Uma recordação escolar com uma turma da 6ª série e Mano Brown


             Extrato do Memorial que estou escrevendo para a minha promoção a Professor Titular da UFRRJ.

 Vou contar uma história que reproduzi apenas parcialmente na minha tese (BERINO, 2007, p. 13) porque, de modo até impensável, somente muitos anos depois ela teve o seu fim.

Em 1997, quatro anos após ter começado a lecionar na rede municipal do Rio de Janeiro, eu já vivia muitas dúvidas sobre o meu ensino como professor de História na escola pública. Percebia que meus alunos e alunas não demostravam muito interesse pelas aulas. Sentia uma frustração, mas também uma inquietação propícia à experimentação pedagógica. Curiosamente, estava lotado em uma escola, a E. M. Ministro Orosimbo Nonato, que é próxima à minha residência atual. Na época, ao terminar a minha jornada de trabalho, seguia para o ponto de ônibus na rua em que moro hoje, em Del Castilho. A escola fica em Heliópolis, um bairro adjacente. Só agora, quando desperto algumas recordações, é que percebo que o destino já havia me feito retornar à escola, antes da ocasião de um memorial. Saindo do meu condomínio, precisaria de apenas alguns poucos minutos para revê-la, o que de verdade nunca fiz, mas que alguns alunos e alunas da época fizeram em meu lugar, procurando-me no Facebook. Possuo uma foto impressa em que apareço lecionando em uma escola e no verso está anotado “95 seu Ari”. Não me recordo como a foto chegou às minhas mãos e também não tenho certeza de que se trata da Orosimbo Nonato. O episódio que vou narrar aconteceu com uma turma da 6ª série[1]. Páginas atrás eu me referi ao ensino de Antropologia da Educação em uma faculdade privada. Foi na mesma época. É uma associação importante da minha recordação aqui porque faz parte do contexto mais amplo que me desafiava a buscar alguma compreensão pedagógica para as dificuldades do meu ensino. Minha abertura para “o outro” – que para as minhas alunas da faculdade parecia até um chiste da minha performance na sala de aula – me levou à descoberta do hip hop e de seus artistas. No mesmo ano os Racionais Mc’s lançaram Sobrevivendo no inferno, disco que seria uma das mais importantes obras da música popular brasileira contemporânea. Apostei na compra de um som portátil com tocador de CD como recurso pedagógico para as minhas aulas. Precisaria incluir um elemento didático autêntico, que fizesse sentido para os meus alunos e alunas, na expectativa de mobilizar uma participação maior.

O que se seguiu foi, sim, em dois tempos, uma lição autêntica, para mim, principalmente. A turma até gostou, mas depois de ouvirem uma música dos Racionais que havia selecionado para mostrar, ocorreu algo desconcertante, que fugiu ao meu planejamento. Alguns alunos me pediram para mostrar uma música também, de outro artista, Gabriel, o Pensador. Assim, começamos a ouvir Cachimbo da Paz. Entusiasmados, com muito gestual, cantavam também: “(Maresia) índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça”.[2] Fiquei preocupado, existia uma ronda da Guarda Municipal com eventual presença até dentro da própria escola. Se ouvissem a “aula cantada”, como entenderiam o que estava acontecendo na sala? E a diretora, quando soubesse, como reagiria? Fiquei tenso com a situação. Naquele mesmo dia analisei o ocorrido e entendi que, apesar da minha boa vontade pedagógica, a escolha dos Racionais foi minha, não deles. Eu queria mostrar o que julgava mais “educativo”, segundo a minha concepção de educação e cultura. Pessoalmente, não gostava de Gabriel, o Pensador, porque nem via nele a mesma relevância e identidade que atribuía aos Racionais. Compreendi naquele dia que “educação multicultural” não é uma doação iluminista. Na verdade, eu não estava atento às vozes dos meus jovens alunos e alunas. Mostrar Racionais até foi bacana, eles já conheciam e aprovaram. O problema é que o gosto deles não é igual à minha preferência e foi aí que tropecei na minha proposta pedagógica. De todo modo, apesar da minha autocrítica, fiquei com a convicção de que pareciam gostar de algo de menor valor cultural. Foi esse primeiro momento da história que levei para a minha tese, sem suspeitar que muitos anos depois é que a história seria definitivamente encerrada. Continuei ouvindo Racionais até hoje. No ano de 2018, portanto, 21 anos depois do que acabei de narrar, fui à casa de espetáculos Fundição Progresso, nos Arcos da Lapa, para assistir a um show do Mano Brown e Criolo. Em momento avançado do show, Mano Brown avistou Gabriel, o Pensador na plateia e o chamou para o palco, quando cantaram juntos Cachimbo da Paz[3]. Sem dúvida, foi uma consideração particular. Lembrei-me, naturalmente, naquele instante, da minha aula. Pensei: Quem sou eu para decidir sobre a (des)importância cultural do Gabriel, o Pensador, se o Mano Brown divide o palco com ele sem problemas? Meus alunos e alunas já tinha a resposta, décadas atrás.

 

REFERÊNCIA

BERINO, Aristóteles. A economia política da diferença. São Paulo: Cortez, 2007.

 


[1] Atualmente, 7º ano.

[2] Disponível em: <https://www.letras.mus.br/gabriel-pensador/46096/>. Acesso me: 30 dez. 2022.

[3] Disponível em: <https://youtu.be/hMlBbUc67e8>. Acesso em 31 dez. 2022.


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