Ato/r criador - Educação e arte popular como leitura de mundo em Paulo Freire
Depois de assistir às apresentações de tantos
artistas na mesa[1],
estou aqui pensando como vou me virar, afinal sou apenas um professor. Mas aí
eu já posso citar Paulo Freire (2011, p. 45) que disse no seu livro Cartas á Guiné-Bissau: “o educador é um
político e um artista”. Então eu também posso me sentir um artista para
conversar aqui com vocês.
Por outro lado, gostaria de
iniciar a minha participação observando que para o candidato com a maior
intenção de votos na eleição presidencial, Paulo Freire precisa ser expurgado
da educação brasileira. Fonte: Proposta de Plano de Governo do candidato
fascista, página 46. A ignorância do candidato Bozo sobre a educação brasileira
é notável. A má fé também. A questão que realmente importa é a seguinte: Por
que a investida autoritária contra Paulo Freire agora?
A propósito, há um episódio
biográfico sobre Paulo Freire que é oportuno lembrar agora. Quando foi preso
após o golpe de 1964, em uma ocasião foi procurado por um tenente que perguntou
se ele não poderia alfabetizar os recrutas que não sabiam ler. Paulo Freire
(1987, p. 49) respondeu, “Mas, meu querido tenente, eu estou preso exatamente
por causa disso!”. Depois completa: “Se o senhor fala nessa estória de que vai
convidar o Paulo Freire para alfabetizar os recrutas, o senhor vai para a
cadeia também. Não dá!”
A história contada por Paulo
Freire é praticamente uma anedota, mas é um episódio bastante significativo
para nos darmos conta de como ele foi perseguido pela Ditadura Civil-Militar e porque
mesmo após a sua partida, em 1997, ainda é acossado. O motivo está no caráter
popular do seu pensamento educacional. O chamado Método Paulo Freire não é tão
somente um método para aprender a ler e escrever, essa é a questão da repulsa
que provoca entre as classes dominantes e os golpistas de sempre.
Os
primeiros passos da prática do Método Paulo Freire são bastante reveladores
sobre todo o caminho que será percorrido através dele. O primeiro momento é o
levantamento do “universo vocabular” do grupo que será alfabetizado, quando são
pesquisadas as “palavras geradoras”, palavras, indicam Paulo Freire (1994, p.
120), carregadas de “sentido existencial” e que possuem maior “conteúdo
emocional”. São, portanto, “expressões particulares, vocábulos ligados à
experiência do grupo”. Importante observar que se trata de um momento realizado
com os indivíduos do lugar, através de encontros e conversas feitos com eles.
A relação de troca e
correspondência com os populares é
inseparável do Método e mais amplamente da concepção de educação de
Paulo Freire. Para explicitar a importância da educação popular e do
pertencimento, vou remeter a um acontecimento da última semana que comoveu
muitos professores no país. Estou falando do professor Thiago Conceição, agredido por alunos em uma unidade escolar da rede municipal de Rio das Ostras
Chocaram as imagens do professor atacado em sala de aula. Afinal, aonde vamos
chegar no magistério com esses alunos?
A questão é a seguinte: a
agressão precisa ser punida. No entanto, a juventude popular está abandonada nas
escolas. Não estou me referindo às condições particulares da escola do
professor Thiago Conceição, mas falando de forma mais ampla sobre a educação
pública. Apesar de todos os esforços dos seus profissionais e dos resultados
possíveis alcançados pelos alunos, o que quero dizer é que a concepção de
educação que predomina não é orientada pelo paradigma da educação popular. Não
são escolas feitas para eles, na verdade. É preciso dedicar-se ao “sentido
existencial” desses jovens para estar com eles verdadeiramente nas escolas.
Portanto, não existe Paulo
Freire para ser expurgado das escolas, ele não está lá.
Então, o caminho não é
militarizar a escola, mas conhecer mais esses jovens e com eles construir a
educação que precisam. As trajetórias desses jovens precisam vir à tona através
das suas palavras, das suas narrativas, das suas práticas e das suas vivências.
Sem esse encontro e essa correspondência, eu sinto muito, a tendência é ficar
pior. E por quê? A universalização da escola não acompanhou adequadamente o
ingresso da infância e da juventude popular. Somente a democratização da
escola, e não a sua militarização, poderá fazê-la prosperar. Sem essa
implicação com o elemento popular, não há saída.
O
paradigma da educação popular é ameaçador porque ele propõe a “leitura de
mundo” do educando como um ato criador da sua libertação.
Na conferência de abertura do
Congresso Brasileiro de Leitura, em 1981, disse Paulo Freire (2011, p. 28):
“Sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de
conhecimento, por isso mesmo, como ato criador”. E o que faz da educação propriamente um ator criador? Referindo-se à
alfabetização, Paulo Freire (ibidem, p. 29) observa: (Ela) “é a criação ou a
montagem da expressão escrita da expressão oral”. Ou seja, com a alfabetização,
nossa “leitura de mundo” transforma-se também porque torna-se mais ampla a
nossa competência para compreender e atuar no mundo.
Uma frase, praticamente um
aforismo, muito citada de Paulo Freire (ibidem p. 19) diz o seguinte: “A
leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Mesmo sem a capacidade da
leitura e da escrita já realizamos uma “leitura de mundo”, é claro. Mais
adiante, Paulo Freire (ibidem, p. 29) completa: “a leitura do mundo precede a
leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura
daquele”. A aquisição da “leitura da palavra” é um ator criador porque com ela
está dada outra condição para a nossa “leitura de mundo”, uma possibilidade
para uma compreensão mais extensa sobre a nossa existência no mundo.
Observando novamente o Método
Paulo Freire, podemos afirmar que educação para Paulo Freire é uma prática que
nos permite uma contextualização no mundo e ao mesmo tempo a sua transformação.
Observando as sucessivas etapas do Método, partindo das “palavras geradoras” e
das “situações existenciais”, o que se propõe é a descoberta da realidade
social e histórica da nossa existência para a sua transformação como um ato
político. Através das suas próprias palavras, diz Paulo Freire (1994, p. 112):
“Partíamos de que a posição normal do homem (...), era a de não apenas estar no
mundo, mas com ele”.
Estar no mundo e com ele
significa uma presença mais atuante, tomando-o um objeto da nossa existência.
Através da educação estão dadas outras possibilidades para nos apropriarmos das
nossas condições existenciais e atuarmos para a sua transformação. Portanto,
educação como prática da liberdade – a propósito, título de um livro de Paulo
Freire. A educação para Paulo Freire é, sobretudo, uma prática transformadora
da vida em uma direção emancipatória, por isso uma “pedagogia do oprimido” e
uma “pedagogia da autonomia”, também outros títulos de seus livros.
Através
da educação, criamos outras realidades existenciais. Partindo, então, dessa
compreensão, o que dizer agora da “arte popular”? – Motivo do nosso encontro
aqui. Qual a sua relação com a educação libertadora de Paulo Freire? O encontro
entre educação popular e arte popular acontece através das leituras de mundo. A
arte popular é, ela mesma, uma “leitura de mundo”, porque nela também existe o
acontecimento criador que Paulo Freire nos fala, que já existe antes mesmo da
leitura da palavra.
É
importante notar que Paulo Freire (ibidem, p. 117) reconhecia plenamente o
caráter criador da cultura popular, considerando “que tanto é cultura o boneco
de barro feito pelas artistas (...), como cultura é a obra de um grande
escultor (...). Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu país, como
também a poesia de seu cancioneiro popular”. A cultura popular é o ponto de
partida da educação popular. A cultura popular já é uma leitura de mundo e com
ela e nunca contra ela que se propõe fazer a educação popular.
Referindo-se
às conversas com populares que visam saber sobre suas condições existenciais e
coletar as palavras geradoras, diz Paulo Freire (ibidem, p. 120), em um
comentário magnífico, que esses encontros revelam “momentos altamente estéticos
da linguagem do povo”. Como exemplo, ele cita algumas frases, vou reproduzir duas
delas: “é duro de se viver, porque janeiro é cabra danado para judiar de nós” e
“Eu tenho a escola do mundo”. Indiscutível o valor estético dessas elaborações.
O que hoje a contemporaneidade nos desafia é descobrir onde estão esses
“momentos altamente estéticos” entre os jovens das classes populares. Eles
existem.
De
modo ilustrativo, poderíamos voltar a examinar as cenas que envolveram a
agressão ao professor Thiago. São imagens editadas da realidade, elas não nos
mostram tudo o que precisamos saber para uma análise do estado da educação
pública no país. Mais uma vez observo, não estou me detendo especificamente
naquela escola, que aliás nem conheço, apenas usando um acontecimento que
causou grande comoção entre as pessoas para entrar na questão da educação
pública hoje. Precisamos nos perguntar, qual a experiência cultural dos jovens
das classes populares nas escolas? Qual vida estética da escola pública popular
encontramos?
O
que estou querendo dizer é o seguinte: Todos esses jovens têm antecedentes
culturais. Para saber da educação brasileira, é preciso ver não apenas um vídeo
com jovens agredindo um professor, mas ver também qual legitimidade a educação
pública atribui à vida pregressa das populações que hoje frequentam essas escolas.
O pertencimento cultural é o “conteúdo emocional” das gentes, esse
reconhecimento precisa ser pleno para a “escola de qualidade”. De uma certa
maneira, é assim que funciona para as classes médias, precisa ser do mesmo modo
para as classes populares.
Não
gostaria de ser dualista às avessas e dizer que as classes populares precisam
de uma escola e as classes médias de outra. O que estou dizendo é que a escola
pública não observa, pelo menos não de modo adequado e suficiente, as
trajetórias, as biografias sociais e as experiências coletivas de quem nela
estuda. Aqui estou me detendo apenas à essa questão. O problema de um projeto
de nação eu não estou levando em conta agora. Estou pensando de modo mais
direto o problema da escola pública popular e como questões de cultura são da
maior importância para democratizar o ensino dessa maioria.
Nesse
sentido, a arte popular tem um papel civilizatório: resistir à indiferença
cultural hoje praticada nas escolas e interpor entre os seus cotidianos e a
presença dos jovens, um sentido libertador, criador de uma outra presença no
mundo.
Referências
FREIRE, Paulo. A importância do
ato de ler: em três artigos que se completam. 51ª ed. São Paulo: Cortez,
2011.
______. Educação como prática da
liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
______. Cartas à Guiné-Bissau: registros
de uma experiência em processo. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Aprendendo
com a própria história 1, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987.
[1]
Participação na mesa Arte pública e desenvolvimento social, da V Semana Acadêmica do Curso de Belas Artes
da UFRRJ, no dia 27 de setembro de 2018, em Seropédica, na UFRRJ.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns, que boniteza de texto. Levarei para debate e reflexão dos meus alunos e colegas, professores da universidade pública. Obrigada por palavras tão inspiradoras. Abs
ResponderExcluirObrigado pelo comentário!
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