Paulo Freire entre imagens e memes

Texto que escrevi para orientar a minha apresentação em dois eventos:

Mesa redonda “Nativos Digitais e Educação: perspectivas e inovação”, no dia 7 de dezembro de 2019, durante o VIII Seminário Mídias e Educação, do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.

Mesa redonda “Paulo Freire e as Universidades do Rio de janeiro, no dia 10 de dezembro de 2019, durante a Jornada Paulo Freire e o Rio de Janeiro, na UERJ.

Já pensaram, a respeito das imagens de Paulo Freire, como elas também existem produzindo sentidos sobre a sua obra?




Diferentes imagens de Paulo Freire não são diferentes “Paulos Freires”? Cada uma delas não nos sugere uma existência única, criando vários Paulos Freires? Para prosseguir com esse jogo de imagens, vejam as próximas reproduções, que vou associar respectivamente às anteriores.




São imagens que nos ajudam a ver as anteriores porque com elas é possível adquirir alguns significados que servirão para nos orientar a respeito dos seus sentidos. Sartre, Jesus Cristo e Ramsés II são de tal forma representados que o nosso olhar é educado para reconhecer em outros personagens também características correspondentes, mesmo que espontaneamente, inconscientemente.

A eficácia dessa identificação depende da difusão das imagens que terminam exercendo um papel de modelo, é claro. Ou seja, reiteradamente apresentadas à nossa visão, através de diferentes mídias, são fixadas de algum modo à nossa leitura de mundo, para usarmos uma expressão freireana. Ao encontrarmos, não Sartre, mas outro intelectual, poderá existir, de todo modo, um olhar comparativo à imagem já fixada a partir do “Sartre intelectual”. Observem em Sartre e Paulo Freire, a estante de livros, os óculos, a roupa e o cachimbo/cigarro. Ao olhar para essa primeira imagem de Paulo Freire, o que atribuímos como sua identidade? O mesmo pode ser feito, com as demais imagens e suas associações. Paulo Freire e Jesus Cristo, Paulo Freire e um faraó. Quantos Paulos Freires não existem realmente aí?

O que chamamos de História Humana é também uma História das Imagens. Pessoas e imagens convivem desde sempre e não poderíamos falar de um ou outro sem compreendermos a própria relação que mantém.

O que eu gostaria de dizer é que Paulo Freire não existe apenas através das coisas que escreveu, dos livros que publicou. Paulo Freire existe também através das suas muitas imagens, que podem possuir uma identidade relativamente própria, contraditórias até.  Agora, chegamos aos memes.

Nosso tempo pode ser descrito como a época dos memes, não é? Se Eric Hobsbawn fosse vivo, talvez publicasse um último livro, após a Era dos Extremos, que se chamaria apropriadamente, a Era dos Memes


E o que são exatamente “memes”?

Em um livro publicado originalmente em 1976, O gene egoísta, o biólogo evolucionista Richard Dawkins chamou de memes as unidades replicadoras que transmitem alguma informação cultural.  Inicialmente, o que Dawkins considerou é que a evolução humana não é exclusivamente genética. Acontece através da cultura também e de forma análoga. Então, buscou um conceito correspondente ao que possui o gene para a biologia. Foi assim que chegou ao “meme”, a partir da palavra mimeme, que tem uma raiz grega.

O meme, portanto, na explicação de Dawkins é uma unidade de imitação cultural. Concretamente, o que significa? Ele mesmo dá alguns exemplos: melodias, ideias, modas ou tecnologias propagadas são memes. Se você assobia uma melodia que já conhece, o que ocorreu foi a difusão de um meme na abordagem de Dawkins. Uma moda compartilhada, a mesma coisa. Como vimos, o meme, refere-se, em Dawkins, a uma propriedade elementar da cultura. Contudo, o que agora chamamos de meme parece ter um significado mais exclusivo, ligado ao mundo da internet e, notavelmente, das redes sociais.

A experiência virtual com a qual compartilhamos os nossos memes, geralmente uma mensagem visual que combina imagem e texto com algum sentido cômico, tornou-se uma prática comum da vida cotidiana. Alguém abre o celular sem receber e compartilhar memes diariamente? Meu pai não faz isso, mas ele tem 90 anos. Mas meus filhos, de 20 e 11 anos fazem, naturalmente. O meme é uma técnica de comunicação ordinária e comum.

Nossa ligação com os memes, que são de conteúdos os mais diversos, está atravessada pela nossa leitura de mundo. Quando nos deparamos com a gigantesca fruição de memes na internet, vamos nos deter principalmente em alguns cujos temas são mais significativos para nós. Vamos compartilhar também, de acordo com o que acreditamos que transportam conforme as nossas orientações sociais. É aqui que chegamos novamente às imagens de Paulo Freire. Ele vive também nos memes. O que observamos inclusive, é a existência de uma disputa de narrativas sobre Paulo Freire através dos memes.






Desde 1963 Paulo Freire é acusado de querer “comunizar” o país através da educação. Com as suas campanhas de alfabetização, havia o temor que o educando em contato com o Método Paulo Freire pudesse participar de mobilizações políticas indesejadas. Por isso foi preso por 70 dias após o golpe civil-militar de 1964 e para evitar outra prisão, com consequências piores, optou pelo exílio. No entanto, mesmo após o seu retorno, em 1980, Paulo Freire nunca deixou de ser hostilizado por grupos mais reacionários.


Em março de 2015, em uma manifestação pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, uma faixa contra Paulo Freire transformou-se em uma imagem que viralizou através das redes sociais. Pessoalmente, fiquei indignado com a campanha, completamente desinformada à luz da história da educação brasileira e a respeito da própria obra de Paulo Freire. No entanto, o objetivo não foi a crítica esclarecida, mas apenas o ataque odioso para atingir a pessoa de Paulo Freire e o seu legado.

São inúmeros hoje os inimigos declarados de Paulo Freire. Atacam-no, por exemplo, o Movimento Escola Sem Partido, o ministro da educação e o próprio presidente. 

O destino de Paulo Freire na educação brasileira também está sendo disputado na arena das redes sociais e esse é um assunto que deveria nos interessar como educadores. Na forte polarização que hoje a imagem de Paulo Freire mobiliza, importante problematizar o lugar das imagens e dos memes nessa luta. Como nos situar aí? Gostaria de propor pelo menos três passos como atenção.

Primeiro passo. Admitir que o que acontece como guerra cultural na internet não é sem importância política ou apenas residual. A internet possui espaços formativos e isso não deveria ser negligenciado. Existe uma premência na internet que precisamos acompanhar com maior curiosidade e pesquisa. Diversos personagens atuam educando o nosso olhar para uma leitura de mundo correspondente às suas concepções de sociedade e política, portanto.

Segundo passo. Leve mais a sério um meme. Você pode rir de um meme, mas ele não está apenas brincando com você, de forma espontânea e autônoma. Meme é, antes de tudo, uma prática de comunicação. Transporta valores e visões de mundo. Precisamos nos deter mais a respeito do que replicam e propagam. O que existe de engraçado ou infame em um meme nos atinge instantaneamente através das mídias e tecnologias agora disponíveis. Sabe o que significa? A intensidade da atmosfera política nas redes sociais destina o meme direto para o nosso lado mais emocional, uma passagem nem sempre filtrada de forma razoável pela razão. Necessário pensar mais nos memes e não apenas ter uma abordagem compulsiva em relação a sua fruição. O meme é cego e egoísta, mas nós não. Não deveríamos, pelo menos.

Terceiro passo. Um meme pode cumprir um papel importante na divulgação da obra de Paulo Freire, oposto ao movimento de degradação do seu legado. Enfim, um meme pode ser muito legal. Não teriam tanto sucesso se fossem apenas uma forma pouco ou nada refletida de comunicação. Naturalmente, isso não existe. Os memes podem nos ajudar também, é verdade. Paulo Freire chamou as “fichas de cultura” de ajudas visuais. Os memes também são ajudas visuais, mais contemporâneas que os desenhos do artista Francisco Brennand, se quiserem. No entanto, ler Paulo Freire é insubstituível. Na graduação e na pós-graduação, tenho feito isso, organizado cursos para ler Paulo Freire e conhecer a sua obra.

Entre imagens e memes, Paulo Freire são muitos. Reduzir sua vida a uma existência unificada é perda de tempo, impossível. O que nos compete é conversar com a sua existência diversa, isso é possível.

REFERÊNCIAS
BERINO, Aristóteles; CARDOSO, Marcélia Amorim. Da fotografia ao meme, Paulo Freire através das suas imagens na internet. Revista Periferia, Caxias, v. 9, n. 2, p. 234-256, jul-dez, 2017.
BERINO, Aristóteles; HERDADE, Lívia; CARDOSO, Marcélia Amorim; RODRIGUES, Vanessa. As aventuras de Paulo Freire contra o meme egoísta: A luta de classes nas redes sociais. Revista Periferia, Caxias. v. 11, n. 2, p. 178-202, maio-ago, 2019.
DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

  







Comentários

  1. Agradeço a contribuição à obra do grande educador assim como à sua memória. Além, claro, do texto muito bacana e gostoso de ser lido.

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  2. Obrigada, pelo texto, esclarecedor.

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