Esse vírus está discriminando a humanidade



Em O amanhã não está à venda, Ailton Krenak conta-nos que alguns engenheiros pediram a sua opinião sobre o uso de tecnologia para recuperar o Rio Doce, que fica na região que foi afetada pelo rompimento de uma barragem de rejeitos, operada pela mineradora Samarco, na cidade de Mariana/MG, em 2015. Em resposta, ele propôs parar todas as atividades humanas que recaem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros das duas margens, até que o rio voltasse a ter vida. Um dos engenheiros respondeu que isso seria impossível. À negativa desta interrupção, e outras, no entanto, a pandemia respondeu com a suspensão das nossas vidas. “O mundo não pode parar. E o mundo parou”, diz Ailton Krenak.

O amanhã não está à venda é um breve texto editado a partir de entrevistas que Ailton Krenak concedeu desde março de 2020, quando a pandemia do coronavírus chegou ao Brasil. Publicação que é a nossa conversa agora, e sexto artigo que escrevo para a série Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia.



Mas antes eu preciso fazer uma recordação. Trata-se uma lembrança nublada pelo tempo, mas suficientemente marcante para nunca ter me esquecido. No ano de 1987, uma cena me chamou atenção na TV. Vejo um indígena, deputado constituinte, na tribuna da Câmara, fazendo um discurso bastante comovente. Enquanto apresentava o seu discurso em defesa dos povos indígenas, pintava o rosto com uma tinta preta. Vi o gesto de Ailton Krenak como uma manifestação reclamando atenção para a sua causa, e o fez de tal modo que hoje, eu diria, foi uma performance. Ailton Krenak fez de um ato político uma manifestação artística também. Acredito que tal acontecimento passou a fazer parte da minha formação política e estética.

Ailton Krenak, uma destacada liderança indígena e um reconhecido ambientalista, é agora também um dos intelectuais mais lembrados diante da situação da pandemia. Ele está isolado na sua aldeia, uma reserva indígena, no médio Rio Doce. Em 2019 publicou um pequeno livro que rapidamente ficou conhecido, Ideias para adiar o fim do mundo. Uma vez que estamos experimentando, desde os primeiros meses de 2020, senão o “fim do mundo”, pelo menos a sua repentina interrupção, a voz de Ailton Krenak é uma interlocução bastante singular. Ele tem uma abordagem sobre a pandemia que é feita ao avesso da vida que seguíamos até sofrer um recesso, que no limite, poderá significar, para muitos, falta de ar para viver.

O amanhã não está à venda é uma advertência que parte de alguém que possuí uma alteridade que não é a nossa, nós que pertencemos à “humanidade”. Pode parecer estranho, quando as inclusões parecem constituir o objetivo mais elevado da espécie, uma humanidade comum, que todos parecem abraçar sem distinção, como pretender falar do lado de fora da humanidade? Como indígena, no entanto, Ailton Krenak fala-nos exatamente do lugar de quem não foi aceito no clube seleto da humanidade, como ele mesmo observa. Então, o seu ponto de vista é privilegiado para nos fazer ver também que se o vírus está nos fazendo mal em especial, parece existir algo errado, endereçada a nós especificamente, que nos denominamos “humanos”.

“Esse vírus está discriminando a humanidade”, afirma Ailton Krenak. A ideia de que o dano causado pelo coronavírus não é aleatório é um ponto de vista importante do texto. Primeiro, precisamos sair de uma pretensão de constituirmos uma existência exclusiva, separada do próprio planeta. É aí que entram os “humanos”, como um problema. A narrativa da humanidade serviu a uma presença predatória no planeta, de consumo das condições da nossa própria existência. Uma política de devastação da Terra que se ampara também na produção das desigualdades entre populações e sociedades. Ser humano, contra a imagem benevolente do que supostamente significaria, concretamente faz parte de toda sorte de exclusões.

Quando dizemos “humanos”, não estamos falando apenas de uma palavra, mas de uma concepção dominadora de existir. “Ser humano” é de uma distinção que, longe de garantir uma existência comum, parece-nos agora bastante insegura, mas não exatamente do mesmo modo para todos, é certo. Parece não existir vantagem na “humanidade” como uma existência genérica, quando pensamos nas diferenças sociais, raciais, de gênero e sexualidade produzidas entre os próprios humanos e na interferência dos ecossistemas, com todas as espécies e o que existe como suporte da vida no planeta. Os resultados da in|diferença humana já estavam expostos, mas agora é o vírus que nos interpela, pelo lado de fora da humanidade também.

Humanidade opera como um ato supremacista que separa populações e a nossa existência do planeta. Dois processos interligados, mas que comumente separamos em razão do positivismo que orienta nossa visão do mundo, analiticamente separatista da nossa condição existencial. Nossa existência é precedida pela existência da Terra. Ignorar esse outro organismo, como se fossemos uma espécie autossuficiente, sem nascimento e morte, é o que nos trouxe até a pandemia da Covid-19 e nos levará até outras, já anunciadas. A ameaça do coronavírus   decorre da asfixia que promovemos no planeta, um processo de apropriação dos espaços, sem a observação da diversidade das espécies e ecologia.

Como marxista, o vírus também me preocupa. Pode parecer um assunto nada ou pouco relacionado à economia política. No entanto, penso que é de interesse social no sentido materialista também, desde que a concepção de sociedade e mundo não exclua o planeta da análise do processo de acumulação e do significado do que é a globalização. A Terra não é algo que deveríamos perder de vista quando pensamos em luta de classes, por exemplo. Um programa de emancipação social precisa contextualizar a ideia de uma sociedade liberta da opressão capitalista sem ignorar como as populações vivem no território desigual das cidades e como as cidades se apropriam do planeta.

A concepção da Terra como um espaço sem identidade, que pode ser usufruído vertiginosa e desenfreadamente pela acumulação capitalista deprime o mundo do trabalho ao ponto da tirania e asfixia urbana. A cidade contra a Terra e a Terra contra a cidade, movimento pendular de ameaça às formas de vida, inclusive a nossa. Voltando ao Ailton Krenak, ele dirá: a Terra, “ela está simplesmente pedindo: ‘Silêncio’ “. O vírus nos recolheu para que entrássemos no modo “silêncio”. Precisamos repensar nossas pegadas no planeta, rever a nossa correria. “Temos de parar de vender o amanhã”. Necessário recuperar a velocidade do tempo, saltar fora da normalidade que tínhamos. É hora de pensar, o recolhimento serve para isso.

Para aqueles que são educadores, há uma passagem muito delicada do texto: “É hora de contar histórias às nossas crianças, de explicar a elas que não devem ter medo”. Mais adiante: “Temos de ter cuidado e coragem”. “Contar histórias às nossas crianças” tem um sentido pedagógico, de explicar o que é preciso para subsistir agora, dizer quem somos no planeta e o que é a Terra para a nossa vida. Uma narrativa não antropocêntrica, outra educação em acordo com a nossa sobrevivência – apegada ao planeta e não de separação, como a modernidade tem nos educado. Não existe condescendência, mas tampouco desesperança em Ailton Krenak. Não são notícias sobre o apocalipse. Ainda não, por enquanto. Se houver cuidado e coragem.

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Ailton Krenak
O amanhã não está à venda
São Paulo
Companhia das Letras
2020
E-Book

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Para o projeto Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia, a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19 abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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