Últimas Conversas de Eduardo Coutinho
Os últimos
filmes de Eduardo Coutinho já provocavam um vivo interesse de alguns
pesquisadores da área de educação por sua obra. Sobretudo, um interesse pela
prática das suas “conversas”, o encontro com seus “personagens”. Relação que
lembra, em vários aspectos, os contatos com as pessoas das nossas pesquisas no
cotidiano escolar e em outros espaçostempos
da educação. São questões referidas à conduta do entrevistador, às narrativas
dos entrevistados e à ética mesmo desse encontro, que nos interessam, por
exemplo, para um diálogo teórico e metodológico com o cineasta.
Últimas Conversas, acredito, será
recebido com muita curiosidade por esses pesquisadores. Trata-se de um filme
com jovens estudantes da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Nada poderia
ser mais diretamente provocante para o nosso interesse por sua filmografia. Últimas Conversas não chegou a ser
editado por Coutinho. O título do filme é
indicativo da sua inesperada partida e que constitui, então, um legado póstumo.
Uma última realização, ainda para nos levar ao cinema. Além dessa surpresa
agradável de mais um filme de Coutinho para conhecer, não poderia imaginar
situação mais inesperada e curiosa para assistir suas “últimas conversas”.
No sábado, dia
28 de março, fui ao Espaço Itaú de Cinema, no bairro de Botafogo, para ver o
filme Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, dirigido
por Carlos Nader. Com alguns minutos de filme, comecei a estranhar. O filme
exibido não batia com a sinopse apresentada na programação. Na verdade, a
partir de algumas notícias de jornal que havia lido previamente, o filme
exibido só podia ser Últimas Conversas. Saí
da sala confuso, acreditando que o cinema havia trocado o nome do filme na
programação, inclusive no ingresso.
No dia
seguinte comprei o DVD Eduardo Coutinho,
7 de Outubro, que já está disponível nessa mídia. Não tive mais dúvidas, “7
de Outubro” não foi o filme exibido. Escrevi para o cinema, através do Facebook
e e-mail, perguntando qual filme estava sendo exibindo. A resposta não vacilou:
“7 de Outubro”. E ainda informava que “Últimas Conversas” só seria mostrado a
partir do 20º Festival É Tudo Verdade, agora em abril. Então, percebi que o
erro era ainda mais surpreendente. Não trocaram o nome do filme, trocaram o
filme!
Depois de mais
uma rápida correspondência virtual com o cinema, não sei ainda se passaram o
filme trocado durante vários dias ou “apenas” na sessão que assisti. Pelo menos
prometeram averiguar e corrigir o erro. Em tempo de muitas vertigens e tantas
brincadeiras midiáticas, cheguei a cogitar se não havia alguma chance de ter me
enganado ou se tudo não passava de alguma “promoção” ou “pegadinha”. Mas o que
teria realmente ocorrido para explicar tal confusão? Até agora também não sei. Apesar
do contato, não me ofereceram sequer outro ingresso para assistir o filme
“certo” – o que acredito que seria educado e compensatório de acordo com o
código do consumidor. Mas o Itaú tem mesmo telhado de vidro. Black Blocs sabem
disso.
E foi assim
que assisti o ainda inédito Últimas
Conversas.
Vamos ao filme
agora. Com aproximadamente 1h20 de duração, eu dividiria o filme em três
momentos. No primeiro, Coutinho aparece sendo entrevistado por uma colaboradora
da sua equipe. Depois acontecem as entrevistas com os jovens. Como em suas últimas
produções, ele aguarda seus entrevistados, que se sentam em uma cadeira
reservada no espaço de um cenário muito simples para a câmera. A última
entrevista exibida é com uma menina de seis anos – é o terceiro momento.
Antes de
prosseguir, uma nota importante: O que vou tentar fazer aqui não é escrever uma
crítica cinematográfica acerca de Últimas
Conversas. Meu interesse é de alguém mais preocupado com as práticas e os
conhecimentos da educação – e no meu caso, acentuadamente envolvido com as
pesquisas sobre juventudes. Esse é o meu olhar e motivação para o diálogo com o
cinema, essa outra experiência tão vital da cultura e também pedagógica do
nosso tempo.
A primeira
parte do filme não dura muito. Contudo, é um momento significativo diante de
algumas considerações que Coutinho faz sobre circunstâncias que cercaram a realização
do filme e também sobre os personagens das suas conversas. Coutinho está
irritadiço e admite que nem gostaria de fazer filmes com jovens, lamentando um
contrato já assinado com o governo do Estado do Rio de Janeiro. Declara também não
gostar de uma estrutura presente nas narrativas juvenis, que enxerga sem maior
atração para o seu cinema. São pessoas que já saem de casa com seus discursos
prontos, que não oferecem muitas oportunidades para situações mais originais no
momento da conversa filmada com o diretor.
Coutinho diz,
então, que gostaria de fazer um filme com crianças, daí a relevância (e o
entendimento) da última entrevista mostrada: uma menina, virtual personagem para
o filme desejado, uma aparição que relaxa o que foi visto antes, na estranha
conversa que desenvolve com os jovens. Então, entre a produção de um filme que
nem parecia tão do seu interesse e a graciosa figura infantil que encerra suas
conversas (a “última conversa”), é que os jovens aparecem no filme. Uma
ansiosa, instável e intranquila acomodação para esses personagens – contudo, as
pessoas mais atrativas para deslindar o que é o nosso tempo.
No início de cada
conversa Coutinho propõe que seu entrevistado se exponha, falando o que desejar
sobre sua vida. Relevante observar que todos já conversaram com a sua equipe.
Há uma seleção prévia antes do encontro com o diretor. São moças e rapazes
concluintes do ensino médio. Portanto, pessoas que já viveram integralmente
esse grau do ensino e possuem impressões, vivências e narrativas sobre essa fase
da vida que finaliza a escolarização básica. Jovens que vivem ainda a
expectativa da “vida adulta”, as possibilidades de um curso superior e o mundo
do trabalho. Socialmente, no filme, são jovens pertencentes às “classes
populares” ou a uma classe média suburbana.
Diz para um
dos jovens que poderá falar qualquer coisa, até mesmo mentir, afirmando ainda que
não acredita na existência da “verdade”. Curioso que tal consideração tenha
sido manifestada durante a conversa filmada com seu entrevistado. Coutinho
desloca-se constantemente nessas “últimas conversas”, dialogando à moda
socrática mais do que “entrevistando”. Isso acontece em outros de seus filmes,
mas aqui com uma agitação bem maior. Existem indiscutíveis cuidados nesses encontros, mas que ultrapassam uma formalidade
ética, apresentando um antimodelo de contato com os jovens que bem poderia
desafiar, nas universidades, os protocolos agora necessários para aprovação de “pesquisas
com humanos”.
Coutinho faz
um cinema de conversas essencial e oportuno para problematizarmos o que
pretendem os “comitês de ética” que cercam o nosso contato com os personagens
das pesquisas em educação. O alcance do seu trabalho não deixa espaço para uma
suposta “regulação do bem” no acontecimento desses encontros. Coutinho não
poupa ninguém pela instabilidade que provoca. Sua atuação recusa personagens e
espectadores como objetos das suas
conversas. Necessário existir, plenamente, diante da câmera – e também da tela.
Conversas para atuar e não para reproduções
de imagens já fixadas em outro lugar. Por isso nos seus filmes as identidades estão entre as figurações
mais atingidas pela câmera.
Seus jovens
entrevistados são provocados a experimentar algum incômodo, algo que desajuste
o que parece estabilizado em suas existências, exatamente para que deixem
escapar não a “verdade”, mas o que fica recalcado pelos jogos de identidade. É
assim, entre narrativas sobre caminhos percorridos na escola e na vida, histórias
de gênero, raça e juventude, que aparecem os “personagens” de Coutinho nas últimas conversas – pessoas únicas e
complexas, irredutíveis a simplificações identitárias. Coutinho não filma para
chegar ao que já sabe. Assim como nenhuma pesquisa, associo, deveria
“descobrir” o que já se pensa. É preciso abrir-se às imagens.
No último
momento do filme, diante do aperto provocado pelo cineasta, a menina pergunta
se ele, com a idade que tem, não aprendeu a contar. A pergunta inusitada reconfigura
a relação entre eles na conversa. Ela não é apenas uma pequena menina cercada
de delicadezas. Tampouco são os jovens tão frágeis, mas como uma diferença. Existe
já nas juventudes um traçado existencial intensamente narrado através da música,
da poesia e outras histórias. Para o “mundo
adulto”, boa parte dessa experiência contada é invisível. O fato é que os
jovens não agradam como as crianças. Jovens provocam suspeitas, mais do que
curiosidade. Foi a contrapelo de si mesmo que Coutinho leva-os à visibilidade
da tela.
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Trailer do documentário
pode ser assistido aqui
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Em Jogo de Cena também
escrevi sobre possíveis diálogos com o cinema de Eduardo Coutinho a partir do
campo das pesquisas em educação.
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