Educação, Cinema e Infâmia



Texto que escrevi para a minha participação em uma mesa do evento I Seminário PIBID Interdisciplinar – IM, ocorrido em 9 de junho de 2014 no Campus Nova Iguaçu da UFRRJ

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O cinema é uma das possíveis “vozes da educação”. Nos últimos anos nos acostumamos com a ideia de que existem “outras vozes” e não apenas aquelas que representam as identidades hegemônicas na educação. Diversas “vozes” são reprimidas e até impedidas de “frequentarem” as escolas. Diante do necessário diálogo a respeito das “diferenças”, o cinema poderia estar mais presente, também interpelando a cultura e o nosso tempo, provocando com suas imagens o que muitas vezes não gostamos de encarar de frente: presenças que desafiam nossas visões a respeito do que deve ou não ser admitido na educação, na sociedade.

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Vou dividir a minha apresentação em dois momentos. No primeiro vou narrar como desenvolvi meu interesse pelo cinema na educação, informando brevemente algumas das minhas questões e abordagens em relação ao assunto. No segundo momento pretendo recorrer a um filme para sugerir como o cinema pode constituir uma prática educacional desenvolvida e fortalecida pela visão crítica e complexa.
  
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Educação e cinema. Meu interesse por essa relação nasceu na própria sala de aula e particularmente no magistério do ensino superior. Na verdade, desde o início do meu trabalho nas escolas já utilizava filmes. Ainda na época dos videocassetes vi alguns poucos professores utilizarem na universidade e sempre achei um momento particularmente interessante assistir um filme seguido de um debate. Comecei, então, a usar também no meu trabalho, mas sem me ocupar muito com o assunto. Simplesmente utilizava como um “recurso didático”, sem, contudo, refletir sobre a prática. Simplesmente acreditava que ajuda no “ensino da matéria”. Hoje muitas dissertações que oriento na pós-graduação são pesquisas que envolvem essa aproximação da educação com o cinema.

Meu interesse mais específico pelo cinema, como educador e pesquisador, nasce da minha curiosidade ao perceber que meus alunos, nos cursos de Pedagogia, de um modo geral, assistiam muitos filmes e durante as aulas era comum contarem suas histórias e até me emprestarem fitas para assistir em casa. Mas nunca fui “cinéfilo”, nem nunca frequentei cineclube. Meu primeiro videocassete comprei quando meus alunos de uma escola, de nível médio, começaram a mencionar com maior frequência em sala de aula os filmes que alugavam e vi que, como professor de história, seria melhor assistir esses filmes também, para não ficar muito desconectado da cultura midiática desses jovens com quem eu me encontrava para ensinar.

Quando alguns alunos espontaneamente me emprestavam filmes para assistir em casa isso passou a me cativar de uma forma incomum. Comecei a achar que havia um aspecto afetivo e relacional que envolvia um peculiar apelo educacional que os próprios alunos estavam me apontando quando me entregavam filmes para levar para casa. Tive um aluno que sempre me deixava intrigado  com esse gesto. Durante uma série de semanas ele me entregava um filme para assistir que ele pegava na locadora. Eu deveria devolver na semana seguinte. Os filmes sempre tinham protagonistas negros e eu gostava muito das histórias. Não eram filmes “cabeça”, como se diz, mas ótimos para assistir e depois pensar na narrativa e enredo. O rapaz era negro, provavelmente isso explica a escolha dos filmes. Mas o que me deixava sempre encantando e intrigado é como ele selecionava os filmes, que eu sempre gostava de assistir e “aprovava” o conteúdo.

Em outra oportunidade, já lecionando na UFRRJ, quando ministrei a disciplina Sociologia e Educação, um aluno me entregou um filme de presente. Em casa, assistindo o filme, tal como sugeria a capa, era um filme de “terror”. Parecia de terror até o momento em que reconheci que tratava-se, na verdade, de um filme que poderia ser chamado de “sociológico”. Estou falando do filme A Vila, de  M. Night Shyamalan. Então, achei espetacular que um aluno me apresentasse um insuspeito filme com abordagem sobre a disciplina que ensinava para eles. E fiquei mais impressionado ainda quando o filme foi, posteriormente, tema de um volume inteiro envolvendo conhecidos educadores que escreveram sobre fundamentalismo, sempre usando o filme como recurso para o diálogo e abordam o assunto. Trata-se do livro Fundamentalismo & Educação, organizado pelos professores Alfredo Veiga-Neto e Silvio Gallo (ed. Autêntica, 2009). Que sensibilidade esse rapaz teve com um filme!

Então, ainda que já tivesse presenciado, mas não muitas vezes, o uso de filmes na universidade, durante a minha formação como professor de história, foi na relação com alunos do curso de Pedagogia que passei a me interessar pelos usos do cinema na educação.  Sequer leituras sobre “didática” me chamaram atenção particular para isso. Os alunos me empurraram o cinema, posso dizer. É claro que muitas vezes mencionei filmes em aula e isso também provocava essa troca entre professor e aluno. Mas o retorno é que sempre me impulsionou para essa relação entre educação e cinema. E foi essa correspondência bem sucedida com os meus alunos, sem ter acontecido de forma planejada, que terminou me motivando a estudar e pesquisar sobre o assunto. Já existem alguns livros que tratam disso e muitos artigos disponíveis. Mas, no cotidiano das instituições educativas, não é uma prática tão desenvolvida assim.

Quando lecionei na rede pública de ensino da cidade do Rio de Janeiro algumas vezes desejei passar filmes para meus alunos. A iniciativa era bem recebida pelos alunos e prazerosa para mim. Mas existiam alguns problemas e também desconfortos que inibiam e até me deixava “chocado”. Certa vez, depois de convencer uma diretora sobre o uso do aparelho de DVD, no dia de mostrar o filme para os alunos ele não estava disponível no lugar! A diretora sumiu com o DVD para não ser utilizado! Ela tinha receio de usos dos recursos e espaços do colégio. Ela “defendia” a escola do uso pelos alunos. É a mesma lógica da “proteção” dos equipamentos que fez com que TVs fossem, em tantas escolas, expostas em gaiolas de ferro. Sempre achei uma humilhação para os alunos, a despeito das justificativas, passar filmes em TVs que ficavam em grades, como se estivesses vivendo um momento de exceção. A TV em cadeados exibia mais o cuidado pela suposta segurança do material do que o apreço pelo seu uso educacional com os alunos.   

Nos meus cursos de pós-graduação não assisti filme algum. É como se o estudo mais sistemático e “avançado” das questões da educação afastasse o cinema das salas de aula. Acho que é um preconceito sobre o cinema, um desconhecimento sobre o que é arte. Mas nas minhas aulas que leciono no mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares, tenho apresentado filmes no meu curso sobre Educação Brasileira na Contemporaneidade.  No curso desse ano apresentei o filme (o curso está em andamento) Lições de Amor, de Eduardo Escorel. Em uma turma de 37 alunos ninguém havia assistido ainda ao filme. “Passar filme” não é, como muitos acreditam, “passar tempo”. A escolha de um filme e a preparação para posterior debate envolve pesquisa e dedicação intelectual meticulosa.

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A partir do momento que me interessei de forma mais reflexiva a respeito da relação entre educação e cinema descobri múltiplas abordagens para o assunto. Hoje estou ocupado com uma pesquisa que parcialmente se dedica a analisar as produções de audiovisuais por alunos que filmam o cotidiano das suas escolas e publicam essas produções no YouTube. Ou seja, através desses audiovisuais, como os alunos olham e exibem suas presenças nas escolas. É uma forma de investigar o que as escolas, suas práticas e personagens significam em suas vidas. Observando a autoria das imagens feitas pelos próprios alunos, trata-se de uma nova fonte para discutir a vida nas escolas: o cotidiano, o currículo, a aprendizagem, culturas juvenis, entre outras possibilidades de investigação. Atualmente estou produzindo material para um livro sobre “imagens dos professores no cinema”. Aqui o que me interessa é estudar como os professores são representados pelo cinema.

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O diálogo com o cinema é um modo de conversa que nos permite problematizar a educação a partir de outras vozes (e imagens). Isso pode ser feito de inúmeras maneiras. Gostaria de me deter em uma das suas possibilidades para esse nosso encontro em evento promovido pelo PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) no Campus Nova Iguaçu da UFRRJ. Através de um filme que descobri apenas recentemente, pretendo sugerir capacidades analíticas que o cinema nos oferece quando olhamos com os “olhos bem abertos” para a tela grande. Isto é, se olharmos para o cinema com disposição crítica voltada para o nosso próprio trabalho de educadores e estudantes da educação, vamos encontrar um farto material para discutir questões sobre o nosso campo de interesse profissional e de pesquisa. Vou utilizar como exemplo representativo para esse diálogo o filme Infâmia (The Children’s Hour, EUA, 1961).

Infâmia é um filme lançado há mais de cinquenta anos, com as atrizes Audrey Hepburn e Shirley MacLaine como protagonistas e dirigido por um grande diretor de Hollywood, William Wyler. A Hora das Crianças seria a tradução mais apropriada para o título original. Vejamos, então, o enredo do filme. A narrativa se desenvolve em torno de uma escola particular para meninas, criada e dirigida pelas professoras Karen Wright e Martha Dobie, na região da Nova Inglaterra, no nordeste dos EUA. Logo no início do filme percebemos uma trama com dois núcleos de tensões. Karen está noiva de um médico, “Joe”. Martha revela um grande carinho por Karen e certa rispidez com o noivo dela. As alunas, crianças, são internas na escola. Uma das crianças, Mary, se queixa para a avó a respeito da escola. A menina demonstra muita insatisfação com o controle escolar. Uma tragédia irá se desenvolver quando esses núcleos de tensões se encontrarem.

As crianças são cuidadas e disciplinadas por Karen e Martha. Mary tem uma hostilidade dirigida à Karen, que monitora o horário de dormir e outras regras entre as crianças. Pela característica relação de proximidade entre todos na escola e na “casa”, as crianças também acompanham os eventos dos adultos, assistindo e ouvindo sobre suas vidas. O poder, que inicialmente aparece de “cima para baixo”, logo vamos ver, tem “mão dupla”. Mesmo em uma escola governada por adultos, também existe uma “hora das crianças” para o poder. Poder que na história narrada pelo filme irá se apoiar no jogo de visibilidades e invisibilidades que acontece entre os adultos. Karen, ao se casar, deixará a escola. Martha se angustia com a possibilidade. O problema não é apenas a partilha na condução da escola. Existe algo mais subterrâneo, recalcado.

Mary é vigiada, mas também vigia. Os adultos parecem atentos para vigiar. Mas revelam-se, diante das crianças e a presumida inocência delas, desatentas às ações mais silenciosas, mas também penetrantes. O poder das crianças tem suas táticas. Uma conversa áspera entre Karen e Martha é acompanhada por Mary. A discussão, exatamente a propósito do casamento de Karen e a sorte da escola, termina de forma mais amena. De forma simpática, Karen se despede de Martha com um beijo no rosto. Mary vê de um modo alerta, entre a inquirição e a curiosidade, a situação – o que percebemos através da reação nos seus olhos. Movimentos no seu olhar que são vistos apenas por quem assiste ao filme. O olhar do espectador é capturado pela figura movimentada da garota. Mary é a imagem atrativa do filme para a questão de como o poder de desloca e pode (precisa) ser visto de diferentes ângulos.

Em uma cena entre Dr. Joseph Cardin, que também atende às crianças na escola, e Mary, é possível indagar sobre a violência consentida dos adultos contra as crianças. Chamado para atender à menina, que simula um desmaio e depois provoca outras “cenas” de revolta e teimosia, Joe aproveita um instante de Mary para aplicar uma forte palmada. A questão do  poder e seus usos, entre adultos e crianças, é marcante no filme e pode ser extraída para uma relevante discussão educacional. O filme “mostra” o que nem sempre como adultos aceitamos enxergar como poder e até violência contra as crianças, ainda que a figura antipática de Mary assuste a todos. A menoridade e fragilidade infantil não são um tranquilizante para o poder adulto e institucional da escola. Ou seja, existe o poder das professoras, mas isso é sempre relativo porque não existe garantia absoluta que as crianças vão ficar “quietas”. Não há educação sem a agência do poder. E não existe o poder sem a reação da revolta.

Uma rede de controle e comunicação formada pelas meninas permite que Mary especule cada vez mais sobre a “natureza” da relação entre Karen e Martha. Em uma conversa com a avó diz que “sabe muitas coisas”. A força de Mary na narrativa vai ocupando mais espaço na medida em que começa a perceber que existe algo de recriminatório no comportamento de Martha, algo que a garota supostamente sabe o que é, enquanto permanece invisível para todas as outras pessoas. Na conversa com a avó, Mary segreda no seu ouvido o que de “infame” conhece sobre as duas. Na verdade, tudo tecido a partir de histórias que ela ouviu e das imagens incompletas que ela formou sobre Karen e Martha. A mentira completa o resto. É o “golpe baixo” do poder. Eficaz, contudo. O que se segue é demolidor, movido por intrigar, falsidade e até violências produzidas por Mary.

A escola perderá todas as alunas. Os pais têm dificuldade para abordar o assunto. Karen e Martha ficam desnorteadas sem saber o que está acontecendo. Quando o pai de uma das meninas decide dizer algo, conversa com Karen. Martha, à distância, não consegue ouvir. Nem o espectador. Estamos diante de uma questão que ninguém ousa falar abertamente. O filme é do começo dos anos 60. Depois de tanto tempo, também nos indaga se conseguimos falar diretamente, sem fantasias, sobre o amor entre duas mulheres. E falar da existência legítima de amor entre mulheres na escola, no currículo, sem segredos. Conjugado com a problemática do poder nas relações que se estabelecem entre pessoas, o amor entre duas mulheres é o assunto do filme. Amor que não pode ser visto sem a falta de simetria do poder. Amor que não pode subsistir francamente diante das interdições de uma cultura e civilização.

A narrativa do filme não se desenvolve em torno de uma didática empobrecida sobre o poder e o amor proibido. A trama tem complexidades que não deixa espaços para uma abordagem simplificada e unidirecional.  Alunos e crianças não são apenas vítimas do poder. Podem ser sujeitos também. O poder não é um combate entre lutadores claramente definidos e antagônicos. O poder é mais envolvente que a figura terminal do adversário. Mary não suporta a regulação da vida nas escolas. E saberá explorar as fraturas da vida normalizadora do mundo adulto para criar seus próprios poderes. Na recusa a ser submetida, Mary fará alianças (inconscientes ou não) com outros poderes. Professores ou alunos, estamos todos metidos nessa malha de conquistas e submissões, sem sabermos exatamente onde nos localizamos. Quem fala com a voz alta é a violência, o poder sussurra. Não ouvimos direito. Ou fingimos.

O filme tem um final bastante trágico. Nem a verdade será suficiente como uma carícia diante da realidade. O estrago está feito. O amor que é perseguido no filme, para as personagens é apenas virtual e especificamente para Martha. Não há nada entre elas, vida amorosa alguma. O que injeta drama na vida das personagens é o fato que trata-se de um amor quem nem pode ser cogitado. Por isso Martha recalca seus sentimentos, que ficam “escondidos” entre as declarações de “prazer” com a escola. Mas as proibições são agitadas pela atividade do poder, descobrindo seu esconderijo. Não foi a visão, mas o “olfato” que sentiu sua presença. Estava “no ar” para ser visto, mas não exatamente “olhado”. Sob a forma do desejo, já se apresentava ameaçador. Qualquer cumplicidade, inverosímel que fosse, seria suficiente para apagar a sua chama. O que torna “visível” sua existência é o próprio filme, que nas mãos de educadores pode também lançar-se aos debates pertinentes ao nosso campo de interesse.      

Abordei o filme com alguns detalhes até aproximadamente metade do seu tempo de duração. Propositalmente não continuei “contando” o filme nem disse como a narrativa se encerra. O motivo é obvio: uma tentativa de conciliar a apresentação do filme com a preservação do seu caráter como trama para quem se interessar em assistir. Mas os elementos do filme que aqui foram expostos são suficientes para sugerir, creio, sobre a oportunidade que oferecem para uma estimulante discussão sobre questões referidas à educação nos dias de hoje, apesar do meio século que o filme já atravessou. Passagem do tempo que inclusive sugere a perenidade das suas tramas e imagens no quadro da educação. Temas como gênero, sexualidade, currículo e poder poderiam se beneficiar de uma conversa feita com esse filme. Cinema é feito de imagens (e sons, se quiserem). Mas para os que trabalham com educação, é também uma “voz” que poderia estar mais presente nas nossas discussões.   



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