Luta de Classes


A respeito dos impasses do multiculturalismo na educação, os franceses estão levando a discussão também para a tela do cinema. É o audiovisual conversando com os cotidianos e o currículo escolar, quando diferentes atores políticos se interessam pela questão contemporânea das identidades em um debate que parece cada vez mais complexo, longe das conclusões fáceis. Ponto para o cinema francês, que tem se comportando como uma das vozes públicas do debate. Anteriormente já escrevi aqui, por exemplo, sobre os filmes O Melhor Professor da Minha Vida (2017) e O Orgulho (2017). 

Assisti agora ao filme Luta de Classes (2019), de Michel Leclerc. Antes de tudo, quero dizer que o filme é bastante engraçado, as pessoas riem bastante durante a exibição. As identidades vistas com toda a seriedade, podem parecer bem absurdas. Algumas gags no filme são provocadas assim, através do que pode aparecer como o ridículo das identidades. Aqui a comédia é um dispositivo para uma abertura: conseguir se aproximar de um tema que, na verdade, é um dos mais enraivecidos do nosso tempo. Luta de Classes nos dá uma imagem dessa alta voltagem na escola francesa. 

Há uma família protagonista: Paul (Edouard Baer), o pai, é baterista profissional, músico de uma antiga banda punk, Amadeus 77.  Sofia (Leïla Bekhti), a mãe, é uma advogada de origem árabe. Um casal de filhos: Sofia é madrasta da garota. As duas estão sempre em conflito. O garoto é Corentin (Tom Levy) e é principalmente através da sua vivência escolar que a narrativa se desenvolve. Estuda em uma escola pública que abriga cada vez mais filhos de imigrantes. Dois casais, amigos da família, tiram seus filhos da escola e matriculam em um estabelecimento privado e da Igreja Católica. Paul e Sofia ficam decepcionados em razão da visão de mundo que partilham.




Corentin terá a sua experiência escolar afetada pela repentina ausência dos amigos que pertencem a famílias culturalmente mais próximas da sua experiência social. O contato com seus outros amigos da escola, que são filhos de imigrantes, será marcado por tensões que preocupam os pais. É o caso quando chega em casa dizendo que todos na classe acreditam em Deus e que ele precisará fazê-lo também. Os pais passam a temer pelo bem-estar e integridade do filho na escola. Seu pai é mais indignado, indagando também a respeito de uma inversão de valores na escola pública republicana. 

Uma personagem bastante afetada pela presença de novos sujeitos na escola é a professora Delamarre (Baya Kasmi). Ela tem todos os receios de não ser politicamente correta no tratamento dos alunos e na busca de um modo apropriado para referir-se à identidade cultural sem ferir suscetibilidades. Adota, na verdade, uma forma ininteligível de comunicação.  O diretor da escola, Bensallah (Ramzy Bedia), em contraste, é bem direto e age sem razoabilidade pedagógica. O que vai se constituindo na narrativa do filme é a perda de referências para a escola diante da presença de novos sujeitos. 



Luta de Classes é um filme bastante interessante exatamente porque tece seus personagens em uma trama em que todos os conceitos envolvidos não parecem muito seguros para determinar os caminhos para uma sociedade multicultural realmente democrática. Há uma cena em que os sobreviventes músicos de Amadeus 77 tocam para uma plateia sem interesse, formada por imigrantes sem teto. Há uma pretensão de radicalismo político que não consegue tocá-los, quando o desejável era oferecer uma visão crítica da sociedade francesa e das suas exclusões. Perguntamos, então: Qual política influencia hoje os excluídos? 

Os personagens de Luta de Classes vivem em uma situação cética devido aos desvios pós-modernos que sofrem. Sofia, no trabalho, recebe uma promoção porque parece interessante para o escritório uma advogada de origem árabe atuando em algumas causas. A situação é desconcertante para ela. Paulo tem um trabalho intermitente e por isso é quem está mais presente na escola do filho. Ao lado das mães dos outros alunos, vive com desconforto a situação de gênero “invertida”. Luta de Classes provoca um pensamento sobre o próprio destino das instituições formadas pelo tripé do mundo moderno, inclusive a escola: o eurocentrismo, a branquidade e o falocentrismo. 

Estamos diante de uma nova formação cultural, globalizada, que precisa de conceitos e práticas também renovados para enfrentar seus desafios. O próprio título do filme remete a uma ambiguidade: Qual luta de classes? Paul, de forma imprevisível e aflitiva, conhece o ex-namorado de Sofia. Ele é pai de uma menina da mesma turma de Corentin. Uma família muçulmana. Ele revela para Paul que, sob condições modestas de existência, não tem alternativas à escola pública.  Por princípio político, tampouco Paul gostaria de deixar a escola pública. Quais sentidos poderiam aproximar de modo mais garantido as diferenças, saindo dos impasses que agora abrigam o encontro cultural? 


Quando deixei o cinema, com as questões provocadas pelo filme, um episódio interessante ocorreu, que vale a pena expor também, como uma experiência do cinema em uma época que se quer impor o “pensamento único”. Era o domingo da redação do ENEM. Ao abrir o celular, vi que no Facebook já se discutia o tema, recebido com polêmica, sobre democratizar o acesso ao cinema. Sem vacilar admiti que era um tema importante, mas vi que algumas pessoas receberam com desconfiança. Não existem outras urgências? 

O cinema é uma das vozes do mundo contemporâneo. Ele também nos fala, mas seu alcance é bastante seletivo. Nas salas de cinema dos shoppings, assistimos no Brasil todo, basicamente, o mesmo filme. Por outro lado, para assistir Luta de Classes, precisei me deslocar entre a zona norte e a zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Minhas alunas de Pedagogia, na UFRRJ, sequer vão ter notícias do filme, uma obra audiovisual muito interessante para as nossas aulas de Teoria do Currículo e Estudos Culturais. A luta de classes ainda é um conceito válido, mas precisamos pensar se sabemos reconhecer todos os seus territórios – essa é a questão contemporânea que nos coloca à prova.   
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Os fotogramas que utilizei foram extraídos do trailer do filme.

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Título: Luta de Classes 
Título Original: La Lutte des Classes 
Direção: Michel Leclerc 
País: França 
Ano: 2019





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