Educar com a mídia na pandemia?

Educar com a mídia: novos diálogos sobre educação, publicado em 1984, é um dos “livros falados” do Paulo Freire com Sérgio Guimarães. Originalmente, o livro foi publicado com o título Sobre educação: diálogos II. A mudança do título ocorre na edição de 2011, quando a questão dos usos dos meios de comunicação na educação já havia adquirido uma visibilidade maior e agora, quase 40 anos após a sua primeira publicação, constitui um tema incontornável, durante a pandemia. O novo nome da obra praticamente atualiza seu conteúdo, talvez já esquecido pelo tempo. O fato é que as tecnologias estão ainda mais desenvolvidas para usos educacionais e os conceitos também, mais associados às tecnologias digitais.

Lá se vão cem anos do nascimento de Paulo Freire, que acontece em meio a uma pandemia viral. Estamos a perguntar na data comemorativa: Paulo Freire teria alguma coisa a nos dizer, de mais específico, sobre os desafios da educação popular e a da comunicação durante pandemia da Covid-19?[1] Entre os textos anteriores, abordei também algumas questões mais amplas possíveis de abordar com Paulo Freire agora, mas será que poderíamos falar em “educar com a mídia na pandemia”, acompanhando a discussão que fez em Educar com a mídia? De todo modo, importante dizer que não devemos transmitir para Paulo Freire nossas responsabilidades, não é ele que poderá nos dizer, como um critério de autoridade, o que fazer agora. O risco é por nossa conta.

Com a ressalva sobre o que nos pertence, intransferível para qualquer autor ou autora que não vivenciou as nossas urgências, naturalmente, não há problema algum em conversar com a obra de quem quer que seja. Desejável, até, quando contribui para pensarmos nossos impasses, sobretudo. Acredito que encontramos em Educar com a mídia uma interlocução válida, apesar da relativa distância que nos separa no tempo da publicação original. Mas acredito também que qualquer abordagem com consequências práticas sobre a educação, sobretudo, pública e popular, não pode ser feita sem a democratização da própria discussão. Freireanamente falando, deve ser realizada ouvindo e decidindo com todos os/as interessados/as.

Portanto, não se trata de encontrar em Paulo Freire uma voz para ações arbitrárias. Logo no início da conversa gravada com Sérgio Guimarães, Paulo Freire (2011, p. 31) irá dizer: “uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ele não pertencer a seu tempo”. Mas o que significa “pertencer a seu tempo” agora, no capitalismo tardio e durante uma pandemia? Assumindo que a resposta precisa ser construída com as classes populares – e não para elas – observando suas demandas e autonomia, o trabalho acadêmico é o da pesquisa e formulação, mas não de produção de verdades absolutas. Quem escreve a partir da universidade precisa praticar um observatório do poder da sua própria palavra, quão ela é ou não democrática.

Educar com mídia acabou por adquirir uma importância insuspeita a respeito da sua fortuna. É um livro que vem para o primeiro plano entre aquelas leituras que poderiam ser conhecidas pelos estudantes de Pedagogia ou das licenciaturas agora, além dos próprios docentes da área de educação. Sobretudo, porque Paulo Freire analisa de modo bastante razoável a existência dos meios de comunicação que poderiam e devem ser usados na educação, mas sem abrir mão da criticidade. Já no final da conversa, Paulo Freire (ibidem, p. 122) não vacila para dizer, “não sou contra o uso dos computadores” e repete a afirmação sobre pertencer a seu tempo. Mas não irá dizer isso sem advertir sobre o interesse econômico da “penetração da informática nas escolas” (ibidem).

Eu destacaria em Educar com a mídia, antes de tudo, seu amadurecimento político como uma contribuição à educação em uma época – início da década de 1980 – em que as criações e usos das tecnologias nos cotidianos está em aceleração, mas hoje alcança um ponto que Paulo Freire não chegou a conhecer, quando partiu, em 1997. Paulo Freire consegue fazer uma discussão bastante competente para a época, referindo-se inclusive a experiências pedagógicas que podem ser perfeitamente desenvolvidas hoje e parecem corresponder, algumas vezes, às nossas novidades. A narrativa, por exemplo, sobre sua participação em um evento na Austrália, em meados da década de 1970, de uma transmissão em circuito fechado de TV lembra até as lives em um canal do YouTube.

Aliás, uma preocupação que aparece na conversa é a respeito da unidirecionalidade dos meios de comunicação de massa, que Paulo Freire até relativiza. Em uma abordagem muito plástica das mídias existentes à época, Paulo Freire (ibidem, p. 32/33) propõe “usar a televisão com ida e volta”, integrada ao uso também do telefone. O que percebemos do Paulo Freire sobre o uso dos meios de comunicação, é não apenas a admissão da sua legitimidade pedagógica, que ele transmite através de muitos exemplos que oferece, mas também uma imaginação sobre as tecnologias disponíveis e seu desempenho mais eficiente, considerando sua concepção dialógica da educação.

Não há, em Educar com a mídia, uma visão entusiasmada dos meios à disposição que não seja, na verdade, uma abordagem sobre a comunicação. Isto é muito importante diante da preocupação, hoje compartilhada por muitos, de uma liquidação do humano em favor das tecnologias, se usadas na educação. A abordagem do Paulo Freire em Educar com a mídia não foge da sua antropologia da educação. O problema que dirige o uso das mídias é a comunicação e consequente realização do humano na cultura, situação particular à existência humana. Não há em Educar com a mídia discurso enfático sobre a mídia, mas sobre a comunicação humana. A mídia é o meio humanamente criado.

O problema do humano em Paulo Freire está em primeiro plano. Não há fetiche tecnológico. Entre as passagens mais contemporâneas da obra, inclusive, é quando Paulo Freire fala-nos dos “recados através dos muros” (ibidem, p. 51) como uma pedagogia legítima, quando defende um “espaço de liberdade curricular” (ibidem). Um Paulo Freire pichador, vamos assim dizer, em favor da criação na comunicação. Paulo Freire (ibidem, p. 81) fala-nos também dos muros na cidade de Santiago, no Chile, na época do presidente Salvador Allende, para dizer: “uma cidade pintada, uma cidade artisticamente trabalhada...”. Não foi uma observação lateral, mas antes um anúncio da fronteira do seu pensamento educacional.

Quando discute mídias, Paulo Freire pensa ainda, além da comunicação, também na arte e na fruição estética. Lembrando algo que havia visto, próximo à própria casa em Genebra, na Suíça, Paulo Freire conta-nos de um “tunelzinho todo pintado por crianças” (ibidem p. 77), para depois prosseguir com a pergunta: “Por que não estimular o gosto da expressão plástica da criança?” Tanto quanto em outras obras, aqui o problema da estética também aparece, mas considerando que estamos em um campo – dos meios de comunicação – em que a presença do interesse econômico é marcante, estética é ainda uma prática do poder. Paulo Freire (ibidem, p. 33/34), chama a atenção para “toda a preocupação com o estético”, “a intenção que se servia do estético para manipular”.

A comunicação desenvolvida com as mídias massivas, principalmente, é ideológica e se veste, se estetiza, para nos dirigir, se possível. Ou seja, uma coisa é o desenvolvimento da expressão artística para uma educação libertadora, nos termos de Paulo Freire, outra coisa é o uso da experiência estética através dos meios de comunicação para embaçar a nossa leitura do mundo, conceito que aparece em A importância do ato de ler, publicado em 1982, e em Educar com a mídia, novamente. Todos os estudantes da obra de Paulo Freire conhecem bem o par de conceitos leitura do mundo e leitura da palavra. No entanto, há uma novidade agora.

Sérgio Guimarães foi um privilegiado interlocutor de Paulo Freire. Conto pelo menos sete obras que publicaram juntos. No caso de Educar com a mídia há uma nota importante. Sérgio Guimarães, além da habilitação para o magistério, cursou também Comunicação Social. Então, sua participação na conversa com Paulo Freire qualifica muito a troca de ideias. Em um dado momento, quando Paulo Freire (ibidem, p. 73) fala de uma experiência pedagógica com o uso do gravador como “leitura do mundo”, Sergio Guimarães devolve com “gravação do mundo”, o que Paulo Freire (ibidem, p. 74) passa a adotar imediatamente e depois ainda irá dizer também, a respeito do uso de máquinas fotográficas, “fotografia do mundo”.

Paulo Freire (ibidem, p. 66) não hesita para dizer que “mesmo quando não venho tratando desses meios de comunicação em trabalhos meus anteriores (...), eu os considero, por exemplo, dentro do horizonte do conhecimento que venho desenvolvendo nos meus trabalhos sobre educação”. Paulo Freire (ibidem, p. 67) lembra ainda: “inclusive, usei meios audiovisuais na alfabetização”. Mesmo que não tenha se dedicado particularmente ao tema dos meios de comunicação na educação, Paulo Freire considerava-os também dentro do seu sistema de pensamento e quando teve a oportunidade de discutir mais extensamente o assunto, ficamos até surpresos com a sua imaginação, o que, a propósito, está muito claro em Educar com a mídia. Hoje, trata-se de um livro incontornável para os seus leitores.

Pessoalmente, entendo que diante da situação de risco que constitui o próprio neoliberalismo, educar com as mídias faz parte da própria luta e como tal, luta-se pela autonomia dos debaixo, sempre. Paulo Freire (ibidem, p. 97) relaciona os usos das mídias com o seu próprio método, propondo que as suas produções sejam usadas para uma aquisição transformada da “leitura da realidade”, através do mesmo jogo de codificações e decodificações que dele fazem parte. Portanto, Paulo Freire concebe os usos das mídias na educação coerente com a sua concepção de educação conscientizadora, de leitura do mundo desdobrada e crítica. Então, para ele, trata-se de continuar praticando uma educação libertadora, à altura do seu tempo. 

Mas Paulo Freire estava consciente dos riscos dos usos sem autonomia das mídias na educação, ou seja, concentrados nas mãos dos mais interessados em subtrair da sua ampla utilização na educação escolar vantagens econômicas e para a classe social dominante. Está claro como era uma questão complexa para ele, nas duas últimas década do século XX. Hoje tampouco encontramos menor complexidade para analisarmos os nossos impasses, honestamente falando. Mas o problema não é de uma suposta natureza da educação senão sobre o problema do poder e da luta hoje. Não parece existir alguma rota política sem risco agora. O risco não é evitável, nem enterrando a cabeça embaixo da terra.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Educar com a mídia: novos diálogos sobre educação. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

*

Para o projeto Paulo Freire e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia a ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19, abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

PUBLICAÇÕES ANTERIORES

Estarei preparando a tua chegada

Qual o currículo da pandemia?

A pedagogia da autonomia e o desenvolvimento do protagonismo docente e discente

Maria Firmina dos Reis

Paulo Freire depois de junho de 2013

Em tempos de distanciamento social, à procura de Paulo Freire

Milton Ribeiro, novo ministro da guerra cultural bolsonarista

Facilitador/a x coordenador/a de debates: Qual o lugar do/a professor/a durante a pandemia da Covid-19?

Esse vírus está discriminando a humanidade

Educação em emergência epidemiológica: Um olhar através de três conceitos de Paulo Freire

Para ser um ser no mundo

Excesso de positividade

Em louvor da sombra

Qual o vírus mental do ministro Weintraub? Como se proteger dele?

____________________________

 [1] Texto escrito para a minha participação no painel "Paulo Freire e educar com a mídia na pandemia" durante o International Forum on Global South Studies, organizado pela Universität Tübingen, na Alemanha, em 9 de julho de 2021.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kiriku e a Feiticeira

Carregadoras de Sonhos

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho