Milton Ribeiro, novo ministro da guerra cultural bolsonarista

 


Após a saída de Abraham Weintraub e a fracassada nomeação de Carlos Alberto Decotelli da Silva, Milton Ribeiro foi anunciado, no dia 10 de julho, como o novo ministro da educação. Logo depois contraiu Covid-19 e quando já parecia esquecido, Milton Ribeiro concedeu uma entrevista publicada no dia 24 de setembro no jornal O Estado de S. Paulo, que repercutiu amplamente e marca propriamente o início do seu desempenho público no governo Bolsonaro. Milton Ribeiro é pastor presbiteriano, doutor em Educação e ex-vice-reitor da Universidade Mackenzie. Pode agora juntar à sua biografia a identidade de integrante da ala mais ideológica do governo que serve.

O que é pertencer a ala ideológica do governo Bolsonaro? Todas as adesões são ideológicas, certamente. No entanto, existem algumas presenças no governo que parecem mais representativas sobre o significado populista de direita de Bolsonaro, mais ativos nas guerras culturais que hoje mobilizam a vida política em tantos países, inclusive no Brasil. Nas guerras culturais, identidade, comportamento e valores são objeto de uma intensa campanha de polarização e centralidade narrativa no discurso e na performance política. O antecessor Weintraub, mas também Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, e Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, são também “ministros das guerras culturais”.

Do ponto de vista da apreciação estritamente pedagógica, a entrevista do ministro Milton Ribeiro foi desprezível. Intelectualmente insignificante. Inclusive, uma característica das guerras culturais, em todo o mundo, é que seus mobilizadores são aparentemente indigentes mentais e expressivamente idiotas como pessoas públicas. São figuras grotescas que instantaneamente provocam repulsa entre seus adversários, mas repercutem de modo favorável e intenso também os entre seus partidários. O populismo de direita é agora um fenômeno notadamente das redes sociais, de imediata ressonância que nos mantém em estado de transe diário. Permanecemos o dia todo ligados nos pronunciamentos que fazem.

Em artigo anterior, sobre Abraham Weintraub, destaquei exatamente como as suas declarações provocavam desprezo, caracteristicamente repulsivas que eram. Observei também como se constituíam de acordo com o que nomeamos de pós-verdade, uma prática comum dos populistas de direita, como Trump, por exemplo. Não são manifestações exatamente polêmicas, mas, sobretudo, sem correlação com fatos verificáveis ou sem razoabilidade discursiva. Mas o que disse Milton Ribeiro que provocou o mesmo tipo de aversão que causava Abraham Weintraub? Inicialmente, a breve entrevista expôs ao ministro a crítica de Estados e municípios com a ausência de orientação nacional sobre como agir na educação durante a pandemia da Covid-19. Como reagiu Milton Ribeiro?

O que se viu foi um ministro da educação indiferente, ignorante e homofóbico. O avesso do que civilizadamente deveria caracterizar o seu posto. Imagine alguém que fez um curso de quatro anos de Pedagogia, estudando com rigor e responsabilidade social. Milton Ribeiro, em poucos minutos, disse tudo ao contrário. “Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil. Não tem como, vai fazer o quê? É a iniciativa de cada um, de cada escola. Não foi um problema criado por nós. A sociedade brasileira é desigual e não é agora que a gente, por meio do MEC, que vamos deixar todos iguais”. É de cair o c. da b., como se diz no popular. A pessoa lê o que o ministro da educação disse e perde o chão, em uma linguagem mais controlada.

A passagem que destaquei foi um fragmento de resposta provocada pela pergunta do jornal. Mais adiante, quando a pergunta foi sobre a BNCC – Base Nacional Comum Curricular, espontaneamente o ministro conduziu para a “ideologia de gênero”, como igrejas e políticos conservadores chamam a discussão sobre educação e sexualidade: “O Enem tem sido balizador de conteúdos que a gente requer, porque senão começa a falar lá de ideologia, sabe tudo sobre sexo, como colocar camisinha, tirar uma camisinha, sabe tudo”. E prossegue: “Existem temas que podem ser tocados para evitar que uma criança seja molestada. Mas não o outro lado que é uma erotização das crianças”.

Mais ainda: “É importante falar sobre como prevenir gravidez, mas não incentivar discussão de gênero. Quando o menino tiver 17, 18 anos, ele vai ter condições de optar. E não é normal. A biologia diz que não é normal a questão de gênero”. Não terminou: “Acho que o adolescente que muitas vezes andar no caminho do homossexualismo tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas”. Ainda deu tempo de falar do Paulo Freire, sobre a leitura que fez do livro Pedagogia do oprimido: “Eu desafio um professor e um acadêmico que venha explicar onde ele quer chegar com as metáforas, com os valores. Ele transplanta valores do marxismo e tenta incluir dentro do ensino e da pedagogia”.

Existem outras coisas que foram ditas na entrevista que merecem a nossa atenção, mas vou ficar por aqui para expor o que gostaria. Como os demais integrantes do núcleo duro do bolsonarismo, cada pronunciamento público é repleto de instantes que causam perplexidade e repugnância. As reações indignadas com a fala do ministro foram imediatas. No mesmo dia o senador Fabiano Contarato (REDE-ES) afirmou que entraria com uma representação no STF para que Milton Ribeiro fosse investigado por homofobia. Que ninguém imagine que o ministro derrapou e terminou por revelar o que deveria permanecer como uma opinião reprimida, sem vir à luz e que só teria acontecido por uma imprudência. De modo algum, é tudo discursivamente calculado.

Para uma oposição eficaz ao populismo de direita, precisamos compreender como operam politicamente com a linguagem. As inúmeras frases e o raciocínio indecoroso que nos chocam quando ditas por um ministro, ainda mais da Educação, causam o que pretendem: um efeito de confusão em quem ouve, de incredulidade e muitas vezes de reação também grosseira porque escapa da moderação intelectual, que sempre administramos, mas que torna-se emocional, em condições especiais, quando confrontada por um excesso de irracionalidade. É resultado esperado no mundo frenético da comunicação no meio digital e particularmente excitado das redes sociais. A propaganda do populismo de direita se faz através do derrame emocional.

Mas Milton Ribeiro não tem o objetivo de contestar com rigor acadêmico Paulo Freire. O que ele fala tem o objetivo apenas de se juntar a uma rede de ataques desarrazoados e ofensivos que são dirigidos a Paulo Freire, mas que surtem o efeito pretendido:  manter tensa uma linha divisória entre concepções da educação brasileira. O método é uma pregação doutrinária e reacionária, que adquire nitidez pública exatamente quando alcança adesões e rejeições instantâneas através das redes sociais. O campo semântico da educação se transforma em um campo permanentemente minado em que só se move explosivamente e em estado de fadiga mental. A capacidade cognitiva entra em suspensão através do seu esgotamento.

Portanto, não é suficiente rebater Milton Ribeiro demonstrando apenas sua inadequação intelectual. Não é aí, no campo organizado das ideias, que ele luta e que as guerras culturais acontecem. O que devemos, antes de tudo, é desmontar seu mecanismo discursivo, ou seja, como ele luta com as palavras. Com certeza, lutar na sua própria língua será sempre desvantajoso porque um dos “achados” do populismo de direita é dizer o inominável, cruzar a fronteira da dignidade e negar a credulidade da correção. Se você faz igual, não se distingue mais e perde a superioridade dos princípios. Nas redes sociais agimos, alguns mais outros menos, de modo urgente e forçosamente pouco reflexivo quando somos particularmente afetados.

Reportagem publicada pela Revista Piauí, no seu site no dia 15 de outubro, mostrou, curiosamente, o pastor Milton Ribeiro, dez anos atrás, atuando publicamente de modo aparentemente não fundamentalista, quando esteve na Câmara dos Deputados, ao lado de Roseli Fischmann, que orientou sua tese na USP, e Daniel Sottomaior, criador da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, para posicionamento contrário a um acordo que o presidente Lula assinou com o Vaticano. Milton Ribeiro estava ali para se posicionar contra o ensino religioso nas escolas públicas. A reportagem sugere uma contradição entre sua então defesa da laicidade do Estado e agora, no governo Bolsonaro, a partir da repercussão da sua entrevista do dia 24 de setembro.

O que salta aos olhos como uma incoerência, deixa ver, contudo, uma fresta que se abre para enxergarmos outra coisa. A divergência entre os dois Milton Ribeiros não tem nada de esquizofrênica. O que se revela é como as guerras culturais operam no governo Bolsonaro, e que seus partidários não têm reações naturais ou irrefletidas, como muitas vezes é dito. “Bolsonaro precisa saber que não está mais em campanha!”. Na verdade, há uma performance estudada e ensaiada para a consecução do poder. No populismo de direita, cada palavra tem a atração que a tessitura do poder requer na era da comunicação através das redes sociais. Poderíamos dizer, o populismo de direita tem a sua própria estética do poder.

Em Imagens apesar de tudo, Didi-Hubermann (2020, p. 34) lembra uma observação de Hannah Arendt que contém, ainda hoje, algo para prestarmos atenção. Ela disse que os nazistas “sentiam-se profundamente persuadidos de que uma das melhores probabilidades de sucesso da sua iniciativa resultava do fato de que ninguém, no exterior do seu círculo, ser capaz de acreditar na sua realidade”. A realidade é difícil de ver muitas vezes porque ela é inacreditável – inominável. As matrizes fascistas do populismo de direita são identificáveis. Para isso, uma boa leitura de conferência é o livro O fascismo eterno, de Umberto Eco (2018, p. 43). No populismo de direita, o que nos atordoa e dificulta a criação de alternativas é o efeito de irrealidade que as guerras culturais promovem. Estamos sempre ameaçados de não aguentar em pé e perder também a cabeça.

*

Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia[1], a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

REFERÊNCIAS

ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.

DIDI-HUBERMANN, Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: ed. 34, 2020.

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[1] Mudei ligeiramente o nome do projeto, que antes havia nomeado como “Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia”.


Comentários

  1. Ótima sacação: "No populismo de direita, o que nos atordoa e dificulta a criação de alternativas é o efeito de irrealidade que as guerras culturais promovem". Realmente me sinto sempre embasbacado ao ouvir os absurdos. Mas como não reagir dessa forma? Estou louco pra saber!

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    1. Grande Mauro, obrigado pela leitura. Pois é, a disputa de narrativas da extrema-direita é tão ofensiva e trapaceira que agita o nosso emocional, levando-nos ao descontrole também, nas redes sociais, principalmente. Estamos tentando aprender a lidar com isso. rs. Eu acredito que a melhor abordagem é tentar desmontar o mecanismo desse tipo de discurso, decifrá-lo. Na hora, perdemos a calma, mas o esforço contínuo deveria ser entender como ele funciona para as "guerras culturais" e como tantas vezes caímos na sua armadilha. Precisamos recuperar a capacidade de explicar o mundo. Fazer a "leitura do mundo" como dizia Paulo Freire. Abraço.

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