Zero em Comportamento
Em assembleia
realizada no dia 1º de novembro, alunxs do Instituto Multidisciplinar, no
Campus Nova Iguaçu da UFRRJ, decidiram, acompanhando movimento nacional de
estudantes secundaristas e universitárixs, ocupar também o prédio da
instituição. Como parte das atividades do Ocupa IM-UFRRJ, organizam eventos
acadêmicos e culturais. Atendendo a uma convocação de propostas para a
realização de atividades variadas, propus um cine debate com o filme Zero de
Comportamento (FRA, 1933), de Jean Vigo. Achei a exibição do filme propícia à
ocasião do movimento de ocupação. A proposta foi aceita e realizamos o cine
debate na tarde do dia 14 de novembro. Este texto é uma versão prévia que
preparei sobre o filme para orientar a minha participação na discussão.
Jean Vigo
nasceu em 1905 e morreu muito jovem, em 1934. Realizou o curta metragem Taris, roi de l’eau (1931)[1],
os média metragens À propôs de Nice
(1930)[2]
e Zéro de Conduite (1933) e o longa L’Atalante (1934)[3].
Apesar da breve vida e dos poucos filmes que teve a oportunidade de fazer, Jean
Vigo deixou um legado reconhecidamente importante. Trata-se de um cineasta
relevante para a história do cinema. Para os que se interessam pelos “filmes de
escola”, Zero em Comportamento é um
filme memorável, incluído em qualquer lista dos mais significativos sobre o
tema.
Jean Vigo é um
dos expoentes do “cinema anarquista” e Zero
em Comportamento é um filme libertário e poético. Não escapou à censura e
foi proibido no mesmo ano do seu lançamento. Os pais de Vigo eram anarquistas. Seu pai, Miguel Almereyda, um imigrante
espanhol que foi trabalhar na França, morreu no cárcere, provavelmente
assassinado (a razão declarada pelas autoridades foi “suicídio”). Quando
iniciaram as ocupações de estudantes no país, a contemporaneidade do filme para
esse debate me pareceu evidente.
As primeiras
imagens do filme, ainda em um trem, remetem ao fim das férias e retorno às
aulas. Depois tudo transcorre em uma
escola, através do seu cotidiano, a organização de uma revolta e o episódio
final em que tudo acontece. Como
veremos, não é uma revolta estritamente contra a escola, mas contra toda a
sociedade burguesa. No entanto, a grande beleza do filme é sua crítica à
educação destinada às classes populares e a riqueza política e estética com que
outra concepção de educação nos é mostrada.
A escola é um
internato para garotos. Os alunos são mantidos em meio à constante observação:
regras na sala de aula, vigilância no recreio e ronda nos dormitórios. Nada
disso garante a obediência (como em tantas escolas, hoje ainda...). Suas atitudes
são constantemente avaliadas por qualquer uma das autoridades da escola: inspetor
ou professor. Habitualmente recebem “zero em comportamento” para punir as
condutas erráticas. É uma ameaça com a qual o poder espera se manter de pé.
A escalada do
poder na escola não passa batido pelos alunos. Três deles, Caussat (Louis
Lefebvre), Colin (Gilbert Pruchon) e Bruel (Coco Golstein), organizam uma
conspiração. Combinam a revolta para um dia solene que será comemorado na
escola com a presença de várias autoridades, militares e civis. A sublevação
deverá culminar, na escola, com a substituição da bandeira francesa, atirada ao
chão, pela bandeira pirata “Jolly Roger” (fundo preto e caveira branca) dos
rebeldes. Pense em algo assim, acontecendo na escola em que você trabalha...
Enquanto o
inspetor Péte-Sec (Robert Le Flon) mostra-se covarde e desleal com os garotos, o
inspetor Huguet (Jean Daste) revela-se cúmplice dos alunos, inclusive mantendo
sigilo sobre a revolta. Huguet representa, através dos seus gestos e ações, o
ideal de uma educação mais generosa e relevante para os alunos. Sua presença é
sempre luminosa e encantadora, existência terna que os alunos reconhecem e
correspondem. Para os que hoje pensam uma educação mais significativa para as
classes populares, seu personagem é uma inspiração.
Em uma das
suas intervenções pedagógicas, Huguet leva os garotos para um passeio pelas
ruas da cidade. Seu gesto contrasta com toda a situação educacional que se
desenvolve entre os muros da escola. Não são contidos ou vigiados por ele, mas
caminham abertos aos acontecimentos mais excitantes. Um dos episódios dessa
vivência é o encontro com uma mulher que também caminha. Huguet mostra para os
garotos como devem agir nesses momentos, de modo amável e marcante. Cada gesto
de Huguet é uma educação transformadora.
O mesmo acontece
quando deveria estar controlando os garotos no recreio. Huguet parece mais um
entre eles, brincando também ou permanecendo indiferente às travessuras dos
alunos. Em um momento de grande plasticidade, imita Carlitos, emprestando ao
lugar uma imagem de liberdade e criação, diferente do projetado ambiente de
paralisia e reprodução. O personagem Huguet é a realização de um pensamento
educacional que interpela a escola existente, tecendo outros caminhos
pedagógicos.
Um quarto
garoto irá se juntar à revolta. É Tabart (Gerárd de Bédarieux). Em um episódio
é chamado pelo diretor, que irá observar sobre a suposta maliciosa companhia de
Bruel. No entanto, logo após esse encontro, manda um professor ir “à merda”,
depois de ser demasiadamente acariciado por ele (a imagem fecha no detalhe da mão do professor
sobre a mão de Tabart). O fato é que, enquanto a autoridade escola se preocupa
com o contato dos alunos entre eles, os garotos são constantemente assediados
pelo mundo adulto.
Artisticamente
o filme é muito impactante também. Muitas imagens são oníricas, delirantes ou
surreais. Em uma delas, depois que os líderes reúnem todos para declarar a
revolução para o dia seguinte (“abaixo aos professores!”), os alunos atacam com
travesseiros o inspetor-geral (Du Verron). Começam, então, uma estranha
procissão no dormitório. A reprodução em câmera lenta, o efeito de enevoamento
proporcionado pelos flocos dos travesseiros flutuando e a trilha sonora executada,
criam uma curiosa (dionisíaca) fantasia visual para o momento.
Alguns
personagens presentes à cerimônia na escola são representados por bonecos.
Outros executam uma coreografia nonsense.
O diretor da escola é interpretado por um anão e sua barba tampouco parece
real. Zero em comportamento nos dá uma
visão depressiva do poder ao mesmo tempo em que desenha a revolta dos
estudantes como uma solução ética, mas também plástica, acentuando o cinema
como uma forma de pensar a sociedade – e aí a escola – através de imagens (e
sons), interpelando o real através de formas que surpreendem o olhar.
Marcada para
acontecer em uma reunião em que estariam presentes tantas figuras de
autoridade, atacando todas elas, a revolta deixa de ser um acontecimento
rebelde estritamente escolar e alcança criticamente a sociedade como um todo. Se
não presta a escola, também não presta a sociedade. Zero em Comportamento é um filme
ferino com a sociedade burguesa. As ocupações escolares agora acontecem com
outras práticas e estéticas, mas não deixam de possuir também a sua
fatalidade.
*
Um importante
personagem da cultura brasileira, Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977),
escreveu um livro imprescindível para conhecer Jean Vigo, publicado pela Paz e
Terra e, mais recentemente, em nova edição, pela Cosac Naify.
*
Título: Zero de Comportamento
Direção: Jean Vigo
País: França
Ano: 1933
[1]
https://www.youtube.com/watch?v=sKAU7c-JE4k
[2]
https://www.youtube.com/watch?v=24Ti_8c6qjI
[3]
https://www.youtube.com/watch?v=LihiCx8tDSM
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