Paulo Freire depois de junho de 2013
Em agosto de 2016, em uma entrevista para a revista Caros Amigos,
às vésperas de sofrer definitivamente o impeachment, ao ser perguntada sobre
o marco de junho de 2013 para a virada direitista no país, a presidenta Dilma
Rousseff (2016, p. 16) foi bastante cautelosa: “Não acho que 2013 seja um
antecedente disto que está acontecendo hoje”. Foi a primeira pergunta de uma
longa entrevista. Registra-se a angústia que as manifestações de 2013 causaram nos
anos seguintes, a forte suspeita que tudo foi obra de uma manipulação que dirigiu
manifestantes desprevenidos. Apesar da alta ansiedade do instante político,
Dilma manteve-se serena, sem negar, contudo, que toda a inquietação dos
protestos tenha sido lida e apropriada pela direita.
O significado de junho 2013 constitui um debate que ainda não terminou, contando com uma bibliografia já significativa e também documentário para o cinema. Apesar da obra aberta que ainda é, junho de 2013 deu forma a uma linha divisória, a uma referência temporal para a inteligibilidade da vida política no decorrer da década e até agora, inclusive. E Paulo Freire, também pode ser reexaminado a partir de junho de 2013? Ou melhor, seu legado também atravessou a fronteira dos acontecimentos e elementos que fazem parte de junho de 2013, de tal modo que ler Paulo Freire agora é mexer no vespeiro que o tema precipita? Minha resposta é afirmativa, Paulo Freire não se descola mais de junho de 2013.[1]
Do mesmo modo, Paulo Freire não escapou ao golpe civil-militar de 1964. Não há como estudar Paulo Freire ignorando os fios que entrelaçam sua biografia com a história social do país e tecem o significado adquirido por sua obra. Em 1963, Paulo Freire projetou-se com seu trabalho em campanhas de alfabetização de adultos e foi convidado pelo presidente, João Goulart, para liderar um esforço nacional no ano seguinte. Contudo, precisou exilar-se para escapar das perseguições que sofreu já no início do novo regime político. Agora, mesmo após a sua morte, Paulo Freire é posto diante de acontecimentos que se sobrepõem novamente ao destino particular do indivíduo. Mas como Paulo Freire entrou em junho de 2013?
Desde o momento em que Paulo Freire ganhou repercussão nacional, através da sua prática de alfabetização nas campanhas que participou, sobretudo a mais notória delas, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, que é acusado de “comunista”. Em Paulo Freire: uma história de vida, Ana Maria Araújo Freire (2017, p. 153 et seq.) lembra uma série de publicações, ainda no ano de 1963, no jornal O Estado de S. Paulo, em que o método de alfabetização desenvolvido por Paulo Freire é visto como “doutrinação comunista”, “comunizante” e até “nazista”. Portanto, a tentativa de associar Paulo Freire a uma identidade política sensível a imagem de propaganda ideológica, sectarismo e extremismo não é algo novo.
A perseguição política movida contra Paulo Freire sempre acompanhou sua trajetória. A questão agora é saber por que persiste mesmo após a sua morte e como acontece. Minha compreensão é de que a persistência de problemas agudos de desigualdade na educação brasileira mantém atual a questão da educação popular e Paulo Freire como sua maior referência política e teórica. Vale lembrar, inclusive, que a Lei No. 12.612, de 13 de abril de 2012, declarou Paulo Freire patrono da educação brasileira, um reconhecimento que é agora contestado insistentemente por setores mais reacionários da vida pública nacional. A legitimidade adquirida por Paulo Freire nos últimos anos passou a ser abertamente confrontada.
Junho de 2013 nos ajuda a entender o que delinearei a seguir. Se olharmos atentamente para os registros fotográficos das manifestações, em todo o país, naquele mês, observamos que a educação foi uma das vozes nas ruas. Não foi apenas pelos vinte centavos, vale lembrar. Muitas demandas por uma vida mais democrática nas cidades estiveram em pauta e “mais educação” foi uma delas. A luta por uma educação pública que atenda às necessidades das classes populares é uma pauta permanente da sociedade brasileira, até ser resolvida, tal a falta de decisão política nessa direção. No entanto, junho de 2013 foi palco de contestações fora do eixo tradicional das lutas, por isso a dificuldade de uma definição mais consolidada sobre o que aconteceu.
Uma das caraterísticas mais marcantes de junho de 2013 foi a articulação entre as ruas e as redes (SILVA, 2014), que naquelas manifestações contavam também como novos sujeitos políticos, uma extrema-direita que expôs mais abertamente sua visão de mundo e logo querendo tornar-se também governo, o que foi possível apenas cinco anos depois, em 2018, com a ascensão do populismo de direita também no Brasil. Desde de junho de 2013 o conflito político adquire um cenário novo e um vocabulário próprio: fake news, pós-verdade, disputa de narrativas, violência digital, negacionismo, entre outros termos. O que acontece com Paulo Freire é que, mesmo após a sua morte, ele será inserido aí, nas novas formas de fazer política.
Em uma manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff, em Brasília, em 15 de março de 2015, a imagem de uma faixa contra Paulo Freire no mesmo dia viralizou como notícia nas redes sociais. A faixa continha duas frases e um desenho: “Chega de doutrinação marxista”, “Basta de Paulo Freire” e a icônica imagem da foice com martelo, mas com o sinal de interdição, como nas placas de proibição no trânsito. A mensagem reúne todos os elementos presentes nas disputas de narrativas que hoje caracterizam a manifestação da extrema-direita, como a mentira e o caráter acusatório da polêmica. Basta dizer que a educação brasileira não é freireana.
E o que vimos a seguir não escapa da mesma tônica, acentuada pela máquina de ódio contra Paulo Freire. Um exemplo é o perfil @SPD_33, Saída Pela Direita, bolsonarista, no Twitter. No dia 2 de agosto de 2018, às vésperas do 1º turno da eleição para presidente, publicou uma imagem que mostrava uma cena que pretende ser de “vandalismo”, manifestantes arrombando a porta de vidro do que pode ser uma instituição bancária. Na própria imagem foi inserida uma mensagem “explicativa”: “Método Paulo Freire”. Ainda no texto do twitter: “Método Paulo Freire não é Educação, é pura Doutrinação”. A página possui quase 38 mil seguidores. Uma campanha que não é “desinformada”, mas caluniosa, contra Paulo Freire.
Os exemplos se multiplicam. Outro twitte, do olavista Flavio Morgenstern (Flavio Azambuja Martins), @flaviomorgen, no dia 12 de agosto, também às vésperas da eleição, diz o seguinte: “Educação só se resolve queimando livro de Paulo Freire em praça pública de noite, com tochas e cerimônias de malhar seu boneco”. A emulação nazista é transparente. A mensagem evoca o episódio de 1933 conhecido como a queima de livros na Alemanha Nazista, durante a ascensão de Adolf Hitler. Lembra também os linchamentos da Ku Klux Klan, “com tochas e cerimônias”. A manifestação de ódio contra Paulo Freire conta com muitos outros exemplares de mensagens e produções de memes. Não é uma ocorrência minúscula e sem importância.
Agora, já no final de 2020, Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, em um twitte também, @sergiodireita1, inseriu Paulo Freire na campanha que move contra a educação antirracista (sim, o presidente da Fundação Palmares é um negacionista do racismo...): “Ensinam pretos a defender seu ‘cabelo afro’, em vez da educação livre de doutrinação e do Método Paulo Freire”. O (inacreditável) assunto do twitte foi precipitadamente associado ao “Método Paulo Freire”, mas por quê? A associação que o próprio Sergio Camargo faz, entre educação antirracista e Paulo Freire, apesar de apressada, é um reconhecimento do caráter assumidamente transformador da prática freireana, portanto, é autoexplicativa da inquietação que causa.
No entanto, existe algo mais, presente em toda essa cruzada contra Paulo Freire, entre as ruas e as redes, desde junho de 2013, que não pode nos escapar. Uma especificidade, certamente. Como já desenvolvi nos artigos sobre Abraham Weintraub e Milton Ribeiro, os pronunciamentos dos populistas de direita buscam sempre um efeito de “paralisia”, um estado de embasbacamento, seguido automaticamente de uma raiva incontida, de um revide. O resultado, calculado, é manter um engajamento nas redes sociais que cristaliza posições antagônicas, uma polarização que serve de alimento para a dieta política irrazoável do extremismo. No caso, um “Método anti-Paulo Freire”.
Ataca-se Paulo Freire, contra Paulo Freire, mas também a favor da propagação das ideias e práticas neoliberais e populistas de direita. Ao atacar Paulo Freire, o que o seu legado significa para a luta permanente por “mais educação”, pública e popular, é cultivar também mobilização de um ativismo neoliberal e antirrepublicano, autoritário e fascista, que exige a prontidão também permanente de agitadores que se organizam para uma militância que se dá entre as ruas e as redes na propagação dos seus valores. Uma estruturação que conta ainda com os indiferentes, ou seja, aqueles que não aparecem tão engajados, mas tampouco contestam o caráter autoritário da sociedade brasileira, agora abertamente defendido como desejável.
Chamar Paulo Freire para a máquina de ódio das redes sociais (MELLO, 2020) ocorre, então, em razão da grandeza ele que adquiriu, mas para demarcar um território político que o populismo de direita reservou para si, liderar um projeto arcaico e neoliberal, acentuadamente patriarcal, racista e misógino, portanto, ultracapitalista, com o qual pretende disputar os rumos da sociedade brasileira. A prática é a de que perseguindo Paulo Freire ganha-se também visibilidade e identificação, divide com maior nitidez o campo da política e o faz com uma propaganda ideológica que ganha adeptos enquanto mantém acesa a chama da ira – que nunca deixa de excitar seguidores. Que fazer?
REFERÊNCIAS
FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. 2ª ed. rev. e atualizada. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
MELLO, Patrícia Campos. A máquina de ódio: Notas de uma repórter sobre fake News e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
ROUSSEFF, Dilma. O mapa do golpe. [Entrevista concedida a] Aray Nabuco, Lúcia Rodrigues, Nina Fideles e Rogério Tomaz Jr. Caros Amigos, São Paulo, n. 233, p. 15-21, ago. 2016.
SILVA, Regina Helena Alves da (org.). Ruas e redes: dinâmicas dos protestosBR. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
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Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um
mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante
a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências
mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a
educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com
personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão
postos agora.
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Sou fã de Freire e também de Arsitoteles. A cada "conversa", agora também via artigos nesse blog, posso aprender ainda mais a enxergar o mundo pelas lentes freirianas devidamente implicadas em seu texto. Obrigado professor.
ResponderExcluirObrigado pela leitura!
ResponderExcluirProfessor, grata pela reflexão que sua obra me fez. Estou na expectativa dos próximos.
ResponderExcluirOi, Djanna. Obrigado pela leitura!
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