Facilitador/a ou coordenador/a de debates: Qual o lugar do/a professor/a durante a pandemia da Covid-19?


Na imagem, o Círculo de Cultura na ilustração que Francisco Brennand fez para as fichas de cultura do Método Paulo Freire.

Enquanto seguimos com números elevados de contágio e óbitos, agora, nos primeiros dias de setembro, o retorno às aulas presenciais ainda está em suspensão, em praticamente todo o país. Com resultados desiguais, o chamado ensino remoto foi introduzido em diferentes graus de ensino e realidades educacionais. Entre as universidades públicas, a maioria optou por discutir em que condições poderia ser utilizado. Muitas vozes se opuseram à sua adoção. Na minha universidade, a UFRRJ, vamos seguir com o Ensino Continuado Emergencial. A discussão permanece. Aula on-line é aula? Ensino remoto é educação? Educação on-line é EaD piorada? Existe ensino remoto em um sentido válido? 

O ensino remoto em todo país é uma realidade diversa. As grandes redes públicas são as mais vulneráveis em condições para realizá-lo e impossível até em muitos casos. Mas empresas que trabalham com comunicação e serviços digitais encontraram na pandemia uma oportunidade para expansão dos seus negócios. Educadores/as preocupados/as com a captura da educação pública através das corporações que vendem soluções (mais problemas do que soluções), perguntam-se o que fazer. O debate envolve muitos aspectos e situações. Pretendo me deter aqui a uma questão específica: Qual o lugar do/a professor/a na pandemia? Para desenvolver a questão, vou apresentar duas visões opostas: o/a professor/a como facilitador/a e como coordenador/a de debates. 

O que faz o/a professor/a na educação remota? Seu trabalho é educacional em um sentido válido, isto é, é transformador ou apenas alinhado ao sentido mais conservador da prática educacional? É possível fazer educação remota crítica – uma “educação como prática da liberdade”, como diria Paulo Freire? Trata-se de uma resposta condicional, é claro. Depende das condições e situações verificadas de professores/as, alunos/as e as políticas adotadas. Conclusões sumárias estão comprometendo a nossa análise. Antes, é preciso construir um entendimento sobre a concepção de ensino que orienta o nosso ponto de vista. Ser radical é ir à raiz do problema, discutindo de modo estruturado e coerente, sem fanatismo. 

As tecnologias do digital propiciaram novas práticas de comunicação e formação (de alienação e deformação também, se quiserem). A mercantilização faz parte dessas experiências, ainda que se transforme em um território de disputas e reexistências, inclusive. O fato é que estamos falando de criações que fazem parte da economia política neoliberal e das lutas que provoca. O digital é a velocidade requerida pelos negócios globais, em primeiro lugar. Toda atividade humana pertinente à vida social será enlaçada pelas tecnologias do digital e dirigida ou acompanhada largamente pelos interesses econômicos que se expandem através da rede eletrônica do capital. A escola e a educação não escaparam da ideologia e práticas do neoliberalismo. 

O que chamamos de “ensino remoto” (que difere da EaD por correspondência ou através das mídias massivas como a TV ou o rádio antigos, diga-se de passagem), se realiza através de modelos de comunicação e sistemas de objeto que impactam nossa vida cotidiana, material e subjetivamente. Há um significado humano que não escapa às relações de poder. A vida digital é altamente suscetível de controles intensivos e a sua propagação requer a colaboração das pessoas. Ou seja, que elas trabalhem, voluntariamente, coagidas ou constrangidas, para os modelos de negócios que hoje organizam o capitalismo e desorganizam o mundo do trabalho. No caso da educação, é preciso garantir que ela funcione assim, para o capital. 

No material publicitário da Plataforma Eleva, a propósito de um evento, “festival on-line sobre educação Pós-Covid”, há uma narrativa sobre a pandemia para adequar o ensino a um modelo absolutamente operacional para uma educação servil, obediente ao capital e à sua modelagem atual. A narrativa é simplória. A pandemia está aí, transformando o mundo e exigindo uma nova educação. “A nova conjuntura aponta para um novo perfil de aluno, protagonista do seu aprendizado, autônomo e questionador, enquanto professores assuem a função de facilitador dessa trajetória”. Negar ao/à aluno/a o papel de protagonista no aprendizado seria negar a própria educação moderna, escolanovista. A questão é: O/a professor/a, é um/a facilitador/a? 

Para parecer legítimo, o evento convida pessoas que traduzem confiabilidade, como expositores, Djamila Ribeiro e Mia Couto. Mas também terá como palestrante João Paulo Lemann. Djamila e Mia Couto atuam, mesmo que de modo inadvertido, como um passaporte de legitimidade para a abordagem empresarial de Lemann. O conteúdo anuncia uma educação à altura dos desafios da pandemia: “educação pós-Covid”, “transformações do ecossistema educacional, “Nova E-ducação”, “educação digital” e “a escola é um ambiente que conecta”. Retórica barata, na verdade. O sentido é se aproveitar da desorientação da educação causada pela pandemia para passar a boiada do Capitalismo de Plataforma

Para a nova conformidade de uma sociedade de precarização do trabalho e ainda indiferente à sorte da educação da maioria popular, enquanto sequer sabemos com segurança o destino da própria pandemia, para os negócios do digital na educação, o melhor para a sua economia política é um/a educador/a “facilitador/a”, isto é, alguém que tem o papel de intérprete do seu tempo e desafiador da conscientização dos/das educandos/das trocado pela passividade de uma medição banal, intelectualmente sem importância. Basta ler o que se diz sobre o/a professor/a como facilitador/a. É exatamente isso que se deseja, um/a educador/a incapacitado politicamente.  O mercado agora é próprio ensino. 

Considero outra visão para o magistério agora. Existe um legado do Paulo Freire que muito nos interessa, como já escrevi em outros dois artigos da série Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia: Para ser um ser no mundo e Educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de três conceitos de Paulo Freire. No lugar de um/a descaracterizado/a professor/a facilitador/a, muito contemporânea ainda a concepção de um/a coordenador/a de debates. O que é? Paulo Freire foi um crítico duro da educação brasileira, conservadora e silenciadora. Quando escreveu Educação como prática da liberdade (1967), depois das campanhas de alfabetização que participou (e já no exílio, após o golpe de 1964), diz Paulo Freire (1994, p. 111)

 

[...] Em lugar do professor, com tradições fortemente “doadoras”, o Coordenador de Debates. Em lugar de aula discursiva, o diálogo. Em lugar do aluno, com tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar dos “pontos” e dos programas alienados, programação compacta, “reduzida” e “codificada” em unidades de aprendizado. 

Curiosamente, a passagem citada é uma nota de rodapé no livro. No entanto, uma importante caracterização a propósito chamado Método Paulo Freire. O fragmento é antecedido ainda pela observação de que, em lugar da escola, o Círculo de Cultura. Muito atual, por isso também Paulo Freire ainda é tão perseguido, apesar da sua partida fazer mais de vinte anos. Paulo Freire não tinha uma visão favorável das práticas vigentes na escola brasileira, mas não propunha outra coisa que pudesse extrair o sentido político da educação, excluindo o/a professor/a da pedagogia. Ele propõe outra forma de participação e ela ainda é pertinente. Aula, em um sentido válido, é debate, Círculo de Cultura. Debate sobre a nossa presença no mundo e não aderência ao poder. 

O que nos contraria é a educação tradicional, doadora e de professores/as que apenas lecionavam os conteúdos fixados à revelia das situações existências dos/das alunos/as. Sim, outro/a professor/a, mas dinâmico com a realidade antagônica às autênticas demandas populares. Professor ou Coordenador de Debates, não é exatamente o nome que importa, mas o que quer dizer contra as práticas de supressão de ambos os personagens do ensino, educadores/as e educandos/as. O que nos desafia agora, entendido o “papel” do/a professor/a, é concluir sobre as nossas possibilidades diante da avalanche do Capitalismo de Plataforma. É possível o ensino, ainda assim? Continuo em uma próxima publicação. 

Uma nota final. Curiosamente, como grifei, na redação do material divulgado pela Eleva – Plataforma de Ensino, o texto diz que os “professores assuem a função de facilitador”. Assumir ou assuar? Ato falho? Assuar é vaiar, amotinar, uma demonstração de descontentamento. Acho que o caso, assuar a proposta de um/a professor/a facilitador/a. O inconsciente sabe das coisas. 

REFERÊNCIA 

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 

Para o projeto Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia, a ideia é escrever uma série de pequenos artigos os durante a pandemia da Covid-19 abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.


PUBLICAÇÕES ANTERIORES 

Esse vírus está discriminando a humanidade 

Educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de trêsconceitos de Paulo Freire 

Para ser um ser no mundo 

Excesso de positividade 

Em louvor da sombra 

Qual o vírus mental do ministro Weintraub? Como se proteger dele?



Comentários

  1. Que texto inspirador! Muito bom ter a oportunidade dessa leitura. Acabei de descobrir o blog e estou adorando!

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