Para ser um ser no mundo


“E se já pensávamos em método ativo que fosse capaz de criticizar o homem através do debate de situações desafiadoras, postas diante do grupo, estas situações teriam de ser existenciais para os grupos”.

Como prosseguir com a educação em tempos de distanciamento social?
As classes médias estão on-line, e as classes populares?

Qual educação agora para a maior parte de estudantes brasileiros que frequentam as escolas públicas? No meu estado, Rio de Janeiro, na sua rede pública, a pressão sobre os professores, a falta de planejamento e orientação pedagógica, é o que acontece. A escola pública maltratada, o desprezo pela educação das classes populares, é o que constatamos.

O pensamento de Paulo Freire tem sofrido a perseguição mais desprezível do governo Bolsonaro, do próprio presidente e ainda do seu ministro da Educação. As milícias digitais da extrema-direita atacam Paulo Freire e o significado da sua obra sem descanso.  O que sobrou do seu legado para o século XXI? Paulo Freire pode ser lembrado em tempos de pandemia?

Quando procurei uma imagem no Google para usar nesta postagem, encontrei uma fotografia do Paulo Freire que não esperava, em razão da imaginação que desperta. Paulo Freire fazendo uma selfie? Que ironia para quem se pergunta sobre a sua contemporaneidade! Fantasia, naturalmente. Mas as imagens pensam, acreditem.

Em uma carta, sem data, reproduzida por Ana Maria Araújo Freire na biografia que escreveu sobre seu companheiro, Paulo Freire fala a respeito da sua opção pela luta “para ser um ser no mundo”. Eu gostaria de usar exatamente esta frase para atribuir um significado à obra de Paulo Freire que ainda não cessou e que poderíamos lembrar agora de forma oportuna.

“Para ser um ser no mundo”. Uma perspectiva sobre a educação freireana poderia ser tecida a partir desta frase. Nascemos no “mundo”, naturalmente. No entanto, o que poderia significar “ser um ser no mundo” em que já estamos? Para Paulo Freire, existe uma problemática da educação que é política, sempre. “Ser um ser no mundo” significa assumir-se com um ser no mundo para transformar as próprias condições em que a presença no mundo é socialmente herdada. Portanto, “para ser um ser no mundo” é diferente da condição acidental de existir no mundo, mas tornar a existência uma liberdade, um significado que se atribui à própria vida. Não se trata de algo garantido, deverá ser alcançado, lutado, na verdade.

“Para ser um ser mundo” podemos identificar também com o chamado “Método Paulo Freire”, e aí compreender como acontece, na sua concepção de educação, o trabalho com as classes populares.

Em 1967, Paulo Freire publica Educação como prática da liberdade e no seu 4º capítulo, Educação e conscientização, encontramos como foi o trabalho desenvolvido nas campanhas de alfabetização de adultos no início dos anos sessenta, até se exilar, em 1964, após o golpe que depôs o presidente João Goulart. Gostaria de me deter aqui especificamente, em um dos elementos do chamado Método Paulo Freire, que vejo como elementar da prática freireana e que permanece válido. Refiro-me às entrevistas com pessoas que representassem social e culturalmente os educandos que participavam dos Círculos de Cultura. Educadores e educandos que não se reuniam para “aulas”, mas para a vivência do Círculo de Cultura.

O primeiro movimento do Método Paulo Freire é a pesquisa do universo vocabular do lugar em que a campanha de alfabetização se desenvolveria. Uma primeira aproximação para que palavras fossem selecionadas adequadamente para outro passo do Método, mais adiante, em que ocorreria a decomposição das famílias fonêmicas, como na imagem abaixo:


A escolha de cada palavra levava em conta seu sentido existencial e conteúdo emocional para aquela comunidade. Ou seja, o trabalho de alfabetização não seria realizado a partir de palavras doadas pelo educador, mas pesquisadas entre a população que representava os educandos. Palavras que pudessem codificar a experiência existencial concreta dos educandos. Procedimento primeiro e necessário, para um método de alfabetização que esperava, para o seu sucesso, identificar o educando com o próprio método.

O Método Paulo Freire pretende a participação ativa do educando, seu envolvimento para a tarefa política (educacional e sempre política, para Paulo Freire) de situar-se no mundo com o conhecimento e a capacidade de transformá-lo. Portanto, a educação como uma possibilidade de compreensão ampliada de mundo, adquirida com ela.

Retornando à questão inicial, como iniciar, então, a educação das classes populares em tempos de pandemia?

Para prosseguir, gostaria de contar um episódio que vivi como professor, na época que lecionava na rede municipal do Rio de Janeiro, antes de 2006 – ano em que ingressei como professor no curso de Pedagogia do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Eu lecionava História para jovens alunos da 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental (hoje, 6º ao 9º ano). Uma recordação do magistério, portanto.

Trabalhei de 1993 a 2006 em um bom número de escolas. Eu tinha uma matrícula de 16h, mas frequentemente fazia dupla regência ou hora extra. Conheci o chão da escola pública, na sua diversidade de bairros e clientela. A escola e a educação pública não são uma realidade tão homogênea, fácil de esquadrinhar. Até eu me surpreendia, muitas vezes. Frequentemente lamentava a ausência de tarefas cumpridas pelos alunos. O que faziam em casa, que nem podiam realizar o trabalho escolar? Certa vez, então, uma mãe me procurou para explicar a ausência do filho em uma prova marcada. Naquele mesmo dia a prefeitura estava removendo habitações irregulares e aquela família tinha sido afetada por isso.

Moravam em uma habitação que se aproveitava da arquitetura de um viaduto para construir a própria casa. A precariedade era muito grande. Era o que eu estava chamando de casa, mas “a distância”. Passei quase toda a minha infância, toda a juventude e o início da vida adulta morando em um conjunto habitacional de caráter popular e operário em Irajá, zona norte do Rio de Janeiro, e ainda assim eu não tinha uma noção perfeita das condições existenciais do meu aluno, na mesma cidade. Com esta pequena história, tão cotidiana dos nossos desconhecimentos, o que pretendo observar, é que cada iniciativa pedagógica deve ser acompanhada de alguma dúvida, porque não basta a palavra da autoridade pedagógica.

Não é admissível propor para a educação em tempos de isolamento social a solução instantânea de aulas on-line ou ainda a EaD, sem saber de modo legítimo sobre as condições de vida do educando. Digo de forma legítima porque não pode ser uma solução apressada, mais veloz que o próprio vírus, como se fosse possível enganar a pandemia do que ela significa para o planeta. A propagação do vírus tem a sua face que é biológica, mas tem outra referida ao contágio que é social também. O modo como acontece a produção do espaço da cidade e as sociedades se des/organizam no hipercapitalismo favorece particularmente a contaminação da Covid-19. Como educadores, nosso trabalho não é correr mais do que o vírus, pelo contrário.

Até o vírus tem a sua condição existencial – e ela se dá na penumbra da sociedade do cansaço.

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Ana Maria Araújo Freire
Paulo freire: uma história de vida
2ª edição rev. atualizada
Rio de Janeiro/São Paulo
Paz e Terra
2017

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Paulo Freire
Educação como prática da liberdade
Rio de Janeiro
Paz e Terra
1994

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Quarta publicação de uma série que estou chamando de Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia. A ideia é escrever uma série de pequenos artigos durante a pandemia da Covid-19 abordando os seus significados e as suas consequências mais imediatas e ainda as mais permanentes para a educação, sobretudo a educação de interesse das classes populares. Artigos que vão conversar com personagens, conceitos e imagens diversos para pensar os desafios que estão postos agora.

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