador de rua assusta porque contaria a imagem mais estável dos seus habitantes. A identidade de cada, que se quer definitiva, na verdade, é incontrolável. Quem realmente sabe sobre as suas sombras e o devir da sua vida? Lidar com a privação dos outros é também estar diante do nosso inacabamento. A fome e a sua notável extensão é uma vivência das cidades que ameaça a paz das identidades. E o cinema é o olho que abre uma ferida na imagem.

*

Direção: Cristiano Burlan
País: BRA
Ano: 2016
Classificação indicativa: 12


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Kiriku e a Feiticeira

Carregadoras de Sonhos

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho