Em tempos de distanciamento social, à procura de Paulo Freire



Para o projeto de escrita Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia, em três artigos precedentes procurei discutir como o legado de Paulo Freire poderia nos ajudar a pensar os rumos da educação brasileira desde a pandemia da Covid-19: Para ser um ser no mundo, Educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de três conceitos de Paulo Freire e Facilitador/a x coordenador/a de debates: Qual o lugar do/a professor/a durante pandemia da Covid-19. Prossigo agora com essa busca na obra de Paulo Freire apresentando[*] a abordagem que tenho adotado para me dedicar à totalidade da sua obra, organizando a minha leitura.

Uma pergunta preliminar: Ainda faz sentido ler Paulo Freire, diante de tantas críticas que recebe? Para responder, é necessário qualificar essas críticas, ou seja, distinguir aquelas que são críticas em um sentido válido e aquelas que são basicamente perseguição política e intelectual. Desde as manifestações pedindo o impeachment de Dilma Rousseff, em 2015, passando pela campanha de Bolsonaro e até agora, durante o segundo ano do seu mandato, Paulo Freire sofre uma campanha infame. Nas guerras culturais, Paulo Freire não é criticado a partir de um conhecimento sustentado da sua obra e das suas práticas como educador. O que assistimos é, na verdade, a tentativa de degradar sua importância, através da pós-verdade.

Nas guerras culturais, Paulo Freire não é exatamente cobrado pelo significado autêntico do seu trabalho, mas senão pela necessidade de descontruir Paulo Freire através da mobilização de valores os mais reacionários e práticas as mais autoritárias, em favor de uma visão do mundo extremista de direita, obsessiva ao ponto de não precisar corresponder à elaboração de conhecimento organizado e científico. Não é propriamente a partir do “conhecimento” como bolsonaristas enxergam, por exemplo, a pandemia da Covid-19 e publicamente defendem suas concepções sobre vírus e vacinação. Por mais inverídicas que sejam, é a mesma abordagem que fazem a respeito do Paulo Freire. São negacionistas de Paulo Freire também, por assim dizer.

Críticas acadêmicas à obra de Paulo Freire, inclusive politicamente orientandas e com valor reconhecido, também existem. Como qualquer outro autor, Paulo Freire deve ser lido, discutido e criticado. Trata-se de um trabalho de produção do conhecimento a respeito da educação imprescindível, ler de modo rigoroso Paulo Freire. Em Pedagogia da esperança, em 1992, Paulo Freire lembra muitas críticas dirigidas à sua obra mais importante, Pedagogia do oprimido, publicado em 1970. Ele conversa sobre algumas divergências suscitadas pelo livro, reafirmando o que julgou adequado, mas faz também alguma retificação. É o caso do machismo presente na sua escrita, que primeiro relutou em admitir, mas termina por admitir.

Seja como for, diante das falsificações da sua obra e do seu legado ou das críticas fundadas que recebeu, o que de melhor podemos realizar, como educadores e interessados nos desafios da educação brasileira, é ler Paulo Freire buscando formular, de modo legítimo, o significado histórico e a atualidade do seu pensamento, observando que trata-se inclusive de um interesse vivo. Novos sujeitos sociais fazem novas leituras e decidem outros usos de Paulo Freire, recriando sua relevância. Trata-se de obra volumosa, obra com muitos livros autorais e numerosos livros de conversas com outros autores, além de escritos dispersos e até desconhecidos, como cartas. Uma questão é, portanto, como entrar na obra de Paulo Freire?

Não acredito em solução canônica para estudar Paulo Freire. Não existe um modo absoluto para ler Paulo Freire e conhecê-lo “melhor”. Será sempre um trabalho de aproximação a partir de algum interesse específico e de acordo com os desafios encontrados. Como em qualquer autor importante. São obstáculos que nos deparamos quando estudamos Freud, Marx ou Gilberto Freyre. As dificuldades constituem um risco e um desafio que devem se atravessados na produção do conhecimento. O que vou apresentar é como tenho parcialmente organizado o meu trabalho de compreensão da obra de Paulo Freire. Longe de imaginar que se trata de um processo em linha reta, mas um percurso bastante imperfeito, na verdade.

Como tantos educadores, minhas leituras iniciais de Paulo Freire estavam concentradas nas obras Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia, publicado em 1996, afinal, o primeiro é o seu livro mais importante e o segundo possui as características de um pequeno manual, apresentando muitas das suas ideias, amadurecidas ao longo da tempo, praticamente como um testamento intelectual, já que sua morte ocorre no ano seguinte, em 1997. Contudo, diante de uma obra com muitas outras publicações de interesse, como considerar esses dois livros, tal como pudessem realmente significar algum norte para uma definição do que seja uma educação freireana e não apenas um conhecimento muito parcial do autor?

Pedagogia do oprimido foi publicado primeiro nos EUA, quando Paulo Freire estava no exílio. Por outro lado, Pedagogia da autonomia, é o seu último livro publicado em vida. São duas obras que pertencem a momentos diferentes do seu trabalho intelectual, apesar de uma superficial identidade que poderíamos inicialmente ver. Pedagogia do oprimido eu vejo como uma segunda fase, que eu chamaria de “Paulo Freire da maturidade”, enquanto Pedagogia da autonomia eu classificaria como o “último Paulo Freire”, uma terceira fase. Para formar uma leitura agora mais segura de Paulo Freire, tenho procurado me concentrar também no “primeiro Paulo Freire”, para compreender como inicialmente elaborou seu pensamento.

A primeira produção que pode ser considerada também a primeira obra de Paulo Freire é o livro Educação e atualidade brasileira, de 1959. Na verdade, é a sua tese para o Concurso da Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco. No mesmo ano, Paulo Freire fez uma “edição do autor” para sua publicação como livro. Atualmente o livro é uma edição do catálogo da editora Cortez. A tese é um ensaio sobre a educação brasileira, precisamente: Uma tese sobre o lugar da educação diante da sociedade brasileira em transição. É o “primeiro passo” da educação freireana: apresentar uma interpretação da sociedade brasileira e dizer sobre o papel da educação nela.

Como já expus antes, em Para ser um ser no mundo, Paulo Freire situava a problemática da educação observando sua importância para a presença no mundo. Em Educação e atualidade brasileira, há uma passagem que gostaria de destacar: “Se pode afirmar que o homem não vive autenticamente enquanto não se acha integrado com a sua realidade”. Tanto “ser no mundo” como “integrado com a sua realidade” constituem uma formulação sobre a existência. Qual seja, a vida humana é sempre factual a uma viva presença. Em Educação e atualidade brasileira, Paulo Freire trabalha com a hipótese de que a sociedade brasileira é uma realidade em transição e reserva para a educação uma posição decisiva.

Para o “primeiro Paulo Freire”, o processo de modernização do país expande suas possibilidades, até então imobilizado pelo passado arcaico da colonização e da escravidão, das práticas autoritárias e relações sociais opressoras. A modernização é um sopro para o desenvolvimento do país. No entanto, há um “peso morto” dado pelo referido passado, que é a inexperiência democrática da sociedade brasileira. A sociedade não pode se desenvolver sem o desempenho engajado do povo, “integrado com a sua realidade”. Paulo Freire trabalha com um modelo de graus de consciência para medir a situação. A modernização fez com que uma consciência intransitiva movesse para um grau de “transitivo ingênua”, mas daí em diante há um impasse.

O grau de consciência desejado para uma sociedade que se desenvolve expandindo suas capacidades é a “transitiva crítica”. É aqui que as pessoas estão “integradas” propriamente. Se não ocorre, acontece uma degeneração, é a “transitivo fanatizada”, decorrente da massificação da sociedade industrial. É aqui que entra a educação. É através dela que o passo para a “transitivo crítica” poderá ser dado, porque só ela poderia vencer a inexperiência democrática enraizada e superá-la. Observe-se como a primeira “educação freireana” tem um sentido emancipatório, mas apenas relativo, uma vez que a o motor social do desenvolvimentismo é a “integração”, o estar de acordo com o capitalismo avançado.

Em Educação como prática da liberdade, publicado em 1967, sua próxima obra, Paulo Freire retoma à discussão precedente, que realizou para a sua tese. Mas há quem considere, de fato, seu primeiro livro, já que o anterior foi originalmente uma “edição do autor” da tese. Não importa, o fato é que encontramos conteúdo inédito na nova publicação, ainda que sem ruptura decisiva com a linha mestra anterior. Educação como prática da liberdade foi escrito no seu exílio, no Chile, e possui também elementos da sua experiência nas campanhas de alfabetização no Brasil, no início dos anos de 1960, de grande repercussão. Será nomeado pelo presidente João Goulart para liderar uma campanha nacional, que não acontece por causa do golpe de 1964.

Em Educação como prática da liberdade a educação continua anunciada como prática de transformação, mas aqui já encontramos desenvolvido o chamado “Método Paulo Freire”, uma proposta organizada de alfabetização para orientar pedagógica e politicamente a conscientização esperada dos educandos. Portanto, não apenas saber ler e escrever, mas fazê-lo desperto para a condição de criador também da sua própria existência social e não uma criatura passiva da realidade encontrada. O “Sistema Paulo Freire”, como era mais conhecido, pretendia ser uma concepção e uma prática libertadora para o homem. Tal como em Educação e atualidade brasileira, a educação é uma ação transformadora política e social da existência.

A questão da mudança como ruptura e emancipação, vista como finalística da educação, atravessa toda a obra de Paulo Freire e confere a ela um sentido positivo de conflito que foi amplamente reconhecido como desejável para muitos atores políticos e movimentos sociais, em todo o mundo. No “primeiro Paulo Freire”, ainda que apareça de modo libertador, não é ainda uma visão transformadora no sentido de superação do capitalismo. Apenas mais tarde Paulo Freire irá se identificar com o socialismo. No entanto, já prega para a educação a assunção de uma visão de mundo em que a educação cumpre um papel de progresso político, social e econômico.

O modo como a questão da mudança é articulado por Paulo Freire ao logo da sua obra sofre inflexões, de acordo com os condicionantes de cada época e ainda da leitura que fez do seu tempo, das possibilidades e utopias possíveis. Compreender esse movimento, desde o início da sua produção teórica e práticas como educador, é o caminho que tenho percorrido para entender os sentidos da educação freireana e localizar de modo mais ancorado as muitas outras questões que encontro e que acredito ainda merecer atenção. Nas primeiras décadas do século XXI, século que Paulo Freire não conheceu, ele ainda vive através da nossa busca pelo seu pensamento e práxis.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

______. Educação e atualidade brasileira. 2ª ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.

______. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 51ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.   

______. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.   


*

 

Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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[*] Artigo que escrevi para uma conversa com professores e professoras do Colégio Pedro II, Unidade Tijuca II, no dia 11 de novembro de 2020.



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