Junho – O Mês Que Abalou o Brasil




Uma conversa sobre Junho – O Mês que abalou o Brasil, filme que assisti no último final de semana e que ainda está em cartaz aqui no Rio de janeiro e em outras capitais.

Um ano após as manifestações que entraram para a história política recente do país já é possível revisitar no cinema acontecimentos e imagens que até agora ainda estamos tentando entender exatamente o que houve e o que continua valendo para a compreensão da sociedade brasileira na contemporaneidade. Depois das tentativas de alcançar explicações através de debates, artigos e já alguns livros publicados, agora é a vez do cinema.

A sessão de cinema estava vazia, contrastando com os episódios de junho de 2013, que chamaram atenção pela quantidade de gente participando. Mais do que a Copa que está começando, entretendo corações e mentes, acredito que a característica nada popular da produção e do lançamento do filme, realizado pela TV Folha (do grupo Folha de S. Paulo) e limitado por aqui a uma sala na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, explica, ainda que parcialmente, seu alcance reduzido na tela grande. Nada popular o preço do ingresso também...

A ida ao cinema por Junho vale a pena, mas de forma crítica, no espírito mesmo das manifestações que trata. Para um audiovisual que retrata um momento político próximo no tempo e que já foi intensamente noticiado e avaliado em variadas mídias e com um farto acervo de imagens, depoimentos e análises, havia o desafio de uma abordagem autoral e esteticamente mais surpreendente, algo que o filme, penso, não se propôs. Achei o filme tímido e pouco ambicioso diante do que precisava para ser mais significativo.

Com tanto material disponível para a sua realização, mas comprimido pelo tempo delimitado de um documentário, Junho nos apresenta, de modo plural, mas coerente, uma tentativa de editar a exibição das manifestações que a partir da cidade de São Paulo se expandiram pelo país e reuniram uma participação que também se caracterizou pela multiplicidade de atores políticos envolvidos. A narrativa é conduzida por depoimentos de protagonistas, pela cronologia das imagens e através de comentários e considerações de jornalistas e intelectuais.

Destacável o propósito de mostrar alguma polêmica e variação na compreensão a respeito de tudo que passou naquele mês, sugerindo a própria complexidade que envolve seus acontecimentos.  Mas, apesar da “tomada de partido” em favor das manifestações, retratadas, sobretudo, como uma reação à precarização da situação social nas cidades e desqualificação nacional da vida política institucional, a tentativa de ouvir “diferentes vozes” foi bastante convencional na escolha dos interlocutores. Entre os entrevistados, não há presença alguma que poderia proporcionar novos caminhos analíticos e interpretativos a propósito do que foram as “marchas de junho”.        

Junho ouviu com moderação e não apresenta uma hipótese sobre os acontecimentos. Procurou ser “correto”, aderindo a uma imaginada concepção do que é o jornalismo, sem se aventurar no que poderia ser o cinema como uma voz política relevante. Junho não arrisca ter a sua própria “visão” a respeito do mês que abalou a relativa estabilidade do governo da população e as leituras correntes sobre as disposições de contestação política existentes no país hoje. 

A fartura de imagens disponíveis, inclusive nas redes sociais, de fácil alcance para todos, apresenta um desafio para qualquer trabalho cinematográfico sobre o assunto. Excesso de imagens que ameaça correr na frente do próprio filme, que fica sem muita coisa para “mostrar”. A arte é reduzir a sensação de “imagens já vistas”, apresentando-as de modo que “pensem” com quem assiste sobre o que mostram. Imagens que na sala escura precisam propor a uma audiência mais do que a sua lembrança, mas o seu futuro.

Tanto quanto a pauta política de junho de 2013, ainda em discussão – que nos levam a indagar sobre novíssimos personagens na vida pública e as lutas sociais agora no começo do século XXI, as imagens das manifestações são também desconcertantes. Trazem novos cenários e concepções sobre a vida política. As imagens de junho de 2013 são narrativas relativamente autônomas sobre os seus acontecimentos. Não são suficientes as abordagens típicas da discussão escrita ou oral, demasiadamente enredadas na racionalidade moderna.

Virtualmente, o cinema (mas também a fotografia) constitui uma expressão privilegiada para “falar” sobre junho de 2013. Mas é preciso levar em conta que dialogar com as suas imagens é ultrapassar enxergá-las como representação de propostas ou projetos (ou suas ausências...), mas realizações que necessitam ser compreendidas na alteridade de suas aparições. Governo, política, mídia e polícia procuraram pelas figuras de “liderança”, os interlocutores legítimos, e não encontraram. Ainda estão procurando. O cinema tem a chance de nos oferecer outras visibilidades sobre as pessoas que participaram.

Tudo não começa exclusivamente com as manifestações de 2013. Em outros momentos as multidões já haviam demonstrado isto também: há um agenciamento nos grandes ajuntamentos irredutível às concepções tradicionais sobre consciência, ideologia, programa ou alternativa política. O cinema é uma oportunidade para se aproximar dessas outras imagens que não se mostram tão frequentemente com a “revolta” que assistimos, passando por cima da nossa compreensão a respeito do que é organização, direção ou objetivo de um “movimento  de massas” – essa expressão tão cara às esquerdas.

O medo da multidão “sem lei” ou “projeto” encontrou na figura do “vândalo” uma expressão identificável e plausível de rejeição. O “vândalo” se transformou em dejeto das manifestações. Com as contas feitas, as manifestações foram tidas como necessárias, mas descartada a “violência”. Black blocs e “infiltrados”  figuraram como a parte removível. São os desvios das manifestações. A necessidade de repartir as imagens das manifestações foi um trabalho das mídias empresariais. Recorte para tirar de cena as fulgurações que insistiam em ofender as crenças de que a cidade burguesa é o único espaço de existência que nos resta.

Os melhores momentos de Junho são os encontros, quando a cidade pode ser vista a partir das suas fraturas, mas na hora em que a chapa está esquentando. O agente de segurança pública e o manifestante emendando uma conversa. Não se entendem, nem poderiam. Não são suas pessoas. O teatro da violência coloca em evidência a segmentação da cidade em categorias bem mais amplas que a pessoa do policial ou a do rebelde (com ou “sem causa”, se isso existe...). A cidade tem desigualdades porque seus usos e proveitos são desiguais.
  
O trabalho com as imagens não é o de contornar os acontecimentos até chegar a um consenso sobre suas projeções, especulando acomodações possíveis. O cinema como uma arte necessária tem se realizado como uma falta de negociação com a “realidade”, essa vista sobre o mundo que apela para o seu controle e previsibilidade. A entrada na sala escura é um desacordo com a realidade. O cinema precisa ser indócil com o regime das imagens que hoje dirigem nossa atenção, produção e consumo. O cinema é um beijo no escuro.

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Crítica de cinema é também crítica da sua exibição, sobre como acontece e seu público. O banco Itaú foi um dos “telhados de vidro” das manifestações. Suas agências figuraram como vítimas da violência dos “vândalos”. Mas são empresas que desejam transmitir modernidade, civilização e cultura. Não deveria nos escapar que Junho está em cartaz exatamente na rede do Espaço Itaú de Cinema. Tal laço é um exemplo da normalização que o cinema também enreda. Junho como um filme “selecionado”, é uma negação das interpelações das ruas em junho de 2013.   

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Direção: João Wainer
País: BRA
Ano: 2014
Classificação indicativa: 12





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