Maria Firmina dos Reis


Retrato da escritora Maria Firmina dos Reis exposto na Câmara de Vereadores de Guimarães, no Maranhão, localidade para a qual se mudou quando tinha cinco anos. O registro fotográfico foi feito no local, em 2012, pela pesquisadora Régia Agostinho. Tempos depois, quando voltou à Câmara de Vereadores, Régia Agostinho não encontrou mais o quadro. Na verdade, descobriram que não era Maria Firmina dos Reis. Entre as muitas invisibilidades da escritora, nascida em São Luís, em 1822, está a da sua própria imagem. Primeira romancista negra do Brasil, Maria Firmina dos Reis, publicou, no ano de 1859, Úrsula, uma obra antiescravagista que caiu no esquecimento e só foi redescoberta no ano de 1962, quando o colecionador Horácio de Almeida encontrou um exemplar do livro em um sebo na cidade do Rio de Janeiro.




Na capa de Úrsula constava apenas, “Uma maranhense”. Horácio de Almeida pesquisou até encontrar como autora o nome de Maria Firmina dos Reis. Em 1975, mais de cem anos após a publicação original, a Imprensa do Governo do Maranhão editou uma versão facsimilar da obra. Atualmente, Úrsula possui diferentes edições, Maria Firmina dos Reis é estudada em universidades e é reconhecida como autora precursora na literatura feminina, especialmente lembrada pelo significado da sua escrita para as lutas de reconhecimento da história cultural e identidade negra na sociedade brasileira. Conheci a obra e autora apenas recentemente, mas logo observei sua importância para o meu trabalho como professor na universidade.

Lecionando na Baixada Fluminense, no curso de Pedagogia[1] e na Pós-Graduação em Educação[2] da UFRRJ, tenho procurado referências para o meu trabalho que correspondam às concepções emancipatórias que Paulo Freire desenvolveu com seu método de alfabetização, mas que podemos considerar também em muitas outras situações educativas. Em Educação como prática da liberdade, publicado em 1967, Paulo Freire observa sobre a escolha das palavras geradoras, destacando a importância de considerar o “sentido existencial” e o “conteúdo emocional” dos vocábulos escolhidos. O chamado Método Paulo Freire foi desenvolvido para campanhas de alfabetização dirigidas a diferentes regiões e populações, no começo da década de 1960, lembramos.

Já no século XXI, Paulo Freire poderá ser chamado ainda, mas diante de realidades e situações muito diversas e transformadas, se comparadas àquelas que ele experimentou à época da criação do seu Método. Inclusive, como secretário de Educação da cidade de São Paulo, entre os anos de 1989 e 1991, já possuía desafios que não eram idênticos àqueles das campanhas de alfabetização. Atuando no magistério superior na área de Educação, vejo que elementos que fazem parte do Método Paulo Freire, posso utilizá-los agora também. Na graduação tenho lecionado Currículo e adotei Maria Firmina dos Reis como leitura do curso. A teoria do Currículo lida com questões de poder que podem ser desenvolvidas em diálogo com Paulo Freire.

Já no final de fevereiro do ano de 2021, mês que iniciamos o período letivo na UFRRJ, leio que o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, Alexandre Ribeiro Pereira Lopes, foi demitido em decorrência de uma questão no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, que abordava a diferença salarial entre Marta e Neymar. “Não tem que ter comparação. O futebol feminino ainda não é uma realidade no Brasil”, disse o presidente Bolsonaro, que achou necessário comentar uma questão do ENEM.  Vigilância sobre “ideologia de gênero” que já havia sido prometida. Gênero é um dos temas de agitação política do presidente. Faz parte das “guerras culturais”.

A presença das pautas políticas de gênero e raça interpelam práticas de poder amplamente estabelecidas na sociedade brasileira e, assim, inquietam àqueles que se sentem ameaçados, questionados ou impedidos a propósito dos privilégios e garantias que contavam. As conquistas que essas lutas obtêm ampliam os espaços para aqueles que até então eram menos visíveis ou absolutamente invisíveis em tantos espaços da vida social. Como territórios disputados, ocorrem deslocamentos que as elites sentem e muitas vezes reclamam até de modo arbitrário e fascista, no limite. Mas mesmo entre as classes populares ou média baixa pode ocorrer também uma adesão ao discurso e à prática do opressor.

Um dos primeiros temas da Pedagogia do oprimido, obra publicada em 1970, é o problema da hospedagem do opressor no oprimido. A pedagogia do oprimido é uma prática da liberdade porque significa também uma ruptura com o opressor que abrigamos no nosso corpo. Maria Firmina dos Reis (2018, p. 47) inicia seu romance Úrsula vacilando sobre a própria importância da sua obra “porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados (...)”. Em uma sociedade que é Império, patriarcal e escravocrata, ela com mulher negra testemunha sobre o privilégio masculino e branco, especialmente entre os homens que tiveram acesso à educação e a uma formação socialmente valorizada pelo poder.

Mesmo assim, Maria Firmina dos Reis ousa escrever e publicar, disputando um território que era destinado aos homens, praticamente de forma exclusiva. Seu nome não aparece no frontispício da sua obra e mesmo a sua publicação permanecerá invisibilizada por um século. É, portanto, a contrapelo dos condicionamentos do seu tempo, que ela escreve um romance como “prática da liberdade” e faz uma “literatura do oprimido”, rompendo amarras. E não lhe escapava o significado pedagógico da sua publicação, que ela tinha consciência: “Quando menos, sirva de esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada (...)” (ibidem, p. 48).

Por “educação mais acurada”, podemos entender aqui uma educação que proporcione à mulher um modo de expressão mais próspero e, como consequência, uma presença mais garantida, de uma maior visibilidade no meio social. Portanto, a luta de Maria Firmina dos Reis também é pela educação como “prática da liberdade”. Importante destacar que entre as informações biográficas que existem sobre Maria Firmina dos Reis, sabemos que ela foi professora concursada, aprovada em 1847. Em 1880 criou ainda uma pioneira escola que admitia crianças de ambos os sexos e gratuita. Em Úrsula encontramos de modo convergente a questão da emancipação dos escravos, a autonomia feminina e a promoção da educação.

Entramos agora no enredo do livro e a solução estética encontrada por Maria Firmina dos Reis para elaborar o seu lugar de fala como mulher negra em uma sociedade patriarcal e escravocrata. Úrsula tem uma forma melodramática para narrar as desventuras de dois protagonistas e amantes, brancos, Tancredo e a própria Úrsula. Uma história de amor contada com elementos de um gênero já praticado. No entanto, o que existe de modo emergente na obra e atravessa o tempo até nos encontrar, cem anos mais tarde e até agora possui prevalência, é presença de dois personagens negros e escravizados, Túlio e Susana. É através destes dois personagens que Maria Firmina dos Reis singulariza sua escrita.

Túlio e Susana são dois personagens secundários, poderíamos dizer, coadjuvantes de uma trama com personagens mais importantes, mas que na verdade possuem as vozes mais marcantes porque são aquelas que comunicam ao leitor sobre suas existências, além do livro. As vozes de Túlio e Susana relatam sobre suas vidas, condicionadas pela violência da escravidão, mas que ainda hoje são vozes de quem está oprimido pela branquidade, pelo falocentrismo e o eurocentrismo, matrizes do poder na formação do mundo moderno, que subsiste na realidade da pós-colonialidade. Túlio dirige-se à Tancredo: “Único que soubeste compreender a amargura do escravo!” (ibidem, p, 66). Apesar da concessão ao personagem masculino protagonista no livro, é um testemunho do fato totalitário da escravidão.

Susana, uma senhora com idade mais avançada, possui uma memória da própria África e, assim, restitui os vínculos dos escravizados, que destituídos das suas histórias, através da lembrança podem tecer um novo caráter para suas presenças no mundo. Em uma conversa com Túlio, diz Susana: “Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudeste avaliar!...” (ibidem, p. 122). Em Úrsula encontramos, portanto, uma alteridade que a memória liberta às avessas do poder senhorial. O que Maria Firmina dos Reis transpõe para a ficção é uma realidade que ainda dura no tempo, uma liberdade pela qual ainda se luta.

Maria Firmina dos Reis ainda nos fala à realidade, através de Túlio e Susana. Dois personagens que inserimos assim, por uma aproximação histórica, no “sentido existencial” e “conteúdo emocional” que Paulo Freire vê como condição para uma educação como prática da liberdade. Na sociedade brasileira, em razão das recomposições que as elites sempre operam, os temas mais graves de uma época histórica atravessam o tempo. A redescoberta de um romance esquecido nos coloca diante do jogo do poder sobre as visibilidades e as invisibilidades.  Com a teoria e a prática do currículo, jogamos uma partida que é da partilha do sensível. Propriamente, o currículo como partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009).

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

______. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Maria Firmina dos Reis: invisibilidade e presença de uma romancista negra no Brasil do século XIX ao XXI. In: REIS, Maria Firmina. Úrsula. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2018. P. 7-51.

MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma pioneira: Maria Firmina dos Reis. In: DUARTE, Constância Lima; TOLENTINO, Luana; BARBOSA, Maria Lúcia; COELHO, Maria do Socorro Vieira. Maria Firmina dos Reis: Faces de uma precursora. Rio de Janeiro: Malê, 2018. p. 21-37.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2ª ed. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2009.

REIS, Maria Firmina. Úrsula. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2018.

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Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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[1] No Instituto Multidisciplinar, campus da UFRRJ na cidade de Nova Iguaçu.

[2] No Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos de Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ).

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