Sob o olhar de Paulo Freire, retratos dos jovens nas escolas: imagens dionisíacas
Este texto foi escrito para a
minha participação na mesa “Juventudes Dionisíacas”, no dia 14 de julho,
durante o I Seminário do Curso de
Especialização em Ensino da Arte, que aconteceu na Casa França Brasil, na
cidade do Rio de Janeiro.
I
O movimento #ocupaescola foi um
dos acontecimentos educacionais de maior relevância entre os anos de 2015 e 2016.
Provavelmente foi também o
movimento mais representativo do espírito das manifestações de 2013, quando
tanta gente já se perguntava sobre os destinos daquelas jornadas, se elas não
estavam esgotadas, à semelhança da luz fugaz de uma estrela cadente.
Em contrapartida, as concepções
mais republicanas e democráticas da educação sofrem ataques através de movimentos
como “escola sem partido” e “escola livre”. Sobrou até para um dos mais
importantes educadores do século XX e declarado patrono da educação brasileira:
Paulo Freire – atingido nas ruas e nas mídias.
Como sinal dos tempos, até Alexandre
Frota foi recebido por Mendonça Filho, ministro da educação do governo golpista
de Michel Temer.
Sobre Paulo Freire, contudo,
pode-se afirmar, “cutucaram a onça com vara curta”. Não existe qualquer indício
de que o seu legado caducou ou será drasticamente questionado nos próximos anos.
Pelo contrário, a lembrança de Paulo Freire foi apenas uma forma de agitar a
sua obra, uma química inesperada para o coquetel molotov do seu pensamento.
Agora, é Paulo Freire é quem nos
olha.
II
Paulo Freire é sempre lembrado
por seu trabalho na alfabetização de jovens e adultos, o chamado “Método Paulo
Freire”, famoso pela experiência em Angicos-RN, em 1963. Mas gostaria de
recuperar aqui um breve extrato de um texto escrito no exílio chileno, em 1968,
onde fez uma rápida referência específica à “juventude” (FREIRE, 2006, p. 53):
Poder-se-á
dizer, uma vez mais, que tudo isso requer tempo. Que não há tempo a perder
visto que existe um programa que deve ser cumprido. E, uma vez mais, em nome do
tempo que não se deve perder, o que se faz é perder tempo, alienando-se a
juventude com um tipo de pensamento formalista, com narrações quase sempre
exclusivamente verbalistas.
Nessa passagem do texto, Paulo Freire
está discutindo as práticas educacionais conservadoras que, na reforma agrária,
rejeitam “perder tempo” com outras questões que não a aprendizagem dos
conhecimentos técnicos vistos como suficientes para o desempenho de um trabalho.
Faz, então, essa comparação com a vida nas escolas referida aos jovens.
Para Paulo Freire, cobrando o
preço de um “programa” que deve ser cumprido, sem tempo para outros
envolvimentos educacionais, os jovens são “alienados”, perdendo tempo com
atividade escolar basicamente dissertativa, sem a oportunidade de um
desenvolvimento mais integral e vital, uma concepção insensível às
aprendizagens e mudanças realmente desejáveis.
Os jovens nas escolas, no
entanto, nunca aceitaram de forma pacífica a educação bancária (FREIRE, 2005).
Os chamados “problemas de aprendizagem” e “problemas de comportamento”, vistos
sociologicamente, não podem ser adequadamente discutidos sem considerar a
“invasão cultural” que caracteriza a promoção da escolarização quando não se
respeita a história social dos lugares e a biografia cultural dos seus
indivíduos.
Lembrando ainda Paulo Freire
(2006, p. 41):
Toda
invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. Seu espaço
histórico-cultural, que lhe dá sua visão de mundo, é o espaço de onde ele parte
para penetrar outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos deste
seu sistema de valores.
Assim, as classes populares, vistas
pelas classes dominantes apenas como depósitos de conhecimentos para projetos
de modernização dirigidos pelo capital, não contam como idealizadoras e
produtoras de cultura, capacidades e realizações que precisam, no entanto, ser
admitidas e respeitadas em qualquer concepção democrática de educação.
Gostaria de lembrar outra
passagem de um texto de Paulo Freire (1982, p. 57), também escrito em 1968, no
Chile, uma das mais instigantes (e belas!) considerações que fez sobre a
cultura popular, referindo-se ao modo de vida nas favelas:
Suas
atividades noturnas, seus bailes, sua música, o uso do corpo, seus gestos, sua
maneira de andar, de vestir, suas crenças, sua ironia, seu humor seus códigos
de companheirismo, sua forma de “desapertar-se” de situações difíceis, sua
semântica, sua sintaxe, tudo isto constitui sua linguagem, como “linguagem
total”, e são valores que compõe aquela muralha e que, mesmo tocados pela
ideologia dominante, não se entregam totalmente a ela.
Instigante porque referida à
população urbana das classes populares, quando a maior parte das suas referências
é relativa à vida campesina, e com uma propriedade que parece avançar no tempo.
Trata-se de uma apreciação que poderia ser dirigida à cultura popular hoje nas
favelas. Serve para atribuir sentidos emancipatórios ao funk, por exemplo. O
funk e sua poesia, narrativa, corporeidade e performance. O funk, portanto,
como expressão cotidiana dessa “linguagem total”.
A “linguagem total” no cotidiano
das escolas é a guerrilha dos jovens das classes populares contra a “invasão
cultural” que caracteriza, via de regra, o contato da instituição escolar com
esses indivíduos. São escolas localizadas nos bairros populares, mas sua
administração, programa educacional e finalidade social são coloniais.
III
Um dos mais interessantes relatos,
a respeito do #ocupaescola foi sobre a surpresa de alguns professores, provocada
por seus alunos, jovens que, segundo eles, não demonstravam qualquer capacidade,
por exemplo, de organização, e estavam agora aparecendo como protagonistas de
um movimento político, mantendo uma escola com eficiência.
Acompanhando, principalmente,
pela internet, mas também através de outras mídias, foi com fascínio que vi
também, em tais escolas, a realização de atividades pedagógicas e culturais
como parte do trabalho de ocupação. São os jovens disputando os currículos nas
escolas (ARROYO, 2011), acontecimento educacional que precisa ser destacado
entre tantas experiências dignas de atenção sobre a insurgência dos estudantes.
Mas, afinal, que jovens são
esses? Por que surpreendem seus professores agora? Por que não são surpreendentes
desde sempre?
Lecionei durante aproximadamente
14 anos na rede municipal do Rio de Janeiro e, atualmente, como professor na universidade,
tenho dedicado parte do meu trabalho à pesquisa sobre as “juventudes”.
Experiências que me proporcionaram algumas “imagens” dos jovens. Entre elas, existem
fotografias mesmo, realizadas em algumas escolas. Com esses “retratos dos
jovens” tenho escrito sobre eles, publicando algumas reflexões (BERINO, 2012,
2013).
Para essa nossa conversa, sobre
“juventudes dionisíacas”, gostaria de apresentar algumas dessas imagens. Portanto,
não são imagens do #ocupaescola, mas que antecedem ao momento político atual
desses jovens. Talvez pudesse afirmar, são imagens de um momento mais contíguo,
de micropolíticas, de infiltrações cotidianas. O fato é que esses jovens sempre
estiveram lá, nas escolas, criando e desestabilizando.
São fotografias que fiz em dois
momentos. O primeiro deles foi durante o meu doutoramento, quando lecionava,
então, no ensino fundamental, na rede pública. O segundo momento foi algum tempo
depois, já como professor da RURAL. Fiz essas últimas fotografias no CTUR,
Colégio Técnico da UFRRJ, em Seropédica.
São imagens ordinárias da vida nas escolas. Não possuem nada
em especial. O que exibem, esses jovens já mostram cotidianamente nas escolas.
Provavelmente, nunca atribuímos nada de muito relevante diante das suas aparições.
Mas tais imagens são sim reveladoras. Elas revelam o nosso desinteresse pela
“linguagem total”, que nos fala Paulo Freire, dos jovens nas escolas. O que
queremos deles, em resumo, são suas notas e a aceitação de cumprir o que foi
preparado para as aulas.
Imagens
de uma escola municipal do Rio de Janeiro, ano de 2005
São imagens do cotidiano
escolar, mas que nos remetem ao “dentrofora” das escolas (ALVES, ANDRADE, 2011).
As tecnologias digitais e a miniaturização das mídias eletrônicas são
aproveitadas pelos jovens para uma conexão que anula o efeito de contenção do
muro escolar. Mesmo eventualmente proibido o ingresso ou uso de celulares e
outros objetos, são normas que não são observadas. Nem poderiam, a posse desses
objetos estão além do que pode ser refreado.
Um celular não é tão somente um
objeto de comunicação, mas também de identidade. Portanto, de um consumo
cultural para esses jovens. A convergência das mídias faz com que se transformem
em próteses, agora inseparáveis dos corpos. Não é mais possível ver o mundo, em
instante algum da vida cotidiana, sem uma câmera fotográfica. A música não é apenas
para o lazer, mas uma audição infinita. A música é um mundo repleto em um
espaço mínimo.
A escola é um lugar vivido com
intensidade, com gestos extremos e pensamentos que percorrem universos. Tal é a
presentificação dos jovens nas escolas. Contudo, o governo das escolas (através
da administração, do currículo, das condutas etc.) se coloca como um poder
castrador, perverso e desvitalizante. Evidentemente, outras forças conflitam.
Mas não importa, em todo caso, os jovens sorriem e brincam, desafiando a nossa
episteme.
Imagens
do CTUR - Colégio Técnico da UFRRJ, ano de 2008 e 2010
Os jovens não apenas assimilam objetos aos seus corpos
“pós-humanos”. São corpos que fazem aderir também em todo o edifício escolar.
Desenham seus corpos com as figuras das mídias eletrônicas e outros adornos,
mas também tatuam as paredes das escolas com suas subjetividades, experiências
e fantasias. A “ocupação das escolas” existe desde sempre pelos jovens.
A “ocupação escolar” dos jovens é política e estética.
Explicitamente estética. No cotidiano escolar encontramos uma vontade de beleza
que é a mais elementar e franca forma de contato. A estética juvenil é um
chamado ao contato isento de qualquer dissimulação. Acontece, no entanto, como
uma fabulação. Um jogo que precisa ser jogado abertamente. Não é um jogo para
cortejar quem se comporta como invasor e conquistador.
Portanto, retornando ao encontro
com Paulo Freire, a vida nas escolas, para as “juventudes dionisíacas”, é um
espaço de afirmação das suas existências. Nenhum programa escolar deveria
ignorar isso. A “invasão cultural” das escolas é a maior produtora dos
resultados escolares negativos, pela falta de interesse legítimo pelas
culturais juvenis e a “linguagem total” dos seus personagens.
Referências
ALVES, Nilda; ANDRADE, Nívea.
Dentro fora do muro da escola. A Página
da Educação. Porto. Edição N. 195 – Série 2.
Disponível em <http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=549&doc=14727&mid=2>
. Acesso em 14 jul. 2016
ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa.
Petrópolis: Vozes, 2011.
BERINO, Aristóteles. A escola na
câmera dos alunos, identidades juvenis, projeções midiáticas. In:
BERINO, Aristóteles (org). Ensino e pedagogia da imagem. Seropédica: EDUR, 2013. p. 11-26.
______. Iconografia escolar:
algumas imagens para conversas sobre as juventudes. In: GAWRYSZEWSKI, Alberto
(org). Olhares sobre narrativas visuais.
Niterói: Editora da UFF, 2012, p. 97-196.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros
escritos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
______. Extensão ou comunicação? 13ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
______. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro, 2005.
Eu adorei... Para mim Paulo Freire é quem mais soube avaliar e escrever a respeito da escola, da docência e discência. Toda vez que me perguntam sobre como é minha prática(coisa um tanto difícil de se falar de imediato) digo, caminho pelo "método" Paulo Freire.
ResponderExcluirDurante a leitura desta escritura pensava: ele considerou o livro Extensão ou Comunicação? e Pedagogia do Oprimido... E foi assim... Entre outros...
Essa juventude mencionada antes esteve na escola que chamo "das primeiras letras", primeiro segmento do ensino básico, foram crianças que tinham seus talentos, ideias e conversas para contar ao entrarem na escola, mas a escola não escuta e invade a vida das crianças com suas ideias e vontades; aí começa o desenredo.
Eu estou escrevendo à direção da minha escola para problematizar a linguagem e sua incongruência. São muitas as linguagens na escola, mas elas não se harmonizam e seus principais atores, os alunos, não participam com sua linguagem, seu olhar, suas ações diretamente nas decisões escolares.
Usando o livro "A Droga da Obediência" - Pedro Bandeira - primeiro parágrafo vou considerar a perspectiva da participação direta dos estudantes na escola para que haja um diálogo ao menos, para que se iniciem diálogos na escola.
Esta escritura sobre a juventude corrobora muito para refletir a respeito, pois os jovens já conversam na escola entre si e com alguns que prestam atenção a eles. Não se trabalha só, mas em comunhão e esta escritura, entre outras questões, deixa claro que se quiser que haja aprendizagem vai precisar haver um novo olhar para as expressões dos jovens nas escolas, vai ser preciso conversar com eles, aprender com eles e depois dividir e/ou trocar ideias com eles.
Abraço!
Oi, Sonia. Muito bacana sua discussão. Não conhecia "A droga da obediência", fiquei curioso.
ResponderExcluir