Paulo Freire: Por uma educação crítica, democrática e transformadora



Texto que preparei para a minha participação em dois eventos:
Dia 22 de outubro, na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia – SNCT 2019 – UFRRJ, no Campus Nova Iguaçu, quando apresento a palestra Paulo Freire para entrar no século XXI.
Dia 24 de outubro, quando participo da mesa-redonda Paulo Freire: por uma educação crítica, democrática e transformadora, no 10º Fórum de Licenciaturas da UFF, em Niterói.

Sobre Paulo Freire, vivemos um momento ímpar. Mesmo após a sua partida, no ano de 1997, seu legado é duramente perseguido por seus detratores. Já é icônica a imagem abaixo, de uma manifestação em 2015 que pedia o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, e até Paulo Freire foi atingido.




Como educadores, estamos diante de um importante desafio. Educador brasileiro de maior repercussão nacional e internacional tem sido duramente atacado por grupos e indivíduos que representam o que existe de mais reacionário no Brasil contemporâneo. Por outro lado, o interesse por Paulo Freire aumenta, inclusive com a publicação de novos livros dedicados a ele. Apenas em 2019, citaria pelo menos três obras publicadas.



Mais ainda, com grande empenho de Ana Maria de Araújo Freire, obras com inéditos de Paulo Freire em livro ou reedições são lançadas. Destaco a nova edição de A educação na cidade, de 1991, versão ampliada que ganhou novo título e nova editora também, agora em 2019.



Recentemente, em setembro, participei do evento conjunto III Encontro da Cátedra Paulo Freire da Amazônia/IV Fórum de Leituras de Paulo Freire da Região Norte/XV Jornada Paulo Freire/I Semana Paulo Freire do Curso de Pedagogia da UEPA, em Belém, Pará. A oportunidade de acompanhar o evento na região Amazônica foi única na percepção da multiplicidade de atores sociais que usam e dialogam com a herança freiriana. Eu destacaria o movimento popular feminista, o movimento quilombola e o movimento indígena.

Paulo Freire está no olho do furacão. Existe um renovado interesse por sua obra, mas existem também difamadores que perseguem a sua reputação como educador. Qual a nossa responsabilidade como educadores? Antes de tudo, de toda e qualquer opção sobre Paulo Freire, precisamos conhecer e entender a sua obra. Naturalmente, como qualquer autor significativo, Paulo Freire está sujeito a polêmicas e discussões sobre os sentidos do que escreveu e realizou também como educador. Como autor, Paulo Freire só sobreviverá decisivamente se for debatido e reinventado.  

O problema é de outro tipo. Muitas objeções à obra de Paulo Freire, realizadas publicamente até por autoridades do governo e, inclusive, pelo próprio presidente, são baseadas em fake news e orientadas pela chamada pós-verdade. Não são discussões acadêmicas ou políticas em um sentido válido. São verdadeiras campanhas para desmoralizar a herança de Paulo Freire, sem qualquer fundamentação científica, apenas orientadas pela contrariedade absoluta, inclusive pelo ódio.

Mais uma imagem, a título de exemplo. Em agosto de 2018, às vésperas da eleição, a página do twitter #SaídaPelaDireita, atualmente com 41 mil seguidores, publicou o meme abaixo contra Paulo Freire.



A acusação de doutrinação da educação freiriana é a mais recorrente.

A leitura dos textos de Paulo Freire não autoriza a conclusão de que o chamado Método Paulo Freire, ou mais amplamente o seu pensamento, é baseado na doutrinação. Pelo contrário, encontramos na sua obra inúmeros posicionamentos contra a doutrinação.

O “problema” está em outro lugar. O que Paulo Freire sempre afirmou foi a politicidade da educação.

O que me proponho a apresentar aqui é o percurso que Paulo Freire desenvolveu em três obras que escreveu entre o final das décadas de 1950 e de 1960 para compreendermos o sentido político da sua concepção de educação, que tanto atemoriza seus declarados inimigos.


Educação e atualidade brasileira é a tese que escreveu para o concurso professor de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Belas Artes de Recife. Paulo Freire publicou a obra em uma edição do autor, em 1959. É um trabalho que relaciono ao que chamo de “primeiro Paulo Freire”, enquanto Pedagogia do oprimido, em aproximadamente 10 anos, representará uma importante inflexão no seu pensamento.

A principal proposição de Educação e atualidade brasileira é a de que o país possui uma antinomia fundamental, entre a nossa inexperiência democrática e a emersão do povo. Amparado por uma bibliografia escrita por autores que tinham como projeto uma “interpretação do Brasil” e orientado também pelo “pensamento desenvolvimentista”, Paulo Freire procurou mostrar o déficit democrático da sociedade brasileira a partir dos elementos constitutivos da sociedade colonial e o impasse que o país se deparava diante do processo de modernização já deflagrado. Para Paulo Freire, a solução do impasse estava na educação.

Para demonstrar o papel decisivo que poderia ser exercido pela educação na “atualidade brasileira”, Paulo Freire faz uma análise das formas de consciência. Herança da forma de sociedade colonial adquirimos uma consciência intransitiva dominante. Trata-se de uma consciência limitada à existência mais imediata do indivíduo, sem a capacidade de problematizar mais amplamente a vida histórica e social, resultado das práticas de poder vigentes, de ausência absoluta da experiência democrática.

Provocada pelos processos de modernização urbana e industrial, a consciência intransitiva torna-se transitiva, mas imediatamente ingênua e insuficiente para uma sociedade em transição. A tese de Paulo Freire é de que a educação é o caminho para a aquisição de uma consciência transitiva crítica adequada ao desenvolvimento econômico em curso. A não ultrapassagem da consciência transitiva ingênua em consciência transitiva crítica é a massificação como modo degenerado de consciência social.

Paulo Freire atribuí à educação a condição de criar a subjetividade correspondente à consciência transitiva crítica. Porém, critica a escola existente e fala da sua necessária transformação, vencendo os modos tradicionais de ensino, que não desenvolvem as capacidades requeridas para o desenvolvimentismo e progresso social. Por que não? Em razão das suas características inibidoras, como o mutismo.  A escola necessita inaugurar condições expansivas para a formação de um indivíduo plenamente atuante, capaz de dirigir sua vontade no sentido da colaboração social.

Poderíamos dizer que a dinâmica do capitalismo avançado requer um indivíduo mais participativo e integrado, ativo. A escolarização, apostava Paulo Freire, era o processo adequado para essa aquisição. O “primeiro Paulo Freire” ainda não trabalhava com a concepção de mudança social no sentido de superação do próprio capitalismo. Paulo Freire estava mais preocupado com uma maior correspondência da sociedade brasileira com o capitalismo, sem pensar em uma transformação estrutural, diríamos agora. 

De todo modo, o que gostaria de reter aqui é a tese de Paulo Freire, segundo a qual a escola deveria exercer um papel necessário para o desenvolvimento, e o educando transforma-se em um indivíduo participante, socialmente atuante para as mudanças requeridas. 

Educação como prática da liberdade foi publicado em 1967, mas já estava escrito em 1965. É considerado o primeiro livro de Paulo Freire publicado por uma editora.  Em alguma medida, é uma reelaboração de Educação e atualidade brasileira. No entanto, existe, pelo menos na parte final do livro, um importante acréscimo que nos interessa para entendermos a ideia de politicidade da educação que nos fala Paulo Freire.

Educação como prática da liberdade foi escrito no exílio, quando Paulo Freire ainda estava no Chile. Importante recuperar a trajetória de Paulo Freire até aqui. No começo dos anos sessenta, através do Serviço de Extensão da Universidade de Recife e do Movimento de Cultura Popular de Recife, Paulo Freire atuou em campanhas de alfabetização. A mais destacada delas, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. Desenvolveu nesses trabalhos o que ficou conhecido como Método Paulo Freire ou Sistema Paulo Freire.

Em 1963 Paulo Freire ganha uma projeção muito grande como educador e já começa a adquirir reconhecimento internacional com o seu trabalho na alfabetização de adultos. É convidado pelo presidente João Goulart para liderar uma campanha nacional. No entanto, em 1964 acontece o golpe civil-militar, que perseguirá aqueles que eram vistos como inimigos do regime recém instalado. Entre eles, Paulo Freire. Depois de duas prisões e certo que seria novamente preso, Paulo Freire parte para o exílio. Uma passagem rápida pela Bolívia e depois segue para o Chile, onde permaneceria até 1969.

O que gostaria de destacar de Educação como prática da liberdade é o conteúdo referido ao Método Paulo Freire, que já havia desenvolvido no ano de 1963. O método é menos uma sucessão de procedimentos e mais uma determinada concepção de produção de conhecimento que poderia ser organizada como uma ação pedagógica e cultural libertadora. Mantida a perspectiva anterior de conscientização, agora existe uma prática sistematizada como proposta para o trabalho de alfabetização.

Com o Método Paulo Freire a alfabetização tornava-se uma prática educativa em que o indivíduo deveria adquirir uma perspectiva existencial desenvolvida sobre as suas próprias capacidades criadoras como ser social. O indivíduo deixava de ser apenas objeto das políticas que dirigiam sua vida para tornar-se também sujeito das políticas, capaz, portanto, de dirigir o seu próprio destino.
Existe uma característica do Método Paulo Freire que era a sua implicação cultural e social com o educando. A ideia é de que essa implicação criava as condições necessárias à própria aprendizagem através do interesse. Estamos diante de uma concepção de educação temerária para as elites que se mantinha elite exatamente porque podiam também manter as classes populares inconscientes de suas capacidades e do legítimo direito de governar a própria existência. A educação tradicional não desvela, ela oculta. Partindo dos referenciais das próprias classes populares, o Método Paulo Freire autentica e potencializa seus elementos através do que a educação proporciona aos grupos alcançados.

No jogo inicial de codificação/decodificação proposto com o uso das chamadas fichas de cultura, os educados se deparam com as situações existenciais e são provocadas a pensar as criações humanas, conscientizando-se como sujeitos e não objetos da história.



As “aulas”, na verdade, são círculos de cultura e suas reuniões fomentam o sentido do coletivo e socialmente emancipatório. Aqui, então, com experiências educativas já desenvolvidas por Paulo Freire no começo da década de 1960, especialmente a partir da campanha de alfabetização na cidade de Angicos/RN em 1963, o elemento político da educação adquire uma determinada radicalidade porque já está articulada a movimentos e práticas que causavam tensão com o poder. Paulo Freire será convidado pelo presidente João Goulart para liderar uma campanha nacional de alfabetização.

Importante observar que uma ampla campanha nacional de alfabetização teria uma repercussão “conscientizadora” das classes populares que poderia afetar até o comportamento eleitoral. Alfabetizados, já poderiam votar. Na verdade, o número de eleitores cresceria significativamente em muitos lugares, o que era preocupante para as elites que contavam também com as eleições para controlar seus interesses. Em uma atmosfera política nacional que era de polarização, o Método Paulo Freire tinha um significado de politização da educação que era inconveniente para o projeto que a direita mais conservadora e reacionária tinha para o país.



Politicidade da educação que adquire em Paulo Freire outro patamar com a publicação de Pedagogia do oprimido. Livro que já estava pronto em 1968, mas publicado primeiro nos EUA em 1970. Em relação à Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da liberdade, Pedagogia do oprimido se distancia do primeiro e mantém alguma proximidade com o segundo. O que desaparece é o esquema interpretativo mais geral da sociedade brasileira e acentua uma concepção da educação vista a partir do interesse de um sujeito específico, o oprimido, identificação da classe popular diante seu oposto, o opressor.

A definição de uma identidade social localizada em uma estrutura de poder e a formulação de uma concepção de educação para esse sujeito se emancipar é a politicidade da educação que Paulo Freire já explicitava desde a sua tese, mas que só adquire a feição que conhecemos hoje do seu pensamento, com a publicação de Pedagogia do oprimido. A autonomia da pedagogia do oprimido é não pensar a educação como um interesse “comum” de uma sociedade, o que constitui uma ideologia do poder.

A seguinte capa de uma das edições estrangeiras de Pedagogia do oprimido é perturbadora nem tanto pelo que traduz do seu conteúdo, mas pelo que diz do temor que causa naqueles que estão empenhados em manter a estrutura social fundamentalmente intocável. Para o poder, a educação nunca foi neutra e agora tampouco será vista como neutra pelas classes populares. Essa é a pedagogia da imagem. Não a doutrinação, que inexiste em Paulo Freire, mas a politicidade da educação, libertadora, o que provoca o grande ódio contra ele – e até os dias de hoje.


Referências

FREIRE, Paulo. Direitos humanos e educação libertadora: gestão democrática da educação pública na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 22ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 2ª ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

HADDAD, Sergio. O educador: Um perfil de Paulo Freire. São Paulo: Todavia, 2019.

KOHAN, Walter. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte, 2019.

MOTA NETO, João Colares; OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de (orgs). O legado de Paulo Freire para a educação na Amazônia. Curitica: CRV, 2019.





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