Menino 23
Pense em um
documentário que narra uma história sobre nazismo e o destino de cinquenta
crianças aprisionadas em uma fazenda, no interior de São Paulo. É o suficiente
para levar você ao cinema. Agora, para os que trabalham com educação, imagine que
esse filme tem início em uma aula de história, que o seu roteiro é baseado em
uma tese de doutorado defendida na área de Educação e que essas crianças foram retiradas
de um orfanato católico e entregues a uma família de nazistas. Estamos diante
de um filme precioso, é claro.
No ano de
1998, durante uma aula do professor Sidney Aguilar Filho, uma aluna conta que na
fazenda da família, em Campina do Monte Alegre, foram encontrados tijolos
impressos em relevo com a suástica nazista em uma construção já existente no
local. O episódio na sala de aula deu início à pesquisa de doutorado “Educação,
autoritarismo e eugenia”, apresentada por Sidney na Faculdade de Educação da
UNICAMP, em 2011. É também como o filme começa.
Ainda em
cartaz em algumas cidades, Menino 23 –
Infâncias perdidas no Brasil, de Belisario Franca, é um filme de interesse
para os que esperam do cinema nacional maior diálogo com a sociedade brasileira
ao pensar o país diante de um dos seus principais problemas: o racismo. É o
cinema como uma pedagogia da imagem, interpelando os regimes de visualidade que
formam a nossa visão de mundo e tecendo outras visibilidades, alargando assim a
nossa compreensão de como nos formamos como nação.
O personagem protagonista
do filme é Aloysio, um dos poucos sobreviventes de um grupo de 50 crianças
negras, entre 9 e 12 anos, que nos anos 30, internas do Educandário Romão de
Mattos Duarte, no Rio de Janeiro, foram separadas por um benfeitor, Osvaldo da
Rocha Miranda, com o propósito de levá-las para uma fazenda de sua propriedade.
Família influente desde o Império, entre os Rocha Miranda existiam integrantes
da Ação Integralista Brasileira (AIB), partidários do nazismo e defensores da
eugenia.
O prestígio da
família ainda se faz notar na cidade. Uma dificuldade inicial da pesquisa de
Sidney foi obter informações sobre o passado do lugar. Depoimentos no filme deixam
ver a névoa que envolve o passado da família na região. Aloysio fez prevalecer
esse silêncio até Sidney avançar na pesquisa em arquivos e localizar documentos
a seu respeito. Ao ver esses registros, Aloysio resolve contar a sua história:
“Eu fui o menino 23”.
A numeração
desses meninos corresponde às práticas de administração dos corpos
características da modernidade e levadas ao extremo pelos fascismos através da
segregação e da eliminação. Até as escolas praticam o “número do aluno”. São
condutas que servem tanto para identificar como para despersonalizar. Educam
para reconhecer nesses indivíduos existências mais seriadas do que válidas por
suas singularidades. Parâmetro que normaliza o nosso olhar para enxergar essas vidas
com importância apenas relativa.
Apesar das
promessas de uma vida mais agradável, as crianças frequentaram a escola apenas no
primeiro ano. Trabalhavam na lavoura e cuidavam dos animais sem receber
remuneração. Em eventos promovidos na fazenda, nos finais de semana, eram
vestidas com uniforme do movimento integralista. Mas frente às mudanças na
conjuntura política do país, a família dos Rocha Miranda, ameaçada e precisando
tomar cuidado com as suas condutas, manda as crianças, agora mais velhas,
embora da fazenda, sem oferecer, contudo, qualquer apoio.
Outro
personagem importante no documentário é Argemiro. A partir das lembranças de
Aloysio, será localizado no Rio Grande do Sul. Argemiro foge da fazenda antes
que todos os meninos fossem mandados embora. Chega a morar nas ruas da cidade
de São Paulo até saber da notícia do ingresso do Brasil na II Guerra. Viaja,
então, de trem para o Rio de Janeiro e se alista na Marinha. Na sua primeira
aparição está tocando um instrumento de sopro. É uma das mais tocantes imagens do filme, em
contraste com histórias de vida tão sofridas.
Um terceiro
personagem do filme é o “número 2”. Ele não estava mais vivo quando sua família
foi entrevistada para o filme. Personagem ímpar e que provoca a aversão de
Aloisio. Vivia na casa como filho da família Rocha Miranda. Gozava de
liberdades que nenhum dos outros meninos possuía. Foi o único separado para
permanecer na fazenda quando os demais foram expulsos. Nas fotografias
encontradas, sua imagem sempre parecia distinta em relação aos outros meninos.
Contudo, observa a família, algo no passado parecia pesar sobre a sua vida.
Notável que o
cinema tenha proporcionado um conhecimento sobre essas crianças, existências
que, na verdade, ultrapassam a vida de cada um deles, uma vez que iluminam
também a condição de muitas outras crianças e jovens, que sofrem da segregação
e marginalização nas cidades, sem provocar tanta comoção assim. Não conhecemos muito
bem as histórias das infâncias no país e tampouco desejamos saber muito sobre
isso. Mas Menino 23 descortina e
indaga o que evitamos.
Menino 23 faz o trabalho do cinema com
muita competência. O filme tem uma
narrativa que seguramente envolveria uma turma de alunos. É um filme para
assistir nas escolas também. Nada mal esse resultado, já que tudo começa com a
comunicação de uma aluna, em uma aula de história, sobre a existência de
tijolos com símbolos nazistas em um local impensável. Imagino como isso deve
ter surpreendido seu professor. Menino
23 cruza as fronteiras entre a sala de aula, a pesquisa acadêmica e a sala
escura. Que futuro isso!
*
A tese do
professor Sidney pode ser encontrada na Biblioteca Digital da Unicamp
*
Direção: Belisario Franca
País: BRA
Ano: 2016
Classificação indicativa: 12
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