Qual o currículo da pandemia?



A “Ciência dos Memes” explica muita coisa. Um dos melhores memes que traduz perfeitamente uma angústia dos/as professore/as nas aulas on-line é aquele em que Jesus pergunta: “Estão me ouvindo?” Trata-se de uma intervenção na conhecida imagem A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Na representação original, Jesus, no centro da imagem, está na companhia dos apóstolos, mas no meme ele está sozinho na parte inferior de uma tela e os apóstolos aparecem na parte superior, cada um em uma tela menor, tal como vemos nas reuniões on-line com vários participantes. Ou seja, diferente do encontro “presencial”, quando todos estão juntos proximamente, no meme todos aparecem reunidos também, mas “remotamente”.

Estão todos juntos através da comunicação digital, é verdade, mas há também um vazio suspeito, quando Jesus pergunta, “Estão me ouvindo?” É um episódio comum nas aulas on-line, quando não estamos certos se alguém realmente nos ouve. Eu mesmo já fiz essa pergunta várias vezes nos meus cursos, na graduação e na pós. A experiência do encontro virtual em que o ensino foi lançado desafiou nosso cotidiano de professores/as e uma das inseguranças que nos ocorre é se não estamos “sozinhos”, na verdade. A dúvida parece perguntar sobre o funcionamento de tudo, se estamos realmente conectados, mas é ainda bem mais do que isso. Na verdade, trata-se de uma pergunta que reclama sobre o deserto existencial da quarentena: “Alguém aí fora, no mundo?”.

Durante a pandemia, que ainda está longe de encontrar o seu fim, em maio de 2021, quando escrevo agora, a situação educacional do país, apesar de muito variável, para as chamadas grandes redes públicas, de um modo geral, é bastante ruim. A alternativa da educação on-line para responder à necessidade do distanciamento social foi bastante insatisfatória para tantos jovens e crianças. O fato de que está tudo muito mal para esses estudantes é absolutamente constrangedor para a educação brasileira. Em uma reportagem para o jornal El País, uma jovem estudante do ensino médio, diz sobre a sua situação: “Não estudo nada há um ano”. Stephany Rejani, de 20 anos, é moradora da Zona Leste de São Paulo. Ela simplesmente abandonou os estudos para cuidar das tarefas domésticas. 

O que mais me comoveu no depoimento de Stephany Rejani foi a declaração de que esperava um dia chegar à universidade e cursar Pedagogia, curso em que sou professor, na UFRRJ. Desejo difícil de alcançar diante das dificuldades com que se depara, inclusive como mulher e mãe, em uma sociedade patriarcal. Talvez ela mesmo pudesse perguntar: “Estão me ouvindo?” Como professor eu me sinto bastante impotente e sem nada poder fazer por uma jovem que gostaria de seguir estudando. Mas eu me pergunto também, a respeito das minhas alunas na universidade, “Será que estão conseguindo?”. No domingo, dia 2, recebi a notícia da morte de uma aluna que cursava uma das minhas disciplinas – Currículo – na graduação. Ela tinha sido intubada e não resistiu à Covid-19. 

Minha aluna estava ativa e estudando. Assistiu todas as aulas síncronas do meu curso e havia realizado também os trabalhos propostos. Foi desolador. No dia seguinte, uma segunda-feira, eu tomei a primeira dose da vacina. Não consegui dar a notícia nas minhas redes sociais sobre um momento pessoalmente tão esperançoso. Parecia constrangedor, depois da morte de uma aluna que não tinha sido imunizada ainda. Entre o domingo e a segunda-feira, minha angústia sobre o meu próprio trabalho como professor alcançou o ponto máximo. Eu me perguntava: “Será que me ouviram durante o período?”. Mas também: “O que eu deveria estar ensinando durante a pandemia?”. E por força da própria disciplina que ensino: “Qual o currículo da pandemia?”.

Quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, um ano atrás, em abril de 2020, sugeriu ao presidente, aproveitar o momento pandêmico para “passar a boiada”, ou seja, alterar regras de proteção ambiental , houve muita comoção. No entanto, o que ele propôs, ser veloz e tirar vantagem, aproveitando a situação de atordoamento em que muitos estão vivendo, é o que está acontecendo, onde for possível (ou impossível). O que assistimos, na vida acadêmica, por exemplo, foram muitas prorrogações. O tempo foi distendido para caber tudo ou mais ainda. Vivemos uma era de muitas adições ao tempo. Os algoritmos sevem para isso: acompanhar conteúdos que já não conseguimos acompanhar normalmente. À diferença de outras possibilidades de cálculo, nossa vida já é integralmente guiada pela vertigem dos resultados.

Quando a teoria do currículo surgiu, nas primeiras décadas do século XX, constituía um problema para o governo da população. Qual currículo para uma população que crescentemente ingressava à escolarização, integrava cada vez mais a dinâmica da sociedade industrial e habitava as cidades do mundo moderno? Eis um problema para o poder resolver. De outro modo, qual sujeito para qual sociedade? É o problema fundamental da teoria do currículo. Hoje me deparo com o problema do ensino durante a pandemia e me pergunto também, qual o currículo para um mundo em emergência epidemiológica? A erupção da pandemia não é um acontecimento que deveria chamar a nossa atenção para a necessidade de desacelerar o tempo?

O currículo que importa ao poder é o de não nos deixar parar para pensar, como sugeriu o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O que ele cometeu foi uma indiscrição, nada mais. Seu pensamento já é prevalecente. Sua inconveniência foi compartilhar a verdade para que todos pudessem ouvir, sem subterfúgios. A grita geral é apenas uma forma envergonhada ao precisar lidar com a nossa própria mentalidade agora. A possessão capitalista do planeta é simultaneamente o controle da subjetividade humana e não há como parar verdadeiramente a degradação ambiental sem cessar a degradação da nossa própria existência também, entregue à velocidade da acumulação capitalista. Não há sustentabilidade alguma, ambiental ou educacional, enquanto toda subjetividade for uma correspondência cognitiva do mundo burguês.  

Em Educação como prática da liberdade, publicado em 1967, Paulo Freire fala-nos (1994, p. 51) sobre os “temas fundamentais” do nosso tempo – de cada época histórica. Ele diz: “As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma ‘elite’ que as interpreta e lhes entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida.” Paulo Freire elabora aí uma discussão sobre a “sociedade brasileira em transição” e a consequente gravidade do tempo, à sua época, para o país. Ele retoma uma discussão que já havia feito em Educação e atualidade brasileira, de 1959. Para ele, o processo de modernização da sociedade brasileira colocava o país diante da necessidade de uma integração do povo à sociedade em transformação – processo abortado em 1964 pelo golpe civil-militar.

O que gostaria de resgatar da discussão que Paulo Freire faz quando refere-se aos “temas fundamentais” de cada época é a ideia mesmo da necessária integração a esses temas para que uma nova realidade se desenvolva, ou seja, da necessidade de captação das contradições da época e opção libertadora. A educação é uma ação fundamental para que o caminho a seguir constitua uma alternativa às elites e seus programas de conservação. No entanto, a educação será conservadora se a sua realização não formar atitudes coerentes com a necessária ruptura com o atraso e adesão ao que anuncia uma direção socialmente mais avançada quando encontramo-nos entre o arcaico e o que constitui uma futuridade. 

“Estão me ouvindo?” é a pergunta essencial que deflagra o incômodo de pertencer a uma época que parece ter perdido o senso de autonomia.  O que estamos agora fazendo, durante pandemia? Será que já paramos para pensar sobre a nossa atividade durante o distanciamento social? Como educadores, então, qual a nossa formulação sobre a época de emergência epidemiológica? Qual o currículo a ser adotado no ensino remoto? Aquele que predispõe ao desastre planetário que a velocidade do mundo burguês nos coloca em rota de destruição ou que interpela sobre a nossa presença no mundo e adverte sobre a necessidade de outros caminhos a seguir? O currículo da pandemia é aquele que precipita a morte. Em tempos de produção insustentável do espaço geográfico, um vírus mortífero se multiplica pelo planeta através de um contágio exponencial. Que fazer desde a educação?

Em um dos últimos parágrafos que escreveu antes de partir, quando preparava um novo livro, em 1997, disse Paulo Freire (2000, p. 67): “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Está em Pedagogia da indignação, livro póstumo.  Mesmo sem toda a expectativa que depositava na educação para a mudança, tal como aparecia em Educação e atualidade brasileira e em Educação como prática da liberdade, Paulo Freire insistiu na sua importância política até nos deixar. A pandemia é fantasmática. Faz parte da quimera de uma existência ilimitada e constitui o seu negativo. Precisa ser assumida como um dos “temas fundamentais” da nossa época para desvelarmos sua natureza e porque está nos possuindo mortalmente. “Estão me ouvindo?”

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

______. Educação e atualidade brasileira. 2a ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.

______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP,  2000.

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Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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Comentários

  1. Texto inquietante e provocativo para nós educadores. O tempo torna-se o tema fundamental de nossa época, a pandemia, emergência climática depõe contra o tempo da modernidade. Parar pra pensar, a necessidade de outro caminho, me parece o currículo da pandemia! Ótimo texto!

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