Paulo Freire Contemporâneo
Este texto é
uma versão previa escrita para a minha a participação como debatedor no “Cine Debate:
Paulo Freire Contemporâneo”, programado como atividade da Semana de Integração
do Curso de Pedagogia do Campus Nova Iguaçu da UFRRJ, no dia 3 de março de 2016.
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Nas conversas
sobre um filme, antes de tudo, é importante lembrar sua autoria.
O autor de Paulo Freire Contemporâneo é Toni
Venturi, que também dirigiu, entre outras obras, o documentário O Velho, Luiz Carlos Prestes (1997),
cinebiografia de outro personagem importante da história do país no século XX.
E o que é o
filme Paulo Freire Contemporâneo?
Paulo Freire Contemporâneo é um
documentário que apresenta a biografia de Paulo Freire narrando momentos
marcantes da sua vida pessoal, de educador e intelectual, mostrando ainda a
repercussão do seu trabalho e o atual legado das suas contribuições.
Toni Venturi realiza
o seu filme utilizando imagens documentais, gravações da participação de Paulo
Freire em palestras e em entrevistas, depoimentos de pessoas que trabalharam
com ele e registros que produziu com o objetivo é mostrar a sua herança, até hoje
influente, além de inúmeras fotografias que servem também para narrar a sua
trajetória. Breves leituras de textos da sua obra ilustram ainda a vida e a
obra de Paulo Freire no documentário.
Com tantas
passagens significativas em sua vida, o filme dedica-se a recordação de alguns
desses acontecimentos, procurando apresentar a importância de Paulo Freire para
a educação brasileira, mas também no mundo.
Entre esses momentos
biográficos marcantes, o documentário exibe, inicialmente, sua histórica
experiência pedagógica em Angicos, no Rio Grande do Norte, quando trezentas
pessoas foram alfabetizadas em 40h, em 1963. Logo a seguir, é lembrado o golpe
militar de 1964, acontecimento que interrompeu sua atuação no Brasil e fez com
que se exilasse no Chile, nos EUA e na Suíça. O documentário explora, então, o
impacto da sua vida fora do país e, posteriormente, a repercussão da sua
contribuição para a educação com o estabelecimento de uma “comunidade
freiriana” internacional. Fatos pessoais também são lembrados, como o
falecimento da sua esposa, Elza Freire (1986) e depois seu novo casamento
(1988), com a educadora Ana Maria Araújo Freire, episódios que datam do período
em que já havia retornado ao Brasil (1980), a partir da anistia política. Novamente
no país, o documentário lembra sua nomeação para a secretaria de Educação da
cidade de São Paulo (1989-91) durante a prefeitura de Luiza Erundina.
Um trabalho
interessante de pesquisa do documentário foi reunir personagens que viveram a
experiência de Angicos, moradores e educadores populares, para um registro
audiovisual de memória da realização de Paulo Freire na cidade. Outra ação
destacável do filme foi a realização de entrevistas com personagens das
instituições de ensino e movimentos sociais que hoje dialogam com esse legado
freiriano. Entre esses registros, por exemplo, é exibida a experiência
educativa da Escola Rural de Jaguaquara, na Bahia. O filme mostra também práticas
desenvolvidas pela Escola de Enfermagem da UFRJ e pelo MOVA , uma ação social
de alfabetização, na cidade de São Paulo. Sobretudo, são experiências
pedagógicas que em muitos aspectos parecem contrastantes com o que encontramos em
grande parte das instituições de formação, escolar ou social. O contato do
pensamento e prática de Paulo Freire é também mostrado nutrindo pedagogias que
originariamente não foram desenvolvidas por ele, como o teatro do oprimido, a
alfabetização música ou a ecopedagogia.
Para provocar
o debate, gostaria de destacar três questões a partir do documentário.
A primeira
questão é sobre o caráter mais amplo que Paulo Freire atribuía aos seus
esforços como educador e pensador. Logo no início do documentário há um
comentário feito por Paulo Freire em que recusa a identidade de especialista em
métodos e técnicas de alfabetização de adultos e afirma que a sua preocupação,
desde o começo, já nos anos 50, era a de realizar uma análise critica da
educação brasileira.
Penso que essa
é uma consideração, feita pelo próprio Paulo Freire, muito relevante. O
desenvolvimento de um método de alfabetização para adultos, que se tornou
nacional e internacionalmente conhecido, a partir dos anos 60, não limita o
alcance do seu trabalho a uma área específica da educação.
Já na
concepção do chamado “Método Paulo Freire” existe um forte diálogo com os
fundamentos da educação (especialmente, a antropologia, a sociologia e a
história), com tal penetração analítica e crítica da pedagogia prevalecente nos
sistemas educativos, que constitui também fundamentação para uma abordagem mais
vasta sobre a educação nas sociedades contemporâneas. Por isso a abrangente
recepção da sua obra, envolvendo educadores de variados setores formativos,
escolar e não escolar, além de ativistas políticos e sociais, em inúmeros
países.
A obra de
Paulo Freire contém uma discussão densa e sustentável sobre os condicionamentos
econômicos, sociais, políticos e culturais da educação. E ainda, Paulo Freire
dedicou-se a demonstrar as urgências e possibilidades de transformação das
concepções e práticas educativas vigentes – o que significava, na sua
concepção, transformar também a sociedade capitalista.
Seu livro mais
conhecido, Pedagogia do Oprimido, já
no título é indicativo da sua compreensão da problemática mais ampla do poder
na sociedade (se existe o “oprimido”, existe também o “opressor”) e da
necessidade de assumir um ponto de vista como condição para problematizar com
real propriedade a educação, transformá-la e mudar assim as condições mais
gerais da própria existência (o ponto de vista do “oprimido”).
Portanto,
muito mais do que uma abordagem especializada sobre a alfabetização de adultos,
encontramos em Paulo Freire uma obra que procura situar a prática educativa no plano
mais amplo da vida social e como a sua transformação poderia beneficiar o mais
amplamente possível grupos sociais até então oprimidos, silenciados e
invisibilizados.
A segunda questão
é um comentário feito por um dos seus principais intérpretes, Moacir Gadotti,
quando diz que “Paulo Freire colocou o oprimido na história, ele deu
visibilidade”.
O que é dar
“visibilidade” ao oprimido?
O trabalho do
poder não é apenas a exploração econômica e controle violento das reações à
dominação que exerce. O poder, que visa o controle de extensas populações de um
país, é ainda uma prática de enfraquecimento e desmobilização dessas pessoas.
Para os que se beneficiam do poder sobre as classes populares, importante
mantê-las política e culturalmente retraídas, descrentes até das suas
capacidades de superação.
A
“invisibilidade” é uma prática de contenção desses oprimidos, para que não se
reconheçam como indivíduos merecedores, por necessidade e justiça, de outros
destinos – ou seja, não explorados, dominados e diminuídos.
No entanto,
apesar da história dominação exercida sobre as classes populares, essas pessoas
nunca foram incapazes, insuficientes ou desprovidas de realizações. Embora,
tantas vezes, na escola e em outros territórios da vida social, o reforço
institucional é o de desprezar o que realmente são (pessoas de muitas
virtualidades e plenitudes) insistindo em um suposto caráter “menor” de suas
existências.
Paulo Freire
propôs, contudo, uma prática educativa e uma experiência social em que os
“oprimidos” aparecessem por inteiro, ou seja, integralmente, reconhecendo
também suas capacidades, fabulações e realizações. Assim, que fossem
“visibilizados”, que aparecessem, que não fossem removidas através do
“apagamento” do valor que sempre possuíram.
Ao propor o
diálogo no lugar da escuta calada e a correspondência no lugar da
transferência, Paulo Freire dignificou o “oprimido” no processo educativo. Deu
relevo à sua vida e presença nesse encontro educador e educando, que
constantemente é também invertido – o educador também é educando e este também
educa. É nesse sentido que poderíamos dizer que Paulo Freire deu “visibilidade”
ao “oprimido”.
Aqui, no
entanto, poderíamos fazer uma objeção.
Alguém
efetivamente “dá voz” ou “visibilidade” a alguém?
Na verdade,
encarada essa questão de forma absoluta, isso seria defender a “doação”,
exatamente um aspecto criticado por Paulo Freire, uma conduta característica da
“educação bancária”.
Uma “educação
para a liberdade” não dá “visibilidade”, esta é tecida solidariamente,
coletivamente, entre os sujeitos implicados com essa emancipação. A
“visibilidade”, portanto, é relacional, propósito de determinada ação educativa
associada às trajetórias de vida das classes populares, já marcadamente
emancipatórias e nunca absolutamente “invisíveis”.
O que se
espera de uma “educação feiriana”, assim, é uma desdobrada emergência popular,
uma “visibilidade” agora mais consciente das suas possibilidades e radicalidade
política.
A terceira questão eu também desenvolveria a partir
de outro comentário do Moacir Gadotti, quando observa de que “no campo
pedagógico, é muito mais atual Paulo Freire”.
Já estamos bem
próximos dos 50 anos de Pedagogia do
Oprimido, mas podemos afirmar que a obra de Paulo Freire continua atual.
Pelo menos por dois motivos eu vejo deste modo.
O primeiro
motivo é o contexto e sentido histórico da obra de Paulo Freire. Não se tratam
de escritos produzidos para reagir a episódios estritamente locais ou meramente
conjunturais. Paulo Freire desenvolveu sua obra debatendo sua concepção da
educação interpelando a sociedade do seu tempo, sobretudo, problematizando suas
determinações mais extensas, social e historicamente.
Paulo Freire
analisou as práticas educativas através de conceitos como capitalismo, classe
sociais, colonialismo, entre outras referências, buscando compreender seus
elementos estruturalmente constitutivos. Portanto, existe uma maturidade na sua
análise que faz sua obra perdurar, pelo menos enquanto os motivos dos seus
embates mais importantes não se encontrarem superados.
O fato é que
muitos conceitos que Paulo Freire utilizou e desenvolveu continuam válidos para
discutir a nossa época também, mesmo após a sua morte (1997). Ainda que uma
série de novas formulações busque explicar de forma original o nosso tempo,
tais como pós-modernidade, modernidade líquida ou capitalismo pós-fordista, sua
obra sempre soube identificar o que é constitutivo de um período mais largo no
tempo entre as mudanças que fundamentalmente não alteram muito os paradigmas
sociológicos validos até então.
O segundo
motivo que apontaria para afirmar a atualidade de Paulo Freire é observar que
sua obra também experimentou transformações, sempre atenta às críticas e aos debates
mais atuais. É perfeitamente possível, também com Paulo Freire, discutir
questões contemporâneas sobre a educação, entre elas, por exemplo, raça e etnia,
cultura ou mídias.
Perceptível,
lendo seus escritos, que questões antes ignoradas ou insuficientemente
consideradas, mais adiante apareciam como problemas legítimos que precisavam
ser enfrentados. Isso a partir do seu contato com o variado público da sua
obra, embora muitas vezes também crítico dos seus escritos.
Rigorosa, no
entanto, sempre dialógica, a obra de Paulo Freire é receptiva a novos
encontros, é possível dizer. Não vejo seu pensamento “acima de qualquer
suspeita” nem repositório de todas as questões fundamentais da educação no
nosso tempo. Trata-se sim de uma obra valiosa que, pelo menos no meu
entendimento, pode ser muito bem aproveitada por uma nova geração de educadores,
também interessada em novas práticas e “frescor” no pensamento. Ler Paulo Freire parece ainda contribuir para
essa brisa intelectual que de tempos em tempos tanto sentimos falta.
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Título: Paulo Freire Contemporâneo
Direção: Toni Venturi
País: Brasil
Ano: 2006
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