Nunca Me Sonharam


Ainda que muitas vezes observado como uma instrutiva mídia educacional no país, pedagogizante e política, o cinema nacional, por outro lado, ao longo de sua história, não se interessou muito em interpelar e discutir a própria educação.

Diferentemente da cinematografia de outros países, não encontramos “filmes de professores”, “filmes de escolas” ou com alguma outra abordagem sobre o assunto educação, em número significativo entre as nossas produções de ficção feitas para o cinema. Tampouco entre o cinema de documentário o cenário é outro. Enfim, o que existe parece pouco para um país que tem reconhecidamente na educação um dos seus problemas mais lembrados.

No entanto, nos últimos anos já sentimos alguma mudança. O ano de 2015 foi especialmente relevante com pelo menos três filmes de ficção apresentando questões referidas à educação em suas histórias: Que Horas Ela Volta? , Tudo Que Aprendemos Juntos e Casa Grande. Entre os documentários, também em 2015, tivemos Últimas Conversas. Então, parece, começamos a encontrar cada vez mais imagens da educação no cinema brasileiro.

Agora mesmo, no Rio de Janeiro, no Itaú Cinemas, está em cartaz mais um filme que discute a educação: Nunca Me Sonharam, dirigido por Cacau Rodhen. Um documentário que apresenta dezenas de jovens estudantes do Ensino Médio, falando do cotidiano das escolas em muitas cidades do país, mas também de suas apreeensões sobre o futuro de suas vidas. O documentário é um retrato social e cultural dos jovens das classes populares através da escolarização.

Nunca Me Sonharam não apenas é mais um filme que se junta a outros para conferir maior importância à visão do cinema sobre a educação brasileira, mas faz isso em boa hora. A escolarização dos jovens está agora no centro político do debate educacional em razão da criticada reforma do Ensino Médio empreendida pelo governo Temer, mas também diante da mobilização dos estudantes no recente movimento #ocupaescola.

Fazer um filme sobre educação privilegiando as vozes juvenis me pareceu uma escolha estética acertada, frente às propostas de silenciamento de educadores, mas também dos estudantes, através de projetos e movimentos como “Escola Sem Partido” e “Escola Livre”, que ameaçam a dignidade mesmo do ato de estudar. Estamos na era das guerras culturais. Articulam-se movimentos que procuram evitar práticas educativas em favor das identidades sexuais e também das políticas de reparação das cotas raciais. É preciso ouvir os jovens sobre tudo isso.  

Existe uma poética no filme que afaga as juventudes. Em Nunca Me Sonharam uma tessitura para que os jovens apareçam de forma fulgurante. Penso que é o maior mérito do filme. Apesar de toda a opressão social, das precariedades e das adversidades nas escolas, as juventudes flamejam criando espaçostempos que vitalizam suas vidas e a nossa própria época. Sem o ardor dos jovens, no futuro.

Há uma compreensão da vida dos jovens das classes populares no filme que nos dá outras imagens desses personagens, tão reproduzidos e ainda tão desconhecidos, se mirarmos outras tantas produções cinematográficas e muito do que é veiculado pela TV. Resultado que assegura um valor apreciável para Nunca Me Sonharam como um cinema atual. Mas algumas observações críticas, necessárias a meu ver, precisam ser feitas também.       

Ao lado das vozes de dezenas de jovens, aparecem ainda narrativas de profissionais da educação que trabalham nas escolas. São participações interessantes para a compreensão de como vivem esses jovens nas escolas e o contexto de ser estudante e das classes populares em escolas públicas do país. Outras vozes também participam do filme: Especialistas diversos, convidados que nos ajudam a pensar mais amplamente as juventudes, a educação e a sociedade brasileira.

Apesar das escolhas que me pareceram pertinentes para a composição de personagens juvenis que fizessem sentido para o documentário proposto, não me convenceu, no filme, a necessidade de outros personagens que não participam diretamente da vida nas escolas. O título do filme, Nunca Me Sonharam, foi extraído da narrativa de um dos jovens. “Nunca me sonharam”, ele diz. Há uma solidão, mas uma inequívoca consciência juvenil sobre a ausência dos jovens na formulação das políticas educacionais e da própria concepção de sociedade.

Ainda que diálogos diversos sempre acrescentem novos horizontes para discutir a vida dos jovens, penso que teria sido uma opção mais audaciosa exatamente a ausência das figuras que, no filme, não parecem tão necessárias de existir ali. Personagens que poderiam ser todas extraídas da montagem sem representar uma alteração significativa no resultado alcançado. Na verdade, tal exclusão teria acentuado a autonomia política dos jovens e dos educadores escolares na discussão sobre os rumos da educação popular.   

Por outro lado, enquanto assistia ao filme, pensando na sua atualidade, ausências também se desenhavam. Em momento algum existe notícia de acontecimento tão importante para o cenário da educação pública no país, ocorrido no ano de 2016. Refiro-me ao já mencionado movimento juvenil de ocupação das escolas que se desenvolveu em tantas cidades. Não há qualquer alusão ainda ao enfático questionamento, de vários setores da sociedade, a respeito da atual reforma do Ensino Médio. Saí da sala de cinema pensando a propósito dessas ausências. Por que a invisibilidade desses temas no filme?

Existe uma inegável abordagem crítica no filme. Mas qual o seu alcance? A condição social dos jovens que vivem nas periferias e a tessitura de identidades juvenis a contrapelo do poder são questões presentes no filme com uma abordagem transparente. No entanto, a suposição de uma educação “democrática” ou “liberal” não é suficiente para contestar a situação da escola destinada à maioria popular no Brasil. É preciso ser radical também no cinema, ou seja, ir à fronteira política do problema.

Nunca Me Sonharam em momento algum coloca de maneira objetiva o problema da finalística na educação. Sobre isso, observa inequivocadamente Paulo Freire: “A questão fundamental é política. Tem que ver com: que conteúdos ensinar, a quem, a favor de quê, de quem, contra quê, contra quem, como ensinar”. Ou seja, se a escola precisa mudar, é preciso discutir também, contra quê, para quê, em favor de quem, contra quem. Se um filme sobre juventudes e educação, que pretende ser crítico, não expôe isso claramente...

Um detalhe importante me chamou atenção nos créditos iniciais do filme: “Instituto Unibanco apresenta”. Portanto, trata-se de um filme veiculado por uma agência política orientada por uma instituição financeira, o Itaú Unibanco. O ideário do Instituto Unibanco é também inequívoco nos seus campos de interesse juventudes e educação (gestão escolar). Sua visão social é empresarial, capitalista.

Organizado pelo Instituto Unibanco, o evento Desafios Curriculares do Enino Médio: a implementação da flexibilização, que acontecerá na cidade de São Paulo, entre os dias 21 e 22 de junho, é uma propaganda da criticada reforma currícular do Ensino Médio empreendida pelo governo Temer. Na programação, o filme será exibido em destaque. Então, fica a pergunta: Nunca Me Sonharam: filme de autor ou de um banco

Entre as tessituras do visível e do invisível um filme expõe a sua imagem da política e a sua política da imagem.  

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A citação de Paulo Freire foi extraída de uma entrevista concedida ao jornal  Psicologia, do CRP de SP, na ocasião em que era o secretário de Educação da cidade de São Paulo. Poderá ser consultada no seu livro A educação na cidade, publicado pela editora Cortez.

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Título Original: Nunca Me Sonharam
Direção: Cacau Rhoden
País: BRA
Ano: 2017

Classificação indicativa: Livre


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