A pedagogia da autonomia e o desenvolvimento do protagonismo docente e discente

 


Começo por uma recordação escolar.[1] Entre os anos de 1993 e 2006 lecionei na rede pública municipal do Rio de Janeiro. No período, estive em várias escolas, a última delas no bairro de São Cristóvão. Não me lembro mais com precisão o ano quando me transferi para a escola, talvez em 2001. Existe, no entanto, entre as muitas histórias que poderia contar sobre aqueles anos, uma que é especialmente interessante, a propósito do Paulo Freire. Recentemente chegado à escola, eu me surpreendo com alguém lendo o livro Pedagogia da autonomia. Naquela época eu estava cursando o meu doutorado em Educação e já lecionava em algumas instituições privadas no curso de Pedagogia. Então, foi com muita curiosidade que me deparei com um leitor do Paulo Freire ali.

Logo descobri que se tratava do inspetor. Ele aproveitou algum momento mais calmo do cotidiano da escola para estudar. Era estudante de Pedagogia. Então, eu gostaria de usar essa minha recordação de professor do magistério básico para afirmar que o lugar do Paulo Freire é exatamente na escola pública. Não apenas, naturalmente. Quero apenas enfatizar que é aí, nas grandes redes públicas, municipais e estaduais, que o conhecimento da obra do Paulo Freire é tão importante porque mais decisivo para seus/suas professores/as e alunos/as. A escola pública é a escola frequentada pela maioria popular e nela, tantas famílias, crianças e jovens depositam suas esperanças por algo melhor para as suas vidas.

Pedagogia da autonomia foi publicado em 1996, um ano antes da partida de Paulo Freire. Foi seu último livro publicado em vida e pode ser lido como um pequeno manual para o ensino. O subtítulo é bastante indicativo disso: “Saberes necessários à prática educativa”. No livro encontramos, vamos dizer assim, uma série de códigos freireanos, sempre iniciados por “Ensinar...”. Entre eles, “Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo”. Para falar sobre a “pedagogia da autonomia”, é um bom início entender que, para Paulo Freire, a educação não é somente uma prática de transmissão de conteúdo, mas, sobretudo, uma ação de mudança no mundo.

Ainda que em Pedagogia da autonomia o verbo ensinar apareça inúmeras vezes, isso se aplica ao caráter de grande difusão pretendida pela obra. Inclusive, as primeiras edições eram versões de bolso e papel barato. No entanto, o estudo da obra mostra uma concepção de educação complexa quando observamos os pressupostos do ensino para Paulo Freire. Ou seja, não é o habitual ensinar-aprender instrumental das concepções tradicionais da educação. Uma leitura mais ligeira pode entender a série de “Ensinar...” que divide o livro em partes, como pura prescrição. Mas é na discussão das teses de Paulo Freire ali apresentadas que vamos ampliando o significado do “ensinar” que aparece na obra.

Logo no início da seção sobre “a educação como forma de intervenção no mundo”, Paulo Freire apresenta um importante elemento da sua antropologia da educação. A prática educativa é uma “experiência especificamente humana”, ele diz, para explicar sobre seu caráter de “intervenção no mundo”. Na Pedagogia do oprimido, Paulo Freire já havia desenvolvido a questão falando da diferença entre os homens e os outros animais. Todos os seres são inacabados, mas apenas os homens se sabem inacabados. Consciência que faz da educação um “quefazer permanente”, portanto, uma “intervenção no mundo”, sempre. Para dizer sobre o protagonismo docente e discente em Paulo Freire, fundamental entender o significado da educação para ele.

Paulo Freire atribuía um significado humano à educação, mas não de modo absolutamente indiferente à história das sociedades, é importante observar. Humano aparecia para ele como um processo, a humanização, que só acontece na vida social e politicamente desenvolvida. Trata-se de uma questão presente desde o início da obra de Paulo Freire. Nas obras Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da liberdade, publicadas respectivamente em 1959 e 1967, Paulo Freire problematizou sobre a educação diante do que chamou de “sociedade brasileira em transição”. É uma discussão que faz parte do “primeiro Paulo Freire” e é muito esclarecedora para a compreensão da importância social e política que reivindicava à educação.

Paulo Freire observou sobre a necessidade humana da integração com o seu tempo. Não apenas estar no mundo, mas com o mundo. É preciso reagir à sua época, conhecer os temas fundamentais do seu tempo e atuar sobre eles. No entanto, não existe uma consciência imediata a respeito dos problemas desafiadores de cada época. Nas sociedades modernas existe a massificação como névoa da consciência e domesticação dos homens. Os mitos e a publicidade organizada, identifica Paulo Freire, estão nos fundamentos da massificação. O homem aqui é um mero espectador do seu tempo, já que não consegue visualizar seus temas de modo apropriado.

Para Paulo Freire, já na publicação de Educação e atualidade brasileira, no final da década de 1950, notem bem, durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e ambiente cultural do debate desenvolvimentista na sociedade brasileira, o país encontrava-se “em transição”. Na obra de 1959, mas também em Educação como prática da liberdade, Paulo Freire refere-se ao país como uma “sociedade fechada” frente à história colonial e dependente, mas que experimentava mudanças em razão do processo de modernização – por isso uma “sociedade em transição”. No livro de 1967 (que já estava escrito em 1965), ele vai observar que o golpe civil-militar de 1964 significou novo fechamento para a sociedade brasileira. Desta análise que faz sobre a “sociedade brasileira em transição”, importante acompanhar como ele via o papel da educação.

A problemática da “sociedade em transição”, para Paulo Freire, está na consideração que ele fez a respeito da educação nesse processo. A sociedade em transição supõe um engajamento popular na sua passagem. Ocorre que a sociedade brasileira se caracterizava por uma “inexperiência democrática” e a participação popular não ocorria como necessária. Sem uma integração entre povo e o que emergia no país, a transição não poderia acontecer senão de modo deteriorado, prevalecendo formas de consciência fanatizada, como ele caracterizava. Portanto, é aí que entra a educação como ação para aquisição de uma consciência crítica compatível com um curso socialmente desenvolvido para o país em transição.

A educação é considerada por Paulo Freire, nas suas duas primeiras obras, como um ato político que permitia sincronizar, então, o tema da época para a sociedade brasileira com a atitude mental do povo. Para tal, ele realizou também uma crítica muito enfática sobre a educação que prevalecia e precisava ser mudada, exatamente para acompanhar o que requeria a sociedade brasileira em transição. Quase todo Educação como prática da liberdade recupera o debate que Paulo Freire havia feito em Educação e atualidade brasileira, mas principalmente com o acréscimo da sua observação sobre o golpe civil-militar de 1964, além de aquisições bibliográficas, como Os condenados da terra, de Frantz Fanon.

O quarto e último capítulo de Educação como prática da liberdade e o Apêndice, contudo, constituem um material novo e um acréscimo fundamental, que caracteriza o tempo transcorrido entre as duas obras. É nesta parte final do livro que Paulo Freire vai abordar sua trajetória nas campanhas de alfabetização já no início da década de 1960. Ele vai caracterizar, por exemplo, o “Método Paulo Freire” de alfabetização. Remeto a um texto anterior, Facilitador/a x coordenador/a de debates: Qual o lugar do/a professor/a durante pandemia da Covid-19? O que gostaria de reter aqui é a “revolução copernicana”, que constituía o Círculo de Cultura diante da sala de aula tradicional.

No Dicionário analógico da língua portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, reconhecemos que a concepção de autonomia se encontra associada às ideias de liberdade e de ausência de autoridade. Como se vê, não se trata de uma equação simples, resolver o que é “autonomia”. Parece bom e parece ruim, ao mesmo tempo, se pensarmos na vida das escolas. Uma maneira de lidar com a sensação vacilante que a palavra provoca é, no caso do seu uso por Paulo Freire, percorrer os caminhos que deram fundamento à sua visão pedagógica de autonomia. Foi o movimento que tentei realizar lembrando particularmente do Paulo Freire de Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da liberdade.

Nos Círculos de Cultura, a experiência do diálogo desloca as figuras fixas do educador e do educando, de quem ensina e de quem aprende. O educador é um “coordenador de debates” e o educando, um “participante do grupo”. Trata-se de um encontro para descobertas e aprendizagens mútuas. Um grupo que deve investigar os temas da sua época para uma consequente presença no mundo. Daí o sentido de uma “educação como prática da liberdade” e também de uma “pedagogia da autonomia”. A autonomia, portanto, em Paulo Freire, tem o sentido radical da liberdade, e a autoridade só pode existir aí como uma experiência compartilhada.

 REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Dicionário analógico da língua portuguesa: ideias afins/thesaurus. 2ª ed. atual. e revista. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 2ª ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

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Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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[1] Artigo que escrevi para participação em ação de formação para professores/as da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ)



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