A conclusão faltante


  

No dia 16 de julho de 2021 contávamos 540 mil mortes por Covid-19 no Brasil. Na minha cidade, Rio de Janeiro, já existe um cronograma de vacinação que incluirá adolescentes de até 12 anos em setembro. Em novembro toda a população até essa idade terá terminado o esquema vacinal completo (até duas doses) e em dezembro pessoas com mais de 60 anos já estariam recebendo a dose de reforço. Apesar dos números assustadores alcançados pela pandemia no país, parece que até o final do ano a imunização termina e a pandemia poderá atingir o seu fim ou pelo menos estará controlada em números estatisticamente assimiláveis diante do que ocorreu em termos de colapso hospitalar e óbitos até aqui.

Mesmo assim, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis advertiu, em um artigo publicado no dia 18 de julho no jornal Correio Brasiliense, que a pandemia está longe de acabar. Nicolelis preocupa-se com a transmissibilidade do vírus da chamada variante Delta e o maior relaxamento das medidas de controle, que já se encontra em um patamar bem insuficiente diante do tamanho da crise sanitária ainda existente. O descuido com o controle da circulação do vírus não é uma exclusividade nacional. Na Inglaterra, o #FreedomDay foi marcado para o dia 19 de julho, quando a maioria das restrições seriam removidas. No entanto, nos dias anteriores foi registrado um aumento de casos e as preocupações não foram superadas.

Desde o início da pandemia assistimos a uma pressa forçada pela normalidade, quando o princípio de realidade nos é apresentado até agora em dígitos elevados de casos e de óbitos. A pandemia ainda não terminou, mas é como se não suportássemos a sua duração e nos adiantássemos no tempo, apesar da sua “conclusão faltante”. Hoje, dia 26 de julho, recebi a minha segunda dose da vacina. A Clínica da Família estava com a sua frequência reduzida. No último dia 23, a aplicação da primeira dose foi suspensa porque faltavam imunizantes. O calendário de vacinação será retomado no dia 28. A pressa pela normalidade precisa esperar pela vacina também. Gostaríamos de correr, mas a própria pandemia não ser curva à nossa aceleração.

A manifestação por um “novo normal”, uma sociedade que não pode experimentar “um outro tempo”, isto é, que normalizou sua forma mais totalitária, exclusivamente de fruição capitalista, nós já estávamos nela, não foi declarada pela pandemia. É a sociedade do cansaço, quando “o tempo perde todo o ritmo”, diz Byung-Chul Han (2021, p. 22), em Fechar os olhos: em busca de um outro tempo. O sujeito do desempenho não conclui, ele avança, como no caso do garoto de 11 anos “formado em física”. Ele “aproveitou” a pandemia para fazer em um ano uma graduação que seria normalmente cursada em três. Não há nada de educacional aí, em um sentido válido. Qual formação adquirida senão créditos acadêmicos em quantidade?

Byung-Chul Han é um observador penetrante das subjetividades apresentadas no estágio mais avançado do capitalismo. Fechar os olhos: em busca de um outro tempo é um pequeno volume que foi publicado originalmente na Alemanha, em 2013. A edição brasileira é de 2021. Detenho-me aqui principalmente na ideia de “conclusão faltante”, que me parece irrecusável de ser notada agora, diante da pandemia, este episódio de escala mundial ainda sem saída segura à vista, apesar dos avanços (irregulares) com a vacinação e as medidas de distanciamento social adotadas, com maior ou menor rigidez, dependendo dos países e de escalas no tempo. Viver o tempo sem duração, portanto, sem conclusão, é uma conformidade que precisamos reagir.

Um anseio cercava o acontecimento único que era esperar uma carta. Hoje, no entanto, toda comunicação escrita é instantânea e múltipla. Não faz muito tempo limitava-se praticamente à conferência do nosso e-mail. A ubiquidade da internet através dos aparelhos celulares aproximou ainda mais os contatos e ainda nos inscrevemos em incontáveis newsletters. Uma notificação avisa sobre uma nova mensagem na nossa caixa postal e mais além, no Facebook, no Instagram e outras redes sociais. Com o WhatsApp somos até monitorados, se a mensagem chegou, foi lida ou se estamos invisíveis, o que nos mantém em suspeição permanente. A comunicação agora está aquém da nossa capacidade de corresponder. 

Sem conseguir interromper o fluxo de registros que nos alcançam através de um número sem fim de mídias, dispositivos e aplicativos de mensagens, uma ligação contínua nos mantém ativados full time à produção de subjetividades capitalistas. Como adverte Byung-Chul Han (ibidem, p. 28), “o tempo, como uma avalanche, lança-se adiante, porque não tem mais uma parada”. O engajamento sem parada na internet é um entorpecente para algo que subjaz a contemporaneidade, a imposição do desempenho. “O sujeito do desempenho”, diz Byung-Chul Han (ibidem, p. 30), “é incapaz de chegar a uma conclusão. Ele se despedaça sob a coação de sempre ter de produzir mais desempenho”. 

No caso do meu trabalho, na universidade, o “desempenho” não é observado, sobretudo, de acordo com o alcance transformador das suas práticas, em um mundo exigente de mudanças.  Recomendável mostrar alguma sensibilidade social e preocupação com as diferenças, é verdade. É uma performance obrigatória. Mas é o desempenho traduzido em uma produtividade somatória e artificial que (des)organiza a nossa jornada diária de trabalho. Para saber, apenas preste atenção nas conversas. A carreira é uma escalada por editais, eventos e qualis, que nunca se concluem porque são contados sem fim – uma adição competitiva e egocêntrica. Um calendário de realizações centradas no sujeito do desempenho acadêmico, esgotado pelo intangível da produtividade capitalista.

É importante guardar a diferença entre a concepção de Paulo Freire (2005, p. 83) sobre os homens como “seres inacabados, inconclusos”, que nos fala em Pedagogia do oprimido, da “conclusão faltante” apontada por Byung-Chul Han (2021, p. 21) como uma característica da sociedade do cansaço. Quando Paulo Freire atenta para a inclusão do ser, fundamento da antropologia que orienta seu pensamento educacional, é para desenvolver o conceito nuclear de ser mais. Aqui trata-se de um problema referido a educação como criação e estética. O homem transforma-se, é ontológico para Paulo Freire. Já Para Byung-Chul Han, a conclusão faltante é o esgotamento do sujeito que sofre com a ausência de sentido – sem criação, portanto.

Quando assistimos vários episódios de uma minissérie, um após o outro, ininterruptamente, é maratonar que se chama? A maratona como prova atlética é uma modalidade estabelecida a partir da lenda grega do soldado Fidípedes que, para levar uma mensagem, corre até Atenas e morre de exaustão para cumprir sua missão. “Maratonar”, uma conclusão, mas até a morte, hoje se transformou em um ideal para a audiência das mensagens audiovisuais, que agora podem ser absorvidas seletiva e freneticamente. As tecnologias digitais permitem isso. Depois são comentadas nas redes sociais e antes que se firme sua apreciação, guiamo-nos para outras minisséries e recomeçamos a maratona audiovisual, até a depressão.

Ao tentar acessar meu currículo Lattes hoje pela manhã vi que estava fora do ar a página correspondente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq. Atualizar o Lattes é maratonar também, sem nunca cruzar a linha de chegada. Periodicamente nos ocupamos em incluir tudo que for possível no Lattes com a esperança de que ele não nos falte na hora de precisar mostrar quem somos. Agora eu não sei como vai ser, muitos pesquisadores estão preocupados com a indisponibilidade do sistema, será que os dados estão salvos? A sensação é a de que a Ciência brasileira e a identidade dos seus construtores podem desaparecer, assim mesmo, do nada.

Existe uma certa aflição diante da interrogação sobre a virtual necessidade de preencher o Lattes todo novamente. Impraticável, naturalmente. A angústia é imaginar que toda uma vida está vulnerável à “instabilidade do sistema”. Pausa. A instabilidade do sistema é o “novo normal” do capitalismo tardio, na verdade. A pandemia do Lattes e o currículo vitae do vírus fazem parte de uma mesma realidade que não se conclui e existe apenas como sociedade do cansaço. Só os inúteis não correm o risco permanente de perder o Lattes. “(...) As coisas inúteis e os/ homens inúteis/ se guardam no abandono./ Os homens no seu próprio abandono./ E as coisas inúteis ficam para a poesia”, vamos ler em Manoel de Barros (2010, p. 465). Ficar para a poesia é a conclusão faltante.

REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: em busca de outro tempo. Petrópolis: Vozes, 2021. 

*

 Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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