Sociedade do cansaço




“Vivemos num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios”.

No início, acompanhava as notícias sobre a epidemia da Covid-19, ainda limitada à região de Wuhan na China, com uma curiosidade distante. Algumas semanas depois, minha vida já tinha sido atingida também.  Quase que repentinamente comecei a ouvir falar de distanciamento social e quarentena como uma necessidade instantânea. Escrevo este artigo três dias após a troca do ministro da saúde. Enquanto Luiz Henrique Mandetta mostrava-se mais coerente com as recomendações da OMS – Organização Mundial da Saúde, o presidente Bolsonaro, divergindo do seu ex-ministro, defendia isolamento social apenas vertical e maior movimentação de pessoas no trabalho para, segundo ele, salvar empregos e a economia.

Entre as orientações dos órgãos competentes de saúde e o negacionismo do presidente Bolsonaro, as pessoas seguem preocupadas com o que está por vir, vivendo intensamente a expectativa do achatamento da curva de contaminação para evitar o colapso do sistema de saúde, já visto em alguns países, mas muitas parecem indiferentes ou até rejeitando a informação de que existe uma pandemia. Procuro, de algum modo, coordenar a minha vida para os dias próximos, sem saber realmente como vamos sair disso tudo mais adiante. Nestes dias, a terra parou e acredito que não há mesmo como voltar ao mês de janeiro de 2020, o mundo está definitivamente transformado, a julgar pelas incertezas sobre o destino da pandemia. Intelectuais já analisam as tendências, como será depois, o mundo pós-pandemia.     

Diante de toda a pressão que estamos vivendo, todavia, algo que observo de modo bastante difuso, e aí já não posso situar como um negacionismo da extrema-direita apenas, é uma certa dificuldade para olhar de frente os acontecimentos, e ceder a algumas perguntas que antecediam à pandemia da Covid-19 e agora parecem definitivamente incontornáveis. Quais as garantias possuíamos do mundo de acordo como estávamos vivendo-o? Para os que gozavam de bem-estar, o modo como era obtido era sustentável? Mesmo que admitíssemos a maior felicidade para a nossa vida antes, essa era uma experiência autêntica? A vida precedente, orientada pelo capitalismo turbinado, já não estava mesmo para se romper?    

Byung-Chul Han, filósofo nascido na Coréia do Sul e migrado para a Alemanha, afirma, no seu livro Sociedade do cansaço, logo nas suas primeiras linhas, que não nos encontrávamos mais em uma época epidemiológica. A publicação original do livro é de 2010. Curioso ler isso agora, dez anos após, pois nos vemos de volta à uma época viral.  O que gostaria de dizer aqui, continuando uma conversa que iniciei em uma postagem anterior no blog, quando revisitei o ensaio Em louvor da sombra, de Junichiru Tanizaki, é que nosso mal-estar agora, ou seja, a angústia de ter a vida suspensa e sem saber o que dela sobrará depois, é que foi o próprio capitalismo que nos trouxe de volta aos riscos de uma época viral.

Em Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han procura nos situar em uma nova época, impulsionada pelo hipercapitalismo. Han, por oposição, diz que vivemos um excesso de positividade, enquanto a sociedade anterior era sustentada pela negatividade, característica da sociedade disciplinar e seus regimes de proibições. A obediência é regra n. 1 para os internos nos hospitais, no presídio ou na fábrica, enquanto na sociedade do cansaço é o princípio do desempenho que prevalece. Agora, para maior desenlace do capital, a regulação é feita pelo próprio indivíduo. A opressão acontece de outra maneira, o que não significa exatamente que as coisas melhoraram. O imperativo do desempenho produz também o depressivo.

Apesar da contração das instâncias externas que antes pesavam sobre o indivíduo, há uma pressão interna permanente que leva o sujeito do desempenho ao esgotamento. A aparente liberdade é aqui apenas outro esquema de controle, mais apropriado para um capitalismo que precisa da entrega máxima, de vidas produtivas como um movimento perpétuo ativado pelo próprio indivíduo. O sujeito do desempenho precisa acreditar na espontaneidade com que supostamente dirige sua vida. Na verdade, há uma aderência correspondente à produtividade integral movida pelo hipercapitalismo. No avesso das proibições, o indivíduo precisa se sentir livre para não fracassar – um dever que termina nos levando a infartos psíquicos, diz Han.

O esquema imunológico era caracterizado pela negatividade ao barrar a alteridade. Na escola, como exemplo que dou, a alteridade do aluno tinha o seu fim na imunização/eliminação dos seus sentidos. A concepção da diferença na pós-modernidade ocupa o lugar da reação imunológica da modernidade. Agora vivemos um excesso de positividade, necessário à troca e intercâmbio desenvolvidos pela globalização existente. O categórico da produtividade é a disposição completa do sujeito à acumulação capitalista, que se processa em uma rede integrada de subjetividades, desempenhos e resultados globais. A imunologia é uma tecnologia do poder avessa à disseminação. O sujeito imunológico sai de cena. Será?

A sociedade do cansaço é o esgotamento do sujeito pós-moderno. A vida como atividade produtiva absoluta, de disposição integral ao imperativo do capital nos trouxe até aqui, à pandemia da Covid-19. Não que o vírus tenha sido criado para que algum país pudesse se sobressair em um mundo em crise, como milícias digitais têm espalhado. No entanto, incapaz de interrupções, hostil à interposição das sombras, as condições atuais da globalização favorecem a ecologia de contágio pelo coronavírus. Achatar a curva de contaminação da Covid-19 implica a manipulação de recursos necessários aos cuidados da vida quando o capitalismo global tem a sua arquitetura concebida não para as pessoas, mas para o “mercado”.

O tempo do mundo foi subtraído pela acumulação capitalista, daí a longa duração necessária para socorrer adequadamente as pessoas adoecidas com maior gravidade pelo coronavírus. Toda uma conversão precisará ser feita porque, afinal, não eram as pessoas que contavam – claro, uma classe abastada mundial sempre esteve protegida. Logo na era da instantaneidade do momento, quando as fronteiras foram vencidas pela veloz correspondência de dados, as sociedades capitalistas precisam de muito tempo para lidar com a letalidade da Covid-19, principalmente quando o sistema de saúde colapsa, comprometendo todos os demais atendimentos também.  

Um dos capítulos de Sociedade do cansaço é “Pedagogia do ver”. Nele, Han propõe um olhar mais demorado e lento à contrapelo da atividade pura. Na sociedade do desempenho reagimos prontamente aos estímulos que solicitam uma frenética participação, súbita e exaustiva. “Maratonar” uma série ou conferir as notificações dos aplicativos das redes sociais, por exemplo. São gestos cotidianos, mas atados à intensidade requerida pelo hipercapitalismo. Ver em um sentido propriamente educado é uma experiência contemplativa, uso do tempo capaz de interromper o assédio incontido da acumulação capitalista – de “não fazer” e descontinuar nossa própria contribuição para o excesso de positividade.

Em uma época de pós-verdade, a pandemia da Covid-19 é um princípio de realidade.


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Byung-Chul Han
Sociedade do cansaço
2ª edição ampliada
Petrópolis
Vozes
2018

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Terceira publicação de uma série que estou chamando de Educação e outras conversas da quarentena para um mundo pós-pandemia.

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