Quarto de despejo



Depois de introduzir a leitura de Quarto de despejo no meu curso de Estudos Culturais, na graduação em Pedagogia da UFRRJ, no Instituto Multidisciplinar, em Nova Iguaçu, achei por bem  escrever algumas linhas dialogando com Carolina Maria de Jesus, especialmente afirmando sua importância também para a educação brasileira e, portanto, para a formação do educador.

Uma nota introdutória, então. Minha conversa aqui não é uma resenha literária, muito menos uma análise sobre o lugar de Carolina na literatura brasileira. Estou olhando para outra direção. Como educadores, quais significados podemos atribuir à Carolina Maria de Jesus? Por que ler Carolina em um curso de Pedagogia? Gostaria de apresentar algumas ideias iniciais, quem sabe para desenvolvê-las mais tarde em um artigo.

Quarto de despejo é uma narrativa que já está explícita no subtítulo da obra: “Diário de uma favelada”. Contém registros dos anos de 1955, 1958 e 1959. Na verdade, o último é do dia 1º de janeiro de 1960 e diz apenas: “Levantei as 5h e fui carregar agua” (p. 191), assim ela termina seu diário. O livro foi publicado nesse ano, em 1960. Passados quase sessenta anos, a leitura de Quarto de despejo encontra hoje um renovado interesse.

Interesse que aparece de forma suficiente na sua desconcertante atualidade social. Quando Carolina escreve “somos escravos do custo de vida” (p. 11), já na quarta linha da primeira página do seu diário, faz-se ouvir diante das dificuldades ainda fortemente vividas pelas classes populares no país. Mas quando diz, “adoro a minha pele negra (...). Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta” (p. 46), há uma declaração racial que soa como inequívoco lugar de fala com a qual muitas leitoras contemporâneas também se identificam plenamente.

Pessoalmente, acho Quarto de despejo uma leitura tocante por tudo que nos obriga a pensar e a avançar como educadores. Um olhar legitimado pela “alta cultura” imediatamente observa as suas supostas lacunas. Carolina escreve errado e o que faz também não é rigorosamente literatura. É o que já foi dito sobre o livro. Mas a revolução caroliniana é a de nos fazer conhecer a leitura do mundo de uma mulher negra, no final dos anos cinquenta, quando isso nos pareceria improvável diante das dificuldades da sua vida.

Na verdade, nem acredito que seja tão difícil assim reconhecer em Quarto de despejo uma obra literária. “Percebi que chegaram novas pessoas na favela (...). Fitei a nova companheira de infortúnio (...). Foi o olhar mais triste que eu já presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida” (p. 46).  Em entregar a vida aos cuidados da vida há uma criação literária: “os cuidados da vida”. É com a escrita que Carolina abre uma fresta na asfixiante realidade e é aí que outra realidade aparece, com as suas próprias imagens.  

“Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade” (p. 81). A precariedade de Carolina é tal que parece não lhe dar a chance de alguma esperança. Não haverá felicidade para ela. “Quando a noite surgiu, ele veio (...)/ Ele disse-me que o amor cigano é imenso igual ao mar” (p. 149). No entanto, é a escrita que interrompe o círculo fechado de uma existência sem alternativas visíveis: “Quando a noite surgiu, ele veio”. Da criação literária, a vida insurge e a realidade, antes paralisante, agora é oceânica.  

A narrativa de Carolina sobre sua vida na favela é uma leitura de mundo. “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita (...), quando estou na favela tenho a impressão  que sou um objeto fora de uso, digno de um quarto de despejo” (p. 37). Em Quarto de despejo Carolina escreve a sua existência em condições absolutamente adversas.  Não se trata, de modo algum, de uma escrita carente, mas de uma escrita instituinte que a faz emergir através da sua situação existencial de mulher, negra e pobre em uma sociedade pós-colonial.

Leitura do mundo, conceito de Paulo Freire, me parece bastante adequado como chave para entrar na vastidão do “quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus. Mesmo diante dos seus infortúnios e impedimentos, Carolina faz agudas observações sobre a sua época, algumas delas surpreendentemente perenes, mostrando uma penetrante análise da sociedade brasileira: “A democracia está perdendo seus adeptos (...). E tudo que está fraco, morre um dia” (p. 39). Seu diário é um registro revelador da sua visão do mundo. 

Paulo Freire observa que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Posteriormente, com a leitura da palavra, a leitura de mundo alcança uma capacidade distinta. É isso que precisamos explorar em Quarto de despejo, no lugar de um olhar que pesquisa as “ausências”. Não há ausência alguma, o que existe é leitura de mundo de uma poetisa negra com a sua história de vida. Leitura de mundo com um declarado envolvimento emancipatório: “Os políticos sabem que sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido” (p. 39).

A leitura da palavra dotou Carolina de uma capacidade de articulação a respeito de problematização da sua vida que ultrapassa a sua própria existência através dos vínculos sociais que representa. Apesar da trajetória especialmente solitária, há uma correspondência significativa com a vivência das classes populares. Quarto de despejo é uma janela aberta à educação brasileira. A criação literária de Carolina nos oferece, em termos freirianos, uma pedagogia do oprimido.

A leitura de mundo que ela faz em Quarto de despejo tanto singulariza sua existência quanto exibe sua biografia social. O personagem da escola pública das grandes redes no Brasil é caroliniano. Todos e todas que frequentam a escola pública e muitas vezes nela não permanecem, expulsos porque a política da educação brasileira não é verdadeiramente acolhedora, apesar do trabalho de tantos educadores. A concepção da nossa escola pública não é popular, essa é a questão.

Carolina é a personagem da escola pública que precisa lutar contra todas as adversidades para nela permanecer. Contra Carolina existe o patriarcado, o racismo, o preconceito linguístico e o preconceito contra o pobre. Quarto de despejo nos mostra, ao contrário de todos os despejos, que existe a experiência. É nesse sentido que a voz de Carolina não é “única”. Pelo contrário, por isso ela desperta interesse ainda. Sua luta pela vida não foi apenas a sua sobrevivência da fome, mas a presença do existir plenamente como indivíduo da classe popular.

A leitura de mundo de Carolina é comum. É um bem comum. Como literatura é também comunicação, diálogo com a sociedade brasileira. Por isso Quarto de despejo já contém as referências que nos permitem pensar a educação como um projeto oposto à invasão cultural. Na educação pública, antes de tudo, precisamos ouvir as classes populares. Através da arte muitas vezes sabemos das vozes que não encontraram uma expressão adequada, inclusive, nas escolas.

O grande drama da escola pública é não admitir na cultura popular um saber autêntico. Negar legitimidade literária à Carolina Maria de Jesus é um gesto repetido continuamente nas escolas. Condenar, por exemplo, os funks, suas poesias e estéticas, é a mesma rejeição que Carolina sofreu. Mas não quero dizer que nada mudou. Carolina, como precursora, nos ajuda a ver melhor os desafios da educação brasileira. É possível citá-la, mostrar suas criações. Com Quarto de despejo nossas alternativas já são maiores do aquelas que ela pôde contar.

Carolina conta sobre um desejo da sua mãe: “Queria que eu estudasse para professora. Foi as contigencias da vida que lhe impossibilitou concretizar o seu sonho” (p. 48/49). Mas ela dirá ainda: “A fome também é professora” (p. 29). Há uma pedagogia que irrompe do livro e nos faz ouvir sua voz. Uma voz atual ainda, mas desencontrada das escolas. São muitos os problemas da educação brasileira, não há uma solução. Quarto de despejo, é, no entanto, o fio da meada. O desenrolar começa com personagens como Carolina.

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