O pesadelo é Paulo Freire
Miguel Nagib, coordenador do movimento
Escola Sem Partido, publicou agora, no último dia 2, artigo intitulado O pesadelo de Paulo Freire, no jornal Gazeta do Povo.
Especialmente a partir de 2015, acentuou-se uma nova onda de ataques à pessoa e
ao legado intelectual de Paulo Freire. Desde os anos sessenta do século XX,
Paulo Freire é agredido por indivíduos e grupos políticos. Vejam bem, não estou
dizendo contestado, uma situação comum para qualquer intelectual influente. Ser
contradito é algo normal para qualquer pensador. No entanto, Paulo Freire faz
parte daquele grupo de intelectuais que são perseguidos, a obra é hostilizada e
a sua própria pessoa insultada.
O artigo do Miguel Nagib faz
parte de uma investida mais recente de provocações mais do que de debate
teoricamente orientado para divergir da herança de Paulo Freire. Diante do
alcance midiático dessa arremetida, mesmo considerando seu inexpressivo valor
intelectual, a universidade precisa discutir as concepções subjacentes a esse
assédio porque estamos lidando com visões de mundo que estão presentes nas
discussões atuais sobre sociedade e educação no Brasil. Ignorar essas ideias em
razão da sua ausência de fundamentos é abandonar a disputa ideológica que está
sendo travada sob o signo das “guerras culturais” e perder espaço para esse
pessoal que está tecendo um novo e perigoso horizonte político no país.
Trata-se de um breve artigo que aborda a recorrente
questão levantada pelo Escola Sem Partido, a doutrinação em sala de aula. O texto procura desmoralizar o entendimento
de que afinal toda educação não é neutra e, portanto, inescapavelmente
ideológica. Miguel Nagib admite que a
neutralidade não existe, mas afirma que existe uma má fé do militante
disfarçado de professor que utiliza essa conclusão para justificar a suposta
doutrinação que praticam. Para Miguel Nagib, o professor precisa fazer um
esforço metódico para manter sob controle a influência ideológica. Ele cita possíveis situações de
professores que utilizam as suas aulas para intervenções político-partidárias,
abusando da autoridade do professor e do poder institucional da escola.
Existe um artifício no texto que
é lembrar de Paulo Freire para relacioná-lo com o suposto mal-estar ideológico
nas escolas através de uma ficcionalização. Miguel Nagib conta-nos sobre um
sonho que teria atormentado Paulo Freire desde os seus tempos no exílio. Em uma
sala de cirurgia o médico que vai operar Paulo Freire aparece contaminado,
sujo. Paulo Freire pergunta se ele não vai se lavar e o médico responde que
seria inútil porque não existe ambiente livre de contaminação. A alegoria que
serve de pesadelo para Paulo Freire é uma demonstração cruel da falibilidade do
argumento que diz que a contaminação ideológica é insuperável.
A história não é só de mau gosto,
ela funciona de modo artificial para atingir Paulo Freire e termina por
entregar o problema principal do texto. Paulo Freire e doutrinação ideológica
nas escolas são dois elementos que Miguel Nagib tenta juntar para demostrar o
comprometimento do “Patrono da Educação Brasileira” com uma suposta má conduta frequente
no magistério. O problema maior do texto é que no lugar de identificar a
relação de necessidade entre os dois elementos, ou seja, no lugar de mostrar
como a obra e prática de Paulo Freire orientam o que poderia ser considerado um
grau falimentar de atuação dos professores hoje nas escolas, uma falência da
educação brasileira provocada por ele, Miguel Nagib conta uma história sem
nexo.
Paulo Freire não é nenhuma
entidade, um ser absoluto, proibido de ser criticado. Pelo contrário, há muita
coisa para ser interpelada na sua obra. Faz parte da sua grandeza também, um
extenso legado propício à discussão. As ideias caminham assim, enfrentando o
que foi estabelecido para se obter novos resultados, mais satisfatórios. Como
disse no início do texto, normal para a ciência isso. Criticar Paulo Freire não
pode magoar seus entusiastas. Na verdade, é assim que o pensamento de Paulo
Freire irá sobreviver à sua partida, a partir do debate a respeito do que
escreveu e orientou na prática. No entanto, no artigo escrito por Miguel Nagib
não há nada disso. Ele procura comover seus leitores com o recurso de uma
história que pretende ser exemplar ao mesmo tempo que supõe como realidade do
magistério situações selecionadas que ela narra.
Para falar de Paulo Freire com a
pretensão de ser crítico e severo sobre sua herança é indispensável abordar sua
obra e sua prática. Não é o que existe no artigo do Miguel Nagib. Em Pedagogia do oprimido, livro mais
importante de Paulo Freire, há no quarto capítulo uma seção chamada
“Manipulação”, em que observa ser uma característica da “teoria da ação
antidialógica”. À manipulação, Paulo Freire atribui um sentido de conformação e
anestesiamento das massas populares para que não pensem. Não é apenas uma
repulsa retórica que encontramos em Paulo Freire a respeito da manipulação. Ele
procura demonstrar seu significado em oposição à concepção de educação que
defende, dialógica e libertadora.
Um leitor poderia provocar que a
atenção que Paulo Freire dedica ao tema aí é uma advertência ao comportamento
exclusivo das elites dominadoras. A questão seria saber, então, se a
manipulação não poderia fazer parte do comportamento dos militantes políticos
de esquerda também. Paulo Freire não fugiu à essa questão. Em Pedagogia da esperança, livro escrito
para um reencontro com Pedagogia do oprimido, 25 anos após a sua publicação, Paulo Freire cita e critica as
figuras do “educador autoritário de esquerda” e do “militante dogmático
trabalhando numa escola”. Paulo Freire observa ainda que a “leitura do mundo”
do educador não deve ser imposta ao aluno e mais, afirma que o papel do
educador progressista é salientar que existem outras “leituras do mundo”,
diferentes e até opostas à sua.
Se percorrermos a obra de Paulo
Freire vamos extrair muitas outras passagens em que ele expõe sua concepção a
respeito da responsabilidade democrática do educador. Se existem contradições a
respeito disso, se outras passagens da sua obra ou mesmo da sua prática como
educador não condizem com essa imagem de educador democrático, necessário fazer
essa identificação e discutir seu significado. Agora, dirigir-se de forma
imprudente ao legado freireano e ser vulgar no trato da sua pessoa, isso revela
mais a respeito do caráter intelectual dos seus detratores do que contesta a
importância alcançada pelo Patrono da Educação Brasileira.
E por que atacam tanto Paulo
Freire? Isso já seria assunto para escrever outro texto mais detido sobre a
questão, mas não é difícil interpretar um dos principais motivos. Paulo Freire
sempre foi muito claro sobre sua concepção crítica da educação. A seguinte
passagem em Cartas à Guiné-Bissau, é
bastante exemplar: “Ao preocupar-me com o que conhecer, acho-me necessariamente
envolvido com o para que, com o como, com o em favor de que e de quem, com o
contra que e contra quem conhecer”. A crítica radical é um patrimônio da
esquerda inalcançável pela visão conservadora da educação. Quem defende o status quo não pode ir tão longe como foi
Paulo Freire, por isso ele é o pesadelo.
Para encerrar o meu texto, mais
uma coisa ainda. Sobre o sonho, curioso pensar que o personagem que está agora
convalescendo de uma cirurgia é o presidente da República, não é Paulo Freire. Por
que ocorreu tal imagem à Miguel Nagib? Quem se sujou e foi contaminado a
ponto de ficar irremediavelmente comprometido?
Um dos mecanismos do sonho, explica Freud, é o deslocamento. Ele permite
a substituição de uma figura (ou personagem) por outra (o). Concluam.
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