Fernando Holiday contra Paulo Freire



Fernando Holiday, coordenador nacional do Movimento Brasil Livre – MBL e vereador da cidade de São Paulo, eleito pelo DEM, publicou, nos últimos dias, dois artigos sobre Paulo Freire no seu blog do MBL News: Paulo Freire, doutrinação e o fantasma do Construtivismo e De Freire a Calvino, uma resposta ao oprimido. Em outra oportunidade discuti aqui uma publicação do Miguel Nagib, coordenador nacional do Movimento Escola Sem Partido, que também escreveu contra Paulo Freire. Agora, vou me deter nos artigos do Fernando Holiday. A direita mais reacionária elegeu Paulo Freire como inimigo, mesmo após a sua partida. Querem destruir o seu legado. Por isso é importante se opor, mostrando o que significam esses ataques. 

Fernando Holiday, de pronto, diz que não pretende escrever um “artigo científico”, para tranquilizar seus leitores. Eles não correm o risco do enfado, é o que diz. No entanto, pode ser lido também como um aviso sobre a real propriedade do que irá escrever. Ou seja, não será nada suficientemente orientado pelo conhecimento da obra de Paulo Freire e correspondente crítica esclarecida. Tampouco revelará um amadurecido conhecimento da educação brasileira. O que importa é estar alinhado à campanha infame de atacar Paulo Freire sem reservas e propor para a educação nacional saída sem qualquer noção a respeito. 

Inicialmente, Fernando Holiday lembra a participação de Paulo Freire na fundação do PT e sua passagem pela gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo. Logo depois se propõe a entregar a chave do pensamento de Paulo Freire, realizando uma rápida síntese sobre o caráter político do livro Pedagogia do Oprimido. Diante da afirmação de Paulo Freire sobre a existência de interesses opostos entre opressores e oprimidos, Holiday observa o que identifica como uma suposta incoerência do “pedagogo petista”. Para Holiday, Paulo Freire acusa os opressores de dividir a sociedade, no entanto, ele mesmo, Paulo Freire, cometeria tal divisão. 

Ora, a conclusão de que existem interesses opostos nas sociedades não é uma “acusação” de Paulo Freire, mas uma constatação sociológica. Não se trata de uma narrativa criada por ele para perseguir aqueles que chama de opressores. Toda teoria crítica observa a problemática do poder, das diferenças sociais e das oposições diversas em qualquer sociedade constituída. Isso não é praticar uma divisão social, como diz Holiday. Assumir uma visão de mundo e comprometer-se com a transformação social é uma alternativa política construída a partir de desigualdades existentes, sentidas e demonstráveis. Não se trata de uma criação sem correspondência com a realidade. 

Um problema das visões de mundo mais simplórias, de baixa capacidade analítica, é negar concepções básicas da sociologia e não possuir compromisso algum em considerar fatos sociais verificáveis.  Holiday chega a considerar que o que chamam de “nós contra eles” petista tem a sua raiz na versão freiriana da fórmula oprimido x opressor. Não existe na visão de mundo de Holiday qualquer crítica social. Seu pensamento é extremamente acomodado socialmente e seu compromisso com a manutenção da sociedade capitalista como está é absoluto. A ideia de uma conscientização através da educação é negada de forma integral. Não admite de modo algum um conhecimento escolar comprometido com a transformação da realidade social. 

Portanto, para Holiday, a educação escolar serve apenas à imobilidade social, sem problematizar a quem interessa de fato essa conservação. A educação como crítica social é para ele um abuso profissional do professor. E aqui é importante observar que Paulo Freire sempre advertiu sobre a doutrinação, que sempre condenou. Os pressupostos para uma educação libertadora presumem sim uma ética, e Paulo Freire nunca deixou de fazer essa consideração. Mas Holiday não está interessado em estudar Paulo Freire e seu sistema de pensamento. O que pretende é tão somente condená-lo para afastar os riscos da sua contaminação entre educadores e a sala de aula. 

Ao encontrar em Paulo Freire o problema do poder e da emancipação, ou seja, da mudança social, Holiday já recusa a visão transformadora da educação nele existente. Aversão reacionária que o impede também de assimilar a discussão sobre os rumos da educação popular no século XX e agora, no século XXI. É assim que situa Paulo Freire no movimento construtivista para dizer que sua apropriação introduziu uma inovação deplorável: a conscientização. Além de relacionar Freire com o marxismo, sem observar que para muitos marxistas essa relação é apenas relativa ou até insuficiente, Holiday destaca a matriz escolanovista da sua concepção de educação para condenar o próprio legado crítico do construtivismo. 

Estamos agora diante de um ponto muito sensível da crítica da extrema direita hoje dirigida a Paulo Freire. Existe aí um projeto de sociedade que é adversário senão da própria modernidade, pelo menos das suas ambivalências mais progressistas! Encaixar Paulo Freire como marxista e construtivista é uma prática discursiva para situá-lo no limite do que existe de mais ameaçador a uma suposta normalidade social. Deixar-se tocar pelas ideias de Paulo Freire é comportar-se como soldado freiriano pronto para corromper os alunos através da “conscientização”. Então, da forma mais excêntrica e nonsense possível, irá indicar o reformador Calvino como um substituto de Paulo Freire na educação brasileira. 

Sim, no segundo artigo que completa a discussão de Holiday sobre Paulo Freire, do nada, podemos afirmar, ele indica João Calvino para “substituir a pedagogia do oprimido em sala de aula”. Holiday faz algumas rápidas considerações sobre o humanismo cristão de Calvino, afirma a vantagem de uma escola que preparara para a lógica capitalista, refuta a teoria da reprodução em Pierre Bourdieu e finaliza dizendo que o “monstro opressor” de Paulo Freire definitivamente não existe. Nas últimas linhas, tudo de bizarro que precede é ultrapassado pela mais abjeta fraude do pensamento. Reproduzo aqui, pois trata-se de algo intraduzível por tudo que possui de desprezível: 

"Alguns professores se acham no direito de fazer e desfazer a cabeça de seus alunos como bem entenderem soba infame bandeira de uma libertação que nunca chega. Por conta dessas loucuras, alunos se convencem que para lutar contra a 'opressão' precisam se opor radicalmente ao sistema, mesmo que para isso tenham de aderir a criminalidade. Por conta disso, em muitos morros, a referência para o aluno deixou de ser o pastor e passou a ser o traficante ou, com sorte, o maconheiro". 

A leitura dos dois artigos de Holiday me deixou indignado com a tentativa de desqualificar Paulo Freire de forma tão inconsequente, intelectualmente falando, mas, sobretudo, senti uma grande indignidade do autor, principalmente na passagem acima reproduzida. Hoje o intelectual de esquerda se depara com esse enorme desafio. É preciso analisar o que dizem seus adversários do espectro da extrema direita, principalmente quando encobrem a insuficiência analítica do que articulam politicamente mobilizando emocionalmente seus seguidores e provocando ainda seus opositores. Corremos o risco da reação transloucada também, impacientes com a própria impossibilidade de existir algum debate de ideias, para o qual fomos formados. 

A expressão intelectual de Holiday é muito fraca. Mas como nos atinge, então? Afetando nossa racionalidade. Substituir na “sala de aula” Paulo Freire já é uma consideração surreal porque a educação brasileira, definitivamente, não é freiriana. Por outro lado, propor, então, Calvino... Nossa, nada disso faz sentido de acordo com tudo que estudamos sobre a história das ideias pedagógicas e diante da própria realidade da sociedade brasileira. Mas o que precisamos entender é que a aparente demência da extrema direita funciona, concretamente, para nos lançar em território inóspito e paralisante. A idiotice é um método para nos atordoar enquanto convencem outros tantos através das tecnologias políticas do ressentimento. 

Não sei se a extrema direita brasileira de fato acredita na presença freiriana nas escolas. Se esse pessoal é muito burro ou são dissimulados. Não importa. Há uma passagem no segundo artigo do Holiday que acho reveladora: “Como rebater a Pedagogia do Oprimido teorizada por Paulo Freire e idolatrada por milhões de professores?”. Paulo Freire, idolatrado por milhões de professores... O que existe de superlativo aqui é uma traição do inconsciente. O grande medo a respeito de Paulo Freire é, na verdade, o medo dos professores, o medo que resistam, que lutem, que trabalhem contra a mentira e o engodo que representa tudo o que emergiu nas últimas eleições. 

Holiday teme que a prática da educação popular descortine o grande vazio que ele representa.


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