Maioria Absoluta
Já observei algumas vezes aqui no blog: o cinema nacional não se interessou muito pelo assunto educação. Não me refiro ao chamado “cinema educativo” ou aos filmes de propaganda de campanhas educativas, mas ao filme que de algum modo problematiza a instituição escola e seus personagens. Tenho procurado escrever sobre os poucos filmes dedicados direta ou indiretamente ao tema. Assim, prosseguindo com o meu projeto Imagens da educação no cinema nacional, vamos conversar agora sobre o documentário curta metragem Maioria Absoluta, de Leon Hirszman, de 1964.
Uma nota inicial. Quando comecei a minha pesquisa a respeito de filmes nacionais sobre educação, o formato que me interessava exclusivamente era o longa-metragem feito para o cinema. No entanto, como essa faixa de produções mostrou-se relativamente pouco expressiva numericamente, concluí que o melhor seria me interessar por outros formatos do audiovisual também. O ganho para a pesquisa se justifica e o filme Maioria Absoluta é um exemplo notável.
É formidável saber que Leon Hirszman pretendia fazer um filme sobre o Método Paulo Freire. Era sua ideia original. Há um depoimento sobre isso no documentário Deixa Que Eu Falo, de Eduardo Escorel. E mais instigante ainda, quando descobrimos que a inflexão que promoveu na filmagem de Maioria Absoluta ocorre por uma opção estética (e política). No lugar de um filme falando do “Método Paulo Freire”, um filme em que os trabalhadores falam.
Maioria Absoluta começa exatamente com imagens da alfabetização através do Método Paulo Freire. Vemos a projeção da família fonêmica extraída da divisão silábica das palavras geradoras, mas acompanhada de uma observação feita pelo narrador: “o tema deste filme não é a alfabetização, mas o analfabetismo”. O dispositivo usado foi interpelar indivíduos de diferentes classes sociais sobre o “problema brasileiro” para saber sobre as causas do brutal analfabetismo no país.
As primeiras respostas apresentadas são de pessoas aparentemente beneficiadas socialmente frente à “maioria absoluta”, expondo explicações que, depois de mais de cinquenta anos, ainda encontramos na sociedade brasileira, como um registro duradouro do nosso histórico preconceito contra as classes populares. Nosso problema é moral, devido ao povo indolente, que não sabe receber o que é dado para a melhoria de suas condições, incapaz de se orientar para dar um bom voto é melhor importar gente, são as respostas oferecidas.
Observem o primeiro frame que extraí do filme. Nele, no primeiro plano da imagem, a primeira entre as pessoas entrevistadas no primeiro grupo. Casualmente, em segundo plano, exatamente um indivíduo que se encontra entre os marginalizados na explicação das elites sobre o que acontece na sociedade brasileira. Na praia, é um coadjuvante do lazer. Está ali como vendedor de mate. Depois das primeiras entrevistas, autoritárias e excludentes, será, no entanto, no segundo grupo de entrevistados, a classe social protagonista do filme.
Populares
narram sobre suas condições de vida, como percebem o que lhes acontecem e a
razão do sofrimento por que passam. Contrariando a discriminação contra o
pobre, são depoimentos lúcidos a propósito das adversidades em que vivem e a opressão
de que são vítimas, uma consciência da precariedade e das rasas alternativas
limitadas pelo poder. No lugar de uma apresentação pastoral do Método Paulo
Freire, característica dos audiovisuais que faziam a publicidade das campanhas
de alfabetização na época, Leon Hirszman faz uma opção que radicaliza o próprio
Método no cinema.
Maioria Absoluta é um filme que
afirma a presença das classes populares na elaboração de rumos alternativos
para o país. O filme é uma interpretação da sociedade brasileira que vê na
comunicação com os excluídos a produção de um sentido político libertador e
legítimo. Na concepção de Maioria
Absoluta há a proposição de uma ética autêntica a respeito da tessitura de
uma política dos “de baixo” que o filme representa através de uma estética nova
na narrativa sobre as classes populares. Uma concepção que, acredito, ainda se
sobressai comparativamente diante de produções cinematográficas
posteriores.
Um
dos maiores problemas da educação brasileira é a distância que as políticas
educacionais guardam em relação às classes populares, ou seja, aqueles que mais
precisam se beneficiar da escola porque lhes faltam os benefícios da riqueza. São
os indivíduos cujas vozes na verdade pouco significam para os elaboradores e
implementadores de leis, planos e programas para a educação. Em um momento
significativo do filme, o narrador diz: “Passemos a voz aos analfabetos, eles
são a maioria absoluta”. Ação que decide sobre a estética do filme e interpela
as nossas escolhas também, como educadores.
Apesar
da dureza das imagens sobre a vida das classes populares, é preciso dizer que Maioria Absoluta é um filme poético.
Nas gravações feitas nas pequenas cidades e localidades onde os personagens
principais do filme vivem e trabalham precariamente, distantes da vida urbana
desenvolvida, há uma potência em suas figuras que diverge da frágil vivência em
que geralmente são mostrados nas grandes cidades, demolidos pelo processo de modernização
excludente. O analfabetismo é o saldo devastador de uma história social
desfavorecida para uma “maioria absoluta”. No entanto, o que resta não são suas
carências. O que o filme nos dá em resposta são suas fulgurações existenciais.
Não
se pode deixar de registrar também que Maioria
Absoluta contou na sua realização com a participação de um incrível número
de destacados colaboradores: Fotografia e câmera, Luiz Carlos Saldanha;
Produção executiva e som direto, Arnaldo Jabor; Montagem, Nelson Pereira dos
Santos; Narração, Ferreira Gullar; Coordenação de produção, David Neves;
Letreiros e assistente de montagem, Lygia Pape.
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Título: Maioria Absoluta
Direção: Leon Hirszman
Ano: 1964
Parte 1
Parte 2
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Título: Deixa Que Eu Falo
Direção: Eduardo Escorel
Ano: 2007
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