Ferrugem
Ferrugem, de Aly Muritiba, ainda está em
cartaz no Rio de Janeiro, em Botafogo, no Estação NET Rio. É aquilo que muitas
vezes observo aqui no blog, os cinemas de shopping espalhados pela cidade
mostrando os mesmos filmes sem muita importância e um reduzido número de salas,
entre o centro e a zona sul, mostrando filmes que fazem realmente a diferença. Ferrugem foi escolhido melhor filme
nacional do Festival do Cinema de Gramado, mas muitos nem sequer vão saber
sobre a produção.
Como
professor, lamento muito porque o cinema nacional mais recente tem exibido
filmes bem interessantes para pensarmos sobre desafios da profissão e da
própria educação para a sociedade brasileira. O cinema também faz parte das
nossas redes educativas e da formação de educadores, inclusive. No entanto, é
um cinema para uma população exclusiva que pode frequentar as salas localizadas
nas áreas mais nobres da cidade. Como educadores, precisamos nos apropriar do
melhor cinema, mostrá-los em espaços mais democráticos.
Sem spoiler.
Como o filme ainda pode ser visto no cinema, não vou avançar muito sobre o que
já está no trailer. As imagens que vou usar aqui são fotogramas extraídos do
trailer também.
A trama se
desenvolve a partir de um celular perdido. Tati (Tiffanny Dopke) e Renet
(Giovanni de Lorenzi), dois colegas da mesma classe, aproveitam um passeio
escolar para uma aproximação amorosa.
Ela mostra algumas imagens que estão no celular e ele pergunta sobre um
vídeo. Tati diz não ser nada demais. Instantes depois, o que parecia o início
de uma pegação é interrompido quando a garota percebe que perdeu o celular.
Outros colegas aparecem para ajudar a encontrá-lo, mas sem sucesso.
No dia
seguinte, quando Tati chega à escola descobre que o vídeo vazou do seu celular
e estava sendo compartilhado. Instantaneamente ela está completamente
vulnerável. Sua intimidade está sendo exposta sem controle. Tudo que vem a
seguir é demolidor. Assim como nos recentes Aos Teus Olhos e O Orgulho,
Ferrugem é um filme em que seus
personagens precisam lidar com a presença fatal do celular. Ferrugem é uma ótima oportunidade para
discutirmos o sobre a ubiquidade dos celulares na vida cotidiana e o seu
convívio com as escolas.
Para lidar com
a situação provocada pela difusão de imagens íntimas de uma de suas alunas, acessadas
pelos alunos na escola, a solução adotada foi a proibição dos celulares.
Recentemente notícias mostram que a mesma solução está sendo adotada pelas
escolas públicas na França e pedida pela associação de docentes na Alemanha.
Em ambos os casos, para menores até 14 anos. A faixa etária de Tati e seus
colegas é superior. Talvez exista mesmo algum limite para faixa etária, mas
como professor, vejo a questão de outro modo.
A presença dos
celulares pode ser apropriada pela própria escola, a seu favor,
pedagogicamente. Usar o celular regulamente nas escolas, no lugar de proibi-lo.
Acredito que nem preciso explicar como, com certeza são muitas as oportunidades
criativas que se abrem. Quanto a utilização temerária do celular, como no caso
de Tati, a escola poderia também assumir uma responsabilidade educativa, no
lugar de tentar jogar o aparelho para debaixo do tapete. Para os jovens, qual
lugar melhor que a própria escola para discutir as tecnologias, seu consumo e seus
usos?
No filme,
jovens e adultos parecem vivem em mundos diversos. A comunicação entre eles é
coisa impossível. Parte da vulnerabilidade dos jovens está aí, é claro. A
escola precisa estar à altura desse problema. O consumo dos smartphones é de
interesse do “capitalismo adulto”, totalmente indiferente a integridade dos
jovens. Isso é assunto para o currículo nas escolas. Deveria sê-lo. As empresas
conhecem muito de pedagogia. Sabem como se interpor entre os jovens e seus
desejos. Observem a imagem abaixo.
O cotidiano escolar
é repleto de retratos dos prazeres. Vejam o que dizem as paredes. É algo irreprimível, mas são expressões
juvenis razoavelmente protegidas de alguma invasão mais ameaçadora da
intimidade. A cibercultura nos coloca diante de outras possibilidades de
comunicação e de outras formas de interação também. Crianças e jovens precisam
desde cedo saber lidar com essa passagem entre as realidades do lugar e do
virtual, ter um tato para saber distinguir quando e como estão se expondo ao
ponto do risco da vulnerabilidade.
A questão da
comunicação é uma das mais prementes da vida contemporânea. Ao mesmo tempo que
praticamos uma “internet do corpo”, o filme também problematiza a ausência de
uma melhor correspondência entre adultos e jovens. Pais e filhos, mal se
comunicam em uma época em que os modos diferença e identidade estão ligados 24h
por dia, no analógico e no digital. A escola precisa se desembaraçar dos seus
objetivos exclusivamente preparatórios para exames e recuperar plenamente seu
ideal mais amplo de formação humana.
Tati fica à
deriva também em um mundo machista, outra questão muito bem apresentada pelo
filme. E a escola, o que tem com isso? A escola é lugar de discutir gênero e
iniciar práticas de desconstrução do falocentrismo. Depois de ter o seu vídeo
com cenas íntimas vazadas, todos os contatos de Tati com personagens masculinos
resultam em indiferença ou sinal de assédio. Irrespirável o ar para ela. Bom
ver o cinema muitas vezes indo mais longe que as escolas. E hora das escolas
conversarem mais com o cinema.
*
Título: Ferrugem
Direção: Aly Muritiba
País: BRA
Ano: 2018
Classificação indicativa: 14
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