Paulo Freire: A trama das imagens entre o currículo e a pedagogia da imagem


(Texto escrito para a minha participação na mesa “Currículo e a Pedagogia do Oprimido” da Semana Acadêmica de Pedagogia, no Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, em Nova Iguaçu, no dia 16 de outubro de 2017)

Agradeço-lhes o convite para a participação na mesa “Currículo e a Pedagogia do Oprimido”. Parabenizo também pela oportuna lembrança de Paulo Freire na ocasião dos 20 anos da sua partida.

Nos dias que correm, a memória de Paulo Freire é aviltada por uma campanha difamatória sobre o significado da sua obra e me parece especialmente relevante que estudantes queiram discutir o seu legado, preservando a sua presença entre nós.

Eu gostaria de dar um título à minha apresentação: “Paulo Freire: A trama das imagens entre o currículo e a pedagogia do oprimido”.

O que pode nos assegurar a importância de Paulo Freire hoje é o diálogo vivo com a sua obra. Paulo Freire ainda nos ajuda a pensar os desafios da educação popular no século XXI?

Tive a sorte de lecionar durante muitos anos na educação básica, inclusive na escola pública, como professor de História, antes de me dedicar exclusivamente ao ensino superior. Trabalhei durante treze anos na rede pública municipal do Rio de Janeiro. São os desafios que vivi no “chão da escola” que ainda orientam a minha curiosidade acadêmica.

Sobretudo, foi o contato com jovens das classes populares, moradores dos subúrbios, das comunidades e das favelas, o que me fez pesquisar e pensar como educador.

Foi um encontro desafiador lecionar para esses jovens, atento às suas presentificações na escola, na cidade e no mundo.

Muitas vezes eu me perguntei o que eu poderia fazer ao lado deles como educador. E hoje, na universidade, continuo me perguntando como me manter dedicado às suas vidas.

Sempre observei o atrito que causavam nos cotidianos. E continuam causando, ainda posso dizer. Suas estéticas colidem com o nosso olhar.

São jovens que parecem incompatíveis com a educação escolar (republicana e burguesa, certamente). Suas imagens sempre provocaram a minha curiosidade. Foram elas que me trouxeram até aqui, como professor e pesquisador.

O ser social sempre foi um artista, isto é, um criador. E as imagens, expressivas e/ou pictóricas, desde sempre estão entre as criações mais comuns. 

Onde eu moro, pessoas reclamam das pichações que frequentemente aparecem nos muros que cercam o condomínio. Uma charge em uma publicação de humor pode ser o motivo para um atentado terrorista. Obras em uma exposição podem ser acusadas das piores imoralidades. Performances artísticas parecem ofender nossos valores. As imagens fazem parte da agitação do mundo atual. Incomodam e provocam todo tipo de reação.

Bem, o que eu gostaria de chamar a atenção nesta minha breve apresentação é de que Paulo Freire fez também, de uma certa forma, uma pedagogia da imagem. Será o assunto da nossa conversa.

Paulo Freire sempre afirmou o caráter político da educação e por isso é constantemente lembrado. No entanto, sempre observou também a dimensão estética da educação. O político e o estético sempre estiveram juntos no pensamento educacional de Paulo Freire. É hora de recuperar a unidade da relação entre o político e o estético na sua obra. É uma via importante para manter vivo o seu pensamento.

Aqui pretendo me deter apenas no chamado Método Paulo Freire, destacando como o uso de imagens é um momento significativo da sua prática – e como tal prática abre-se para muitas experimentações, suscetíveis a constantes reelaborações.  

Como sabemos, Paulo Freire tornou-se um educador especialmente importante a partir de uma ação pedagógica na cidade de Angicos-RN, em 1963, através de um projeto de alfabetização de adultos. A metodologia adotada contém uma sucessão de etapas. Provavelmente, o instante mais lembrado da execução do Método Paulo Freire é aquele em que a partir das “palavras geradoras” são apresentadas as “famílias fonêmicas”. Creio que ao ouvirmos alguma referência ao Método Paulo Freire, o que nos ocorre imediatamente é uma imagem com a projeção de sílabas.


Existe, contudo um momento anterior do Método, que consiste em uma conversa provocada pelo uso das fichas de cultura. 








As fichas de cultura eram elaboradas com imagens. O que vimos acima são desenhos realizados pelo artista Vicente de Abreu, que Paulo Freire apresenta no livro Educação como prática da liberdade. Qual a finalidade das fichas de cultura?

É importante dizer que o chamado Método Paulo Freire nasceu de uma preocupação política. Quando escreveu Educação como Prática da Liberdade, em 1965, após o golpe militar e vivendo no Chile, Paulo Freire fazia o seguinte diagnóstico da sociedade brasileira: uma sociedade em transição que precisava resolver o problema da sua “inexperiência democrática” para alcançar um estágio superior de progresso econômico e social (o modelo teórico desenvolvimentista orientou uma primeira fase do pensamento social de Paulo Freire, importante lembrar). Paulo Freire via na educação uma ação política para superação da referida “inexperiência democrática” do país. Projeto interrompido com o golpe de 1964.

O chamado Método Paulo Freire, aplicado para a alfabetização de adultos, não se resumia à pretensão de um método eficiente de alfabetização. O pretendido por Paulo Freire é que tal método proporcionasse ao educando uma “consciência crítica” a propósito da sua própria existência, ou seja, que alcançasse uma compreensão a respeito da sua condição social ativa, capaz de localizar sua situação social, mas também de recriá-la, modificando sua vida. Esse é o sentido político do seu método.

Voltando à questão, por que mostrar imagens no Método Paulo Freire?

As fichas de cultura deveriam servir exatamente a uma discussão sobre o significado da “cultura” na elaboração da existência humana. Atuamos (vivemos) modificando a natureza e transformando também a nós mesmos, através da vida social. As fichas de cultura deveriam desafiar a compreensão da nossa condição humana, social e transformativa, através das situações existenciais que figuram nas fichas. 

A concepção subjacente de alfabetização é a de que, uma vez alfabetizado, o educando não apenas seria capaz de ler palavras, mas de, dominando a “cultura letrada”, dominar a sua própria história. Essa é a “pedagogia do oprimido”, tal como aparecerá no livro escrito em 1968, em que a perspectiva social da teoria desenvolvimentista cede lugar, contudo, a uma concepção revolucionária e de esquerda.

O que chamamos de “Método Paulo Freire” nunca foi concebido como passos que devem ser tão somente seguidos pelo educador, mas uma prática que deve ser refeita cotidianamente, observando sempre as populações a que se destinam, de acordo com a cultura e história dos lugares. Até os materiais utilizados podem e devem ser diferentes para contextualizações mais adequadas. Para efeito de apresentação do Método, Paulo Freire usou desenhos produzidos por artistas. Além das imagens que mostrei aqui, de Vicente de Abreu, existe uma outra coleção de desenhos que o artista Francisco Brennand fez para Paulo Freire. Na verdade, trata-se de um material variável de acordo com as circunstâncias. Por exemplo, poderiam ser desenhos feitos por artistas do lugar, desenvolvidos com a equipe do projeto. Em Pedagogia da oprimido, de 1970,  e em Pedagogia da Esperança, de 1992, Paulo Freire narra o uso de fotografias entre educadores norte-americanos, com fortes resultados. Agora, no século XXI, provavelmente, o mais contemporâneo seria o uso de imagens produzidas pelos próprios educandos!  A vulgarização da fotografia e até do audiovisual através de equipamentos miniaturizados como o celular, permitem isso.

Paulo Freire não foi exatamente um “teórico do currículo”, mas sem dúvida sua concepção de educação tem implicações para a sua prática. Dois aspectos, gostaria de assinalar, finalmente: 1) O currículo serve a um projeto de emancipação, nunca de reprodução das condições de desigualdade social; 2) O currículo é tecido sempre em diálogo com as classes populares, nunca se constituindo como um programa hierarquizado, feito “de cima para baixo”, visando sua aplicação de forma disseminada e indiferenciada. 

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1981.  

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 17ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

______. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.




Comentários

  1. Acho que a dimensão política da educação e sua possibilidade de emancipação dos sujeitos sempre colocou medo na elite brasileira, por isso a necessidade de desqualificar Paulo Freire. Parabéns pelo texto.

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